quinta-feira, 19 de novembro de 2020

As tias

       


Minha mãe não teve irmãs - pelo menos não vivas -  e assim todas as tias que eu tive eram as esposas dos meus tios e as esposas dos primos e as primas que eu também era acostumada a chamar de tias. Um festival de tias de todas as cores e formas e tamanhos, 90% delas belicosas, encrenqueiras, gananciosas ao extremo, sempre querendo levar vantagem sobre a pobre e sofrida minha mãe, costureira de mão cheia e de despensa vazia, com uma escadinha de filhos.

Do lado do meu pai a coisa era ainda pior: a esposa do meu tio Zeca eu jamais conheci - esse meu tio era policial, violento, certamente metido em negócios escusos pois era muito rico e tratava meu pai como um pobre coitado a quem doava suas roupas velhas. Meu pai o adorava, seus olhos brilhavam quando ele aparecia na porta. Tirando ele meu pai tinha apenas duas irmãs, que se encontrassem minha mãe na rua corriam atrás dela prá lhe dar uma surra - afinal ela havia "fisgado" meu pai e cortado pela metade o auxílio em dinheiro que ele lhes dava (sendo que a outra metade a gente mal via, pois minha mãe é que nos sustentava com suas costuras...).

Nenhum dos irmãos de minha mãe se preocupava em dar algum auxílio prá minha avó. Diziam que, se ela não queria viver na miséria, deveria ir morar com um deles - o que ela até tentou, coitada, prá não ser mais um peso nas costas da minha mãe, mas acabava voltando, pois era muito maltratada pelas noras, a casa virava um inferno de brigas e, afinal, tanto ela quanto minha mãe e nós todos ficávamos destroçados de saudades... Em meio à miséria e a fome, nos restava o consolo da mútua companhia...

Que tempos difíceis, meu Deus! Às vezes - como agora mesmo - quando eu paro prá pensar, meus olhos me desobedecem chorando e eu me pergunto como foi que, afinal, sobrevivemos? Se alguém nesse mundo duvidar da existência de Deus basta olhar prá mim, me ouvir, me ler: eu sou um milagre. Minha mãe e meus irmãos somos todos milagres.

Não havia SUS prá gente procurar quando adoecia, não havia nenhum auxílio do governo prá nos mitigar a fome, prá comprar nossos uniformes e livros prá frequentar a escola.

Em um prédio alto da avenida Celso Garcia, quase chegando no bairro do Tatuapé, tem uma pichação que diz: "SOBREVIVI À FOME, VIREI PESADELO". Acredito que sei como deve ser isso, no entanto nós todos sobrevivemos à fome e a coisas ainda piores do que ela e aqui estamos nós, seguindo nossas vidas melhores do que éramos - nem pesadelos nem sonhos.

Minhas tias - pois o tema de hoje são "tias" - só se importavam com suas próprias barrigas, suas jóias de ouro, suas roupas, seus carros, suas viagens, apartamentos na praia, casas de campo, títulos de clube. Nenhum carinho pelas criancinhas famintas da cunhada - pelo contrário. Faziam minha mãe costurar de graça prá elas, mesmo sabendo a falta que o pagamento fazia na nossa mesa.

Um bando de megeras, todas já foram colher o que plantaram. A última delas morreu tem menos de um ano - um dos filhos invadiu o apartamento e furtou as jóias da mãe prá não dividir com os irmãos.

Meus tios todos, que tanto amealharam riquezas pros filhos, no fim de suas vidas só puderam contar com minha mãe prá lhes dar banho, limpar a casa - as esposas e os filhos os deixavam cobertos de moscas, afundados na urina dos colchões.

Não tenho boas lembranças de quase nenhum deles - a não ser de meu tio Antonio, o irmão mais velho de minha mãe, que nos dava 1 litro de leite e uma bengala de pão por dia. Pelo menos isso...

Bom, agora chega de amarguras. Hora de falar das tias que a vida me deu de presente quando eu me casei.

Minha sogra foi a primeira por quem eu me apaixonei. Eu a achava extremamente inteligente, mente afiada, senso de humor ácido. Adorava tudo o que eu ouvia dela - as histórias, as anedotas, as cantigas. Mas infelizmente eu cheguei tarde na vida dela - ela se dava melhor com minha cunhada e meu rosto sempre triste de saudades da minha mãe e dos meus irmãos não ajudava em nada. Ela encarava minha tristeza como sendo descontentamento por morar com ela, pensava que eu me sentia superior por ser mais estudada, mais alta, mais branca. Com o tempo nosso relacionamento foi ficando mais difícil, as irmãs do meu marido vinham passar um tempo com a mãe e punham mais lenha na fogueira até que a gente se mudou dali.

Durante esses quase 3 anos em que dividimos o mesmo teto eu conheci suas irmãs Maria Cícera, Madalena, Maria José, Maria e Joanita. E como minha sogra se chamava Cícera e a irmã adotada do meu marido se chama Madalena dá prá perceber a falta de repertório na hora de se darem nomes...

Foram criadas como batatas jogadas na terra que brotam sem serem plantadas - elas diziam. Lembravam da mãe lavando no rio os panos sujos de sangue e morrendo de tuberculose com pouco mais de 30 anos, deixando uma dúzia de filhos, meninos e meninas. O pai delas chegou prá todos eles e disse que estava indo morar com outra mulher na cidade e "quem quiser vir, venha e quem não quiser, dane-se". 

E as irmãs ficaram todas juntas, a mais velha com uns treze anos, a caçula com dois. As mais velhas trabalhavam em casa de família e sustentavam as pequenas, minha sogra apareceu grávida e nunca contou quem havia feito mal prá ela. Foi mandada embora do trabalho - pois não existiam direitos trabalhistas naquele tempo e, afinal, a quem uma menina de doze anos ia recorrer por ajuda?

Com o tempo algumas das irmãs foram vindo prá São Paulo e, como não tinham documentos, inventaram suas próprias datas de nascimento aumentando anos de vida prá poderem trabalhar registradas...

Minha sogra acabou se casando, teve vários filhos e só veio prá São Paulo quando meu marido tinha quatro anos de idade - foi a última a chegar aqui.

Obteve muita ajuda das irmãs - sempre foram muito unidas. O pouco que tinham, dividiam. Se revezavam a cuidar dos filhos, uma ajudava a outra a arrumar emprego. Um exemplo de mulheres batalhadoras, todas elas...

Com a morte da minha sogra num ano e a do irmão mais velho do meu marido no outro, meu colega de quarto se afastou da família. Só vivia pro trabalho.

Então eu vim com a ideia de visitar as tias que viviam juntas - Maria José, a duas vezes viúva e a Maria, a nunca casada e a mais doce das criaturas.

As crianças adoravam - e as tias, mais ainda... Quase todo final de semana a gente ia, elas já esperavam. Eu adorava ouvir suas histórias, ajudá-las a resgatar as lembranças. Às vezes a gente chegava e já encontrava tia Maria - a quem a Lolinha deu o apelido de tia Cissinha, por causa do personagem de alguma novela - sentada na varanda, fumando um cigarrinho e bebericando um tipo de bebida que ela fazia com cachaça e calda de açúcar com cravo. Ela deixava o copo do lado, soltava uma fumacinha pela boca, enquanto cantarolava as músicas de fossa da Roberta Miranda - pobrezinha, chorando de saudades de algum amor perdido da juventude. 

A gente entrava na casinha e tia Marizé nos recebia com beijos e dizia: "Hoje ela tá meio triste, deixa ela que passa"...

Em outra visita ela vinha bem humorada como sempre - as tristezas eram bem esporádicas - ligava uma música, cantava junto, pegava no colo a cachorrinha pequinês bem velhinha chamada Pepita e lhe caçava as pulgas e lhe espremia as tetinhas do leite velho "prá não dar câncer na bichinha", ela dizia.

Tia Cissinha ia buscar uma jarra com iogurte de morango - que ela sempre diluía em um litro de leite, prá render o dobro. As carçolas que ela ganhava das sobrinhas ela guardava prá me dar no natal - e assim foi que parei de comprar aquelas calcinhas lindas de renda e passei a usar carçolas - muito mais confortáveis, afinal conforto vem em primeiro lugar prá mim, a beleza que se lasque se eu tô me sentindo bem...

Através dela soubemos das dificuldades da irmã mais nova do meu marido, a Madalena. Era um domingo, uns dois dias antes do Natal. Esperei as tias estarem terminando o almoço e disse pro Marildo: "Depois que a gente comer vamos pegar as tias, passar em alguma loja aberta na Av. São Miguel e vamos levar presentes prá tua irmã e prás crianças."

As tias adoraram, as crianças mais ainda e isso acabou virando um ritual. Eu sempre pedia pro Marildo ligar prá irmã prá saber se ela tava precisando de alguma coisa, dinheiro prá comida, prá pagar alguma conta, prá livros de escola.

Quando era início das aulas eu ia bater perna na 25 de março, comprava materiais pros meus filhos e comprava também pros sobrinhos - era chegada a minha hora de ser tia...

Fiz meu esposo matricular a irmã na escola de cabeleireira, pagar o curso, os materiais, a condução. Fiz ele levar a irmã na Ikezaki e montar o salão dela de prestações - eu sou uma tremenda duma sortuda, pois meu marido me ouve...


Tia Cissinha morreu de câncer. Não me lembro de ter chorado tanto na vida, ela tava tão pequenininha no caixão... Os irmãos do meu marido até me ridicularizaram, dizendo que por chorar eu não iria herdar nada pois a "velha" não tinha nem um brinco de ouro prá deixar de herança...

Nenhum deles gosta de mim, nunca gostaram. Acho que eu devo ter sido muito má em outra vida...

Ah, mas eu tive a honra de escrever seu epitáfio: "Fui convidada a uma festa na casa de meu Pai". Ela adorava festa, comer bolo, conversar com todo mundo... Meu marido pagou pro pessoal do cemitério escrever isso. Escolhemos uma foto dela jovem e bonita, como eu imagino que ela ficou quando chegou no céu.

Tia Marizé morreu de um monte de complicações da diabetes e da pressão alta. Por fim até fazia hemodiálise, pobrezinha Também ficou minúscula dentro do caixão, parecia uma criancinha enrugada. Também me acabei de chorar - do meu jeito, calada, sem interromper o fluxo do sofrimento até que ele se esgote e só sobre aquela tristeza marcada a ferros no coração...


E de tias queridas só me sobrou a Joanita - mas essa é mais complicada, mais densa - cuja história fica prá um outro dia.


Penso que a vida acaba nos dando muitas tristezas no gotejar dos dias e dos anos, mas - no meu caso, pelo menos - as alegrias, os ganhos, foram muitos. Entesouro no meu coração cada afeto que conquistei, cada boa lembrança que trago guardada. A tristeza me ensinou, as alegrias me fizeram muito, muito rica.


Quando meu tempo aqui estiver findo eu vou embora com uma tremenda bagagem, fácil de carregar porque não tem peso algum, ...

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2 comentários:

  1. A espera de mais historias. vc realmente conforta o coração da gente

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  2. Olá, Rosa!

    Há uns dias estive a ler esta história. Não consegui chegar ao fim, pois um afazer inadiável interrompeu a minha leitura.
    Hoje, certifiquei-me que conseguiria ler até ao fim...
    Fico a aguardar pela história da Tia Joanita.
    A sua riqueza percebe-se através da sua escrita!

    Beijinhos
    Liliana
    Ideias Recicladas e... não só!

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