terça-feira, 24 de novembro de 2020

Pesadelo


   Confúcio uma vez disse que havia sonhado que era uma borboleta e que, quando acordou, já não sabia se era um homem que sonhou ser uma borboleta ou se sempre havia sido uma borboleta que sonhava que era homem.

Acho que já no tempo dele alguns seres humanos se davam conta de como a realidade pode nos encher de dúvidas e os sonhos se parecerem tanto com certezas.

Conheço gente que se acha incrível, digno de ser invejado por todos à sua volta, mais inteligente, mais bonito, mais merecedor de todas as coisas boas da vida e que, como a vida não é do jeito que queria, sente revolta, até mesmo ódio de quem tem o que julga deveria lhe pertencer  por direito - isso em si não é viver de sonho?

Mas eu não conheço ninguém mais viajada no sonho do que eu...

Eu sonhei que vivia num mundo que estava evoluindo - que tonta, que burra, uma perfeita idiota!!!

Um dia depois do outro eu indo na Igreja, frequentando a escola, trabalhando, fazendo faculdade e tudo parecia estar se encaminhando para um futuro promissor na humanidade - eu até tive filhos! Que mundo bacana prá se ter filhos...

A gente arruma um emprego, acorda cedo, trabalha nossas horas, convive com as colegas, interage com as pessoas, paga as contas, tece planos...

Conta histórias pros filhinhos - como eu adoro contar histórias, meu Deus - ensina-os a rezar o Pai Nosso, a respeitar as pessoas, a se comportarem perante os outros habitantes do planeta. Era tão lindo ir na reunião de Pais e Mestres e ouvir as professoras dizendo que as crianças eram ótimas, educadas, inteligentes, bondosas e queridas de todos...

A gente segue aquela nossa vidinha de família pobre aspirante a um lugar melhor e luta por isso - trabalha, economiza, se priva de certos confortos pra dar aos filhos uma vida melhor do que teve, e então...

Como pude, por tantos anos, achar que tudo estava melhorando? Como pude acreditar em mudanças positivas, em evolução da espécie humana, em crescimento?

Fácil foi acreditar em tudo isso, como não? Neta de dois imigrantes europeus caucasianos, pobre de fazer dó - mas ainda assim branca!

A VIDA É MAIS FÁCIL PRÁ QUEM É BRANCO.  Ponto. Não adianta dizer que pobre é pobre e que a vida é difícil prá quem é pobre, não, NÃO! A vida de um negro pobre e de um branco pobre são muito diferentes.

A fome pode ser a mesma, a privação pode ser igual - mas a humilhação, o desrespeito, a falta de dignidade humana são sem paralelo. Numa entrevista para emprego em que houver um candidato negro e um branco com as mesmas qualificações podem ter certeza absoluta que o branco ficará com a vaga.

Casais compostos por uma pessoa negra e uma branca sempre serão olhados com pelo menos curiosidade, mas no mais das vezes com preconceito e ódio...

Assunto tão batido, não é? Tão óbvio e, ao mesmo tempo, durante boa parte da minha vida ele me passou despercebido.

Minha melhor amiga na infância se chamava Gracinha. Ela era negra bem escura mesmo, risada contagiante de dentes luminosos, ágil, esperta... Fazíamos uma dupla e tanto nós duas, brincando nas ruas do nosso pedaço, algumas de terra batida, poucas de asfalto, jogando queimada, empinando pipas, jogando pião e bolinha de gude - éramos terríveis. Eu branca igual côco ralado e ela daquela cor linda que Deus lhe deu, parecia chocolate amargo derretido e brilhante. Ela vivia na casa da minha vizinha de frente, a cabeleireira e fazia a faxina e cuidava das crianças. A mãe tinha muitos filhos, era muito pobre e assim ela trabalhava em troca de comida e casa. Mas Maria, a cabeleireira, era gente boa, comprava uniforme, sapatos, livros e cadernos, ajudava a Gracinha a estudar prá ela algum dia ser alguém na vida - só que ela acabou aprendendo e pegando gosto por ser cabeleireira mesmo.

Se mudaram prá São Bernardo e quando a Maria resolveu voltar pro interior depois de ficar viúva a Gracinha herdou o salão. Perdi contato com ela durante muitos anos, um tempo atrás ela visitou minha mãe e disse que sentia saudades minhas. Minha mãe, como sempre, não disse onde eu morava e assim nunca mais a vi. Minha mãe tem problemas, eu sei...

Sabe, muitas vezes quando eu assisto um filme ou um seriado com o Marildo a gente entra em discordância sobre algum ponto e a gente pausa e conversa e eu sempre digo prá ele que o que é certo prá nós pode não ser certo prá outros.

Sempre dou este exemplo: o fato de que eu não leio pensamentos não significa que não exista ninguém no mundo que possa ler - pode ter, não pode? Eu não conheço todo mundo do mundo, não sei... 

Que porque eu gosto de jiló frito no pão não significa que todo mundo goste ou tenha que gostar e isso vale prá tudo: cada ser humano experimenta a vida com seus próprios sentidos, tem percepções diversas uns dos outros e a não ser pelas regras de ouro da moralidade contidas - por exemplo - nos dez mandamentos, todo o resto é pessoal, cultural, de paladar e gosto, nascido de cada pensamento  e experiência individual, mas também familiar, coletiva... Que colcha de retalhos todos nós somos...

Meu marido criticou as manifestações violentas após a morte do homem no estacionamento do Carrefour, dizendo que violência não resolve nada e que a tragédia ocorrida não teve fundo racista e eu veementemente discordei dele - e ficamos nesse impasse, cada um pensando do seu jeito.

Ele tem uma visão muito "açucarada" da vida. Ele assiste comigo filmes onde aparece menção à pedofilia ou onde há estupro e ele sempre repete: "Ainda bem que isso é um filme", como se a realidade fosse diferente, mais limpa, menos dura. 

Já não fui assim também?

Me lembro da primeira vez em que me dei conta do racismo: tinha essa noveleca da Globo onde a primeira atriz que representou a Chica da Silva (não lembro o nome dela e não tô a fim de dar um google) fazia casal com o falecido ator Marcos Paulo - e a Globo foi inundada de cartas de telespectadores revoltados com uma "negra feia" beijando um branco, queriam que a Globo desmanchasse o casal, até mesmo matasse a negra.

Isso me chocou tanto!

Acordei e me senti perdida na minha ilusão de que havia igualdade.

Cometi, naquele tempo, o mesmo erro de que acuso hoje o pobre Marildo: pensei que, porque meu coração não via cor, nenhum outro coração via e, ao acordar, me reconheci na condição de - se não cega social - pelo menos daltônica. É preciso abrir os olhos prá ver.

Nossa sociedade tem um débito inimaginável para com os negros, débito esse que não vai ser saldado apenas com cotas - e como as pessoas brancas se queixam das cotas! Quanto mimimi porque a cota não é deles - isso sim (pois se houvesse cotas prá brancos, todos eles iam se candidatar e achar válido, merecido e justo...).

Nossa sociedade foi erguida pelos negros - seu sangue está na argamassa de cada construção, cada prédio, cada casa - passem na porta de uma construção qualquer e vejam quantos negros e quantos brancos tem assentando tijolos, batendo massa, peneirando areia.

E passem também nas faculdades - e nem digo prá olhar quantos professores negros tem lá dentro: vejam quantos alunos negros estão lá sentados, estudando...

Andem de transporte público nas periferias mais retiradas de qualquer grande cidade de nosso país e contem quantos rostos brancos - talvez nenhum - dentro deles...

Passeiem pela manhã pelos bairros de classe média e alta de qualquer cidade do país e vejam de que cor são as mulheres lavando as calçadas das casas...

AQUELE HOMEM NO MERCADO MORREU PORQUE ERA NEGRO! Isso é fato. Porque se fosse branco jamais teria sido admoestado, muito menos agredido. Os seguranças só se acharam no direito de fazer o que fizeram porque ele era negro.

Isso me dói tanto, mas tanto, e no entanto reconheço que minha dor é nada perto da dor que cada negro deste país está (ou deveria estar) sentindo. Sim, porque não importa a cor, há também negros dormindo...

As manifestações foram violentas - mas foram poucas. Tinha que ter pipocado revolta em cada Carrefour do país, em todas as cidades... Às vezes é preciso gritar a plenos pulmões prá ser ouvido... 

Sem ferir funcionários, caixas, repositores, faxineiros (muitos e muitos deles negros também) o Carrefour tinha que sentir nos cofres a revolta popular porque a culpa não é apenas dos seguranças, da empresa contratada - a culpa é da gestão da rede, que não deixa claro para quem lá trabalha o que é humanamente INACEITÁVEL.

E vejam só: as ações do Carrefour, após esse  terrível acontecimento, ainda subiram vinte pontos...

Se fosse um homem branco estaria vivo. Tanto faz se ele tinha ou não ficha policial, quando o mataram não sabiam disso e mesmo que soubessem, ao que me conste, no Brasil não há pena de morte e se houvesse, meros seguranças não teriam o poder para aplicá-la.

Poder - essa é talvez a raiz de todo o mal. 

Pois desde que esse quadrúpede chegou à presidência - os pobres quadrúpedes que me perdoem - todas as criaturas dos esgotos, as cracas de debaixo das pedras, todos os demônios que vagam pelo nosso ar e nosso chão se sentiram autorizados a se mostrarem como são: violentos, racistas, homo fóbicos, misóginos e medíocres. Afinal, se a autoridade maior do país é tudo isso, por que eles se envergonhariam de também sê-lo?

Acordei e me dei conta de que sou uma borboleta de asas rasgadas, incapaz de voar - nunca fui uma mulher. 

Todos esses anos de vida abrindo a cada dia um pouquinho mais os olhos, me acordando prá ser alguém melhor e me pego nesta altura da vida desperta, nesse pesadelo que se tornou nosso país...

E vejam como são covardes as quimeras dos meus pesadelos: o gordinho que distrata e ofende o entregador porque é negro, a loira homofóbica dentro da padaria, o desembargador que dá carteirada e ofende o guardinha na praia, a velha senhora racista no banco em Recife, NENHUM deles responde por seus atos abomináveis porque SIM! são brancos e porque é muito fácil apresentar um atestado de bipolaridade, depressão ou qualquer outro probleminha médico impossível de ser provado prá justificar - sem jamais explicar - as suas almas podres...

O Excrementíssimo Lazarento (que também me perdoem as pessoas que porventura tenham lepra) que nos governa não vai ficar lá prá sempre. Alguns dizem, otimistas, que ele já está "derretendo", face os resultados das eleições municipais - que Deus os ouça!

Um dia essa praga cai fora e então todos esses seres dos esgotos, todas essas cracas de debaixo das pedras, todos esses demônios que escaparam dos infernos e que vagueiam pelo nosso ar e nosso solo vão voltar a se camuflar entre nós, a nos dizer bom dia, a nos mandar florzinhas e gatinhos de purpurina nos famigerados grupos de whatsapp - então, até lá, pelo menos sonhemos com um mundo melhor.

Um sonho dentro de um pesadelo - talvez nesse sonho eu volte a ter asas, quem sabe...

Respira fundo, Rosa. Logo passa.

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2 comentários:

  1. Oh, Rosa!

    Foi muito triste o que aconteceu aí com o Senhor, no carrefour (as manifestações foram notícia, por cá - note bem, as manifestações).
    Infelizmente, por esse mundo fora, acontecem coisas semelhantes com demasiada frequência!!!
    Também me questiono em que mundo tive filhos?!?!?

    Fique bem!
    Beijinhos
    Liliana
    Ideias Recicladas e... não só!

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  2. Olá, Rosa!

    Espero que esteja tudo bem consigo e com a família e amigos!
    Passei para desejar um Feliz Natal e um Novo Ano repleto de Saúde, Harmonia, Paz e muita Inspiração!

    Beijinhos
    Liliana
    Ideias Recicladas e... não só!

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