Quem é que nunca se arrependeu de criar uma tempestade em copo d'água? Tornar maior um acontecimento que, em circunstâncias normais, passaria totalmente despercebido? Pois é... Já dizia minha finada sogra: "Quando a cabeça não pensa..." - o resto vocês devem saber.
Nós, seres humanos, somos especialistas em fazer muito barulho por nada - e cedo ou tarde bate o arrependimento, às vezes quando a situação já não tem mais remédio...
Aconteceu bem há uns três carnavais atrás e eu conto esta história hoje porque o próximo carnaval já se aproxima e ela se torna ainda mais viva na minha já meio caduca memória.
Sempre vamos pro sítio nessa época. Viajar prá outros lugares no carnaval é se expor a todo tipo de dissabores: pessoas embriagadas, música alta, bagunça... Eu e o Marildo estamos velhos e nossos filhos - embora jovens - são adeptos de paz e sossego.
Não que no sítio seja estritamente pacífico: muitas pessoas por lá também chegam das cidades prá suas casas de campo e ficam fazendo churrasco regado a bebida com músicas de Zezé de Camargo e Luciano no último volume - mas prá isso Deus inventou os protetores de ouvido de silicone.
Já comentei com vocês que ninguém da minha pequena família come carne: eu parei de comer na pré-adolescência, prá pirraçar meu pai; meu marido parou quando começamos a namorar e meus filhos nunca comeram. Então criamos galinhas pelo prazer de vê-las andar pela terra, galinhas de todos os tamanhos e raças, pacificamente vivendo suas vidas, ciscando e cacarejando, chocando seus ovos para dar lugar a mais galinhas. Dormindo empoleiradas nas primaveras, protegidas de predadores pela fartura de espinhos.
Naquele Carnaval, pleno sábado depois do almoço lá estava eu brigando com o sono, deitada na rede, quando reparo no maior dos nossos galos com as penas do peito bem estufadas, a crista orgulhosamente parecida com o topete do Elvis Presley, a cauda (ou rabo) parecendo um espanador fazendo um barulho que meio parecia o ronronar de um gato e mais ou menos lembrava o gorjeio de um pombo, cercando uma nunca vista galinha branca.
Ela era enorme, a Montserrat Caballé das galináceas - só que muda. Ou talvez não muda, apenas desinteressada em qualquer coisa que não pudesse ser digerida pela sua moela...
O galo a cercava, todo viril, imponente - enquanto as galinhas marrons e pretas do seu harém o olhavam ao mesmo tempo curiosas e desinteressadas (somente as galinhas conseguem ser assim, tão misteriosas, tão contraditórias), ciscando nas proximidades.
Ai, o tempo passa e não perdemos o romantismo. Talvez eu tenha perdido a batalha contra o sono de após o almoço: só sei que aquele galo e a galinha branca ficaram meio parecidos com o John Travolta e a Olívia Newton-John, um fugindo do outro, um perseguindo o outro, as outras galinhas fingindo que não estavam olhando mas xeretando tudo.
Eu perguntei pro meu marido de onde é que tinha vindo aquela linda gorduchinha e ele me informou que Seu Zé, o caseiro, cansado talvez de sempre justificar o sumiço de nossas galinhas em suas panelas (depenadas no próprio fundo do seu quintal, aliás...) como sendo obra de um predador, a havia comprado na cidade. A pobrezinha ia ser o almoço do domingo da família...
"Mas... Mas... O galo tá apaixonado, coitado! Não quero ver ele de coração partido... Vai lá e compra a galinha deles, não deixa a pobrezinha morrer!"
E como meu marido sempre resmunga, morde a língua, estufa as veias das têmporas mas acaba sempre se rendendo e fazendo o que eu quero lá foi ele comprar a tal galinha - mais uma vitória de Rosa, a mais chata das esposas. O placar já nem se anota.
Como é pacífico o coração que salva uma vida, por mais insignificante que ela seja - já tentaram? Recomendo. É como respirar fundo ao deixar um quarto abafado, dá um alívio misturado com felicidade - você sente que fez a diferença de modo positivo no curso da sua própria existência, embora a vida salva não seja a sua e nem te pertença.
Mas essa minha alegria durou tão pouco...
Na manhã de domingo desapareceu a galinha!
Lá fui eu incomodar o patrão, insistindo prá ele procurar a coitadinha - tão branca, se sobressaindo em meio ao verde do campo e os tons escuros e terrosos de suas companheiras - vai que uma raposa ou uma jaguatirica a tivesse pegado!!!
Meu marido rodou o sítio todo e voltou trazendo uma pena branca na mão - meus piores receios se tornaram realidade! Um leão havia pego a coitada!
"Só se for leão que anda de duas pernas! Atrás da casa do caseiro tá repleto de penas, ela já deve estar numa bacia curtindo os temperos..."
Eu fiquei tão triste! Me senti traída, apunhalada nas costas - e meu marido se sentiu ainda pior, pois ele havia pago pela vida dela.
Nervoso, lá saiu ele prá tirar satisfação com o caseiro, saber porque ele não havia respeitado o combinado, porque tinha matado a galinha!
No fundo acho que foi mais ou menos assim: uma luta de classes - nós, os famigerados patrões, donos do capital, do carro, da casa da cidade e da casa do campo e eles, os pobres empregados. E também foi uma batalha ideológica, entre eles, os Carnívoros Normais, seguidores das leis divinas da Bíblia que apregoam que os animais existem para serem comidos e nós, Anormais Vegetarianos, que estupidamente acreditam que toda vida merece continuar vivendo.
Não houve vitoriosos.
Eles na verdade estavam de saco cheio de nós. Das cobranças verbais por todas as plantas que morreram sem regar, pela horta sempre mal cuidada e vazia, por todo desvio de ração dos nossos pangarés (sempre magrelinhos) para o cavalo deles, forte e lustroso. Sempre havia uma conta prá gente pagar no armazém - muito maior do que a gente se lembrava... - uma ligação no meio do mês pedindo dinheiro prá consertar a mesma bomba ou a mesma cerca.
Eles disseram na cara do meu marido que não precisavam se justificar, que a galinha era prá ser comida mesmo, que não se arrependiam e que, na verdade, fazia tempos que queriam ir embora.
Meu marido se calou e veio embora, magoado.
Quantas vezes havia socorrido aquele homem com dinheiro sem cobrar retorno, levado ele ou a esposa dele no médico, no mercado... Sempre que a gente ia na cidade a gente se lembrava deles - trazíamos pão fresco, um pote de paçocas prá dona Margarida...
Eu disse pro meu marido que ele não podia deixar eles irem embora de cabeça quente. Ambos eram doentes, seu Zé já era velhinho, com uma válvula vencida no coração esperando cirurgia, dona Margarida sofrendo do ciático... Ali eles tinham menos gasto, sobrava dinheiro pros remédios. Que comessem quantas galinhas quisessem, mas...
"Eu não vou falar nada. Eles são adultos, já tomaram sua decisão."
"Pois eu vou lá embaixo falar com eles, não vou deixar eles irem embora!"
Lá fui eu, de bengalinha descendo a ladeira quase escorregando nas braquiárias, coração na mão sem saber nem por onde começar o que queria dizer... Mas as palavras nunca me faltam, pareço ser dona de uma infinidade delas, todas se atropelando prá sair - ainda mais quando estou nervosa...
"Não vão embora, a gente é praticamente família! Família é assim mesmo, briga por bobagem, fala sem pensar coisas das quais depois se arrepende!"
"Não, dona Rosa. A gente vai. Já ficamos tempo demais aqui, tá na hora da gente cuidar do que é nosso, da nossa terra, sem ninguém prá palpitar."
"Pensa bem, seu Zé! Aqui vocês não pagam água, luz, imposto nenhum. É mais perto da cidade, caso precisem ir ao médico. Tem linha de ônibus duas vezes por semana aqui na porta. Voltem atrás! Eu já falei com o "Marildo", se vocês disserem que querem ficar ele põe uma pedra em cima!"
"Não. Agradeço muito a preocupação da senhora, mas já deu. Amanhã a gente se vai."
E foi assim que aconteceu.
Tudo por causa de uma galinha branca.
Ou - na verdade - tudo por causa dos complicados relacionamentos humanos. Das cabeças quentes que tomam decisões precipitadas. Do orgulho...
E a galinha só levou a culpa até depois de morta, pobrezinha.
Dia seguinte todos os parentes ajudaram a carregar em seus carros os inúmeros colchões de espuma amassadinhos como panquecas, o sofá rasgado sempre coberto com uma mantinha de crochê colorida, as cadeiras da cozinha todas despareadas, cada uma de um tipo, as panelas brilhando de bombril...
Nem se despediram. Pareciam magoados - nunca descobri de quê...
Prá trás deixaram o chão por varrer, um pote plástico quebrado, teias de aranha nunca espanadas e uma gravura de palhaço emoldurada na parede - assustadora e deprimente...
Dias depois voltamos prá São Paulo deixando um vizinho encarregado das chaves e de procurar um caseiro novo - coisa que nunca aconteceu. Todos que se candidataram ao cargo ou não inspiravam confiança ou pediam um salário absurdo prá apenas morar na casa - ninguém queria plantar nada, capinar nada...
Por fim contratamos o filho do vizinho prá cuidar das galinhas e dos cavalos e esporadicamente o pai dele passa o trator - quando o mato está grande demais...
Num aniversário da dona Margarida eu lhe fiz uma blusa - fomos lá no sítio deles entregar, mas não tinha ninguém. Deixei pendurada numa sacolinha na maçaneta da porta, com um bilhete lhe desejando coisas boas.
Soubemos pelo vizinho que seu Zé, depois de esperar muito tempo pela troca da válvula cardíaca vencida há mais de dez anos teve uma infecção que mexeu com a cabeça dele. Um dia, no posto de gasolina, enquanto abastecia o carro, ele viu chegar um fazendeiro muito rico da região e partiu prá cima do carro do homem, causando danos, esbravejando e gritando feito um desvairado. Prá sorte dele a mulher do tal homem, muito boa pessoa, não deixou o marido nem agredir o seu Zé e nem dar parte na polícia. Reparou que o homem não estava bem e que não podia arcar com o prejuízo causado e tudo ficou por isso mesmo.
No final ele acabou internado, estava mesmo muito doente e não morreu por milagre. Foi encaminhado pro Hospital Dante Pazzaneze, foi operado e tudo correu bem, com a graça de Deus.
Na Páscoa do ano passado lá estávamos nós no sítio novamente, aproveitando o feriado e eles vieram nos fazer uma visita.
Fiquei feliz, abracei muito - eu e a minha Lolô somos abraçadeiras compulsórias. Ofereci um café, eles recusaram. Conversamos amenidades sobre o tempo, perguntamos como havia sido a cirurgia, como dona Margarida estava passando das dores - mais uma a fazer parte do clube dos anti-depressivos...
A neta deles, a quem eu ensinava crochê e tear largou os estudos. Os pais se separaram, o irmão ficou com a mãe, ela com o pai. Com ele aprendeu mecânica de motos e trabalha nisso...
Em meio a um momento de silêncio um encabulado seu Zé, olhando prás mãos nervosas, me disse:
"Eu devia ter ouvido a senhora, dona Rosa. Nunca me arrependi tanto de algo na vida quanto me arrependi de ter saído daqui. Acho que eu já não devia estar bom da cabeça naquele tempo.
Fomos tão felizes aqui por mais de quinze anos e paramos de ver isso, nem sei por que... Se a gente pudesse voltar atrás no tempo..."
Eu não soube o que dizer - o que é geralmente constrangedor prá dona de todas as palavras.
Fiquei calada por um tempo que durou uma eternidade, eles começaram se despedir e eu levantei dizendo "Peraí" e fui lá dentro na cozinha, agarrei uma caixa de chocolates que havíamos trazido prá comer no feriado e dei prá eles. Os olhos da dona Margarida brilharam - eterna formigona.
Assim que eles saíram fui falar com o Marildo prá recontratar eles, mas nem ele nem meu filho quiseram. Disseram que agora com a Nana fazendo tantos plantões em hospital sobrariam pouquíssimos feriados prá curtir o sítio, não fazia mais sentido manter caseiro.
Desde essa vez não voltamos lá. Vamos agora, no Carnaval...
Assim é a passagem do tempo. Perdemos coisas, ganhamos outras, pessoas cruzam o nosso caminho e seguem em outra direção. Ficamos tristes, sorrimos. Fazemos planos e, quando tudo dá errado, começamos de novo ou desistimos.
Quando aprendemos alguma coisa é lucro.
Uma coisa que a vida tem me ensinado é que o maior peso que podemos carregar nesse caminho é o arrependimento - eu não gosto de sentir ele. Por isso sempre tento ajudar, fazer o que acho certo, não importa o que eu perca, não importa o prejuízo.
Arrependimento é caro demais prá eu poder bancar.
Rosinha querida, que bom rever você. Gostei de sua estória repleta de vida e tão colorida. Aguardando por outra e outra e outra.
ResponderExcluirBeijo da Nina
Que linda !
ResponderExcluirSaudades sem fim de vc e suas estórias.
O pior de uma cabeça quente é que o arrependimento é sempre muito frio e solitário né mesmo?
Um abraço e não suma de nois desse jeito
Oii, dona Rosa, que bom ler mais uma história sua!!!
ResponderExcluirOlha, realmente, pelo seu relato,o seu Zé foi inflexível, poderia ter ficado, inclusive por ser ELE o errado, né?
Mas talvez ele já estivesse mesmo ficando doente por causa da válvula, não tem como saber isso.....
Mas admirei mais uma vez sua bondade, tanto com a galinha, como com as pessoas.....
Pessoa incrível, amo essas lições de vida!!!
Ana
Ai Dona Rosa que bom que voltou a escrever. Como senti falta Bjs festivos....
ResponderExcluirOi Rosa, que bom que vim aqui hoje, buscar uma postagem antiga da senhora, aliás como sempre faço, em busca de uma dica , receita ou uma lição de vida, como esta da postagem! Só assim pude saber que a senhora voltou, fez muita falta viu?
ResponderExcluirDeus abençoe a senhora e sua família, muita saúde e paz pra todos, que a senhora continue sendo luz na vida das pessoas , como é pra mim cada vez que venho aqui e as que encontram com a senhora pela estrada da vida. Um beijo
Fernanda Matos
Obrigada por ter voltado! Suas histórias são necessárias!
ResponderExcluirQue história...
ResponderExcluirQuantos arrependimentos nós temos ao longo da vida.