"Que postagem com título de fábula!" - dirão algumas pessoas, já esperando uma lição de moral, talvez ao estilo das fábulas de Esopo...
Quem conhece aquela do escorpião que queria atravessar o rio, mas não sabia nadar? Pede ajuda ao sapo, que o faz prometer que não vai ferroá-lo - e o escorpião promete. Mas, passada a metade da largura do rio o escorpião pica o sapo, que afundando, prestes a morrerem ambos (o sapo envenenado e o escorpião afogado) pergunta: "Por quê???" E o escorpião responde: "Não tenho culpa, é a minha natureza"...
Nesta minha história - que é mais uma vivência - ou antes uma observação das criaturas, vocês vão perceber comigo as naturezas dessas três criaturas...
Sexta feira véspera de Carnaval, dez da noite, fomos em dois carros prá acomodar todo mundo em direção ao sítio. Trânsito intenso por toda a Marginal especialmente próximo ao Sambódromo - todo mundo diminui a velocidade a fim de pegar umas beiradinhas de imagens ao vivo dos carros de desfiles monstruosos, coloridos, brilhantes. Na pista local dezenas de ônibus de turismo parados, muita gente transitando, muito barulho.
Eu e o Marildo no carro pequeno - que a Naninha usa prá trabalhar, que não tem ar condicionado, que o volante é duro como uma daquelas rodas que prendem o ar nos submarinos - já viram em filmes? andando na frente prá guiar os jovens na Ranger - meus três bebezinhos, a Carol (namorada do meu Ike - mulher inteligente é outra coisa, escolheu meu filho e o faz feliz...) e a Fernanda, a quem amamos como filha.
Carro sem música também - graças a Deus! Senão eu estaria ouvindo Raul Seixas em looping e ando com as reservas de paciência totalmente esgotadas em matéria de música, tem hora que todas me parecem só ruídos a me poluirem os pensamentos - o silêncio anda cada vez mais delicioso prá mim. Sim, eu penso que já entrei na terceira idade auditiva por causa desses momentos - ainda bem que não são eternos.
Na lentidão da Marginal Tietê em direção à Rodovia Castelo Branco, enquanto o Marildo fica atento ao trânsito, pela janela aberta prá respirar e sentir a brisa eu percebo um pequeno camundongo caminhando inseguro pela borda da rodovia, entre o asfalto e aquela mureta que acho que se chama guard rail ou seja lá como se fala... Ele não percebia mas caminhava no ritmo de lesma do nosso carro, se assustando e se encolhendo a cada buzina, cada freada, cada som.
Aquela pequena vida e sua fragilidade calaram fundo no meu coração. As noites e os dias são cheios de terror para o pobrezinho... Pode ser atropelado e o motorista nem vai perceber a pequena mancha no pneu, que vai se desfazer aos poucos no asfalto até sumir por completo. Vivo e lá está ele, na sua luta digna de um Hércules pela sobrevivência - onde arranjar nutrientes pro seu corpinho e, se for fêmea, prá alimentar sua família enorme. Durante o dia as aves predadoras os avistam de longe e os engolem com uma bocada - a Marginal é cheia de aves de rapina moradoras das cidades, devoradoras de ratos, camundongos, pombas, pardais, bem te vis...
Pobres camundongos, são tão lindos! Seus olhinhos negros e brilhantes, suas mãozinhas, quando se sustentam nas patas traseiras, parecendo tanto com as nossas, com pequenas unhas e tudo.
É tão cruel o fato deles infestarem as cidades com seus parentes horríveis - ratos e ratazanas, trazendo doenças... Em alguma outra vida eu vou ser uma cientista e vou criar um jeito deles serem limpos e poderem habitar algum lugar, algum parque, sei lá - eu deliro às vezes. Tenho muitos sonhos, muitos planos, não cabem todos numa vida só.
Não tenho pena dos pernilongos. Quando eu for cientista vou acabar com os desgraçados. Ponto.
Bom, acompanhei com meus olhos o camundongo até quando o trânsito se abriu na nossa frente e conseguimos seguir viagem. No meio do caminho tive que descer prá fazer xixi e na porta do restaurante de beira de estrada havia uma cadelinha com os mais belos olhos de mel que eu já vi, com tetinhas carregadas de leite, que se derretia aos nossos carinhos - ao ponto de deitar-se de barriga prá cima prá recebê-los. O rapaz do restaurante nos contou que ela era meio que adotada deles, pois havia sido abandonada por ali. Nós a alimentamos e em determinado momento ela foi prá algum lugar no meio do mato levando na boca algo prá comer mais tarde, indo passar a noite no lugar onde deve ter parido seus filhinhos.
Ai, que vontade de seguí-la, encontrar seus filhinhos e trazer todos com a gente, uma cada vez maior e mais feliz família...
Meu Deus, eu preciso muito do meu planeta lá no céu onde vou viver com todos os cachorros do mundo, com pés de pão, pés de mortadela, rios de Fanta Laranja (porque abusei de Coca Cola, agora minha "coisinha" é Fanta Laranja). Ah, Bolo Musse de Chocolate prá Mim, Paizinho do Céu, que não faça mal pros cachorros caso eles queiram também comer...
Chegamos no sítio acho que eram umas duas da manhã - meus filhos me corrijam se eu estiver errada. Eu estava tão dolorida da viagem, me sentindo uma massaroca de carne com ossos feitos de cacos de vidro pontudos, tudo o que eu queria era um analgésico e minha caminha. Nem me lembro como fui parar nela...
No dia seguinte acordei com minha corneta interna tocando alto prá eu acordar, fazer o café de todos, alimentar as pessoas amadas e adoradas.
Depois de alimentados lá foram eles fazer seus afazeres - trouxemos colchões novos prás camas deles, levamos prá fora os colchões mais velhos , ainda grossos e bons prá doar pro vizinho (ele conhece muitas pessoas com necessidade que irão agradecer aos céus pelos colchões...).
Daniel - o garoto que cuida das nossas galinhas - já entrou neste ano no seminário. Serão oito anos de aprendizado, mas ele vai com certeza fazer a diferença prá melhor onde estiver. Sempre que chegamos lá ele faz questão de sentar durante um bom tempo prá conversar comigo, diz que adora me ouvir falar desde que era pequeno. Tão doce!... Eu disse prá ele que faltam semeadores do bem neste mundo, gente com o coração cheio de amor e de perdão, que sempre deixe o julgamento prá Deus. Alguém com quem desabafar um erro, ouvir um conselho, um ombro amigo prá chorar... Se ele juntar o coração bom que ele tem com as palavras de Jesus ele vai ser esse semeador, eu não tenho dúvidas.
Ele veio nos contar que algum predador estava matando todas as galinhas e não as estava comendo - só matando. Levou meu marido em vários lugares e foi mostrando a ele os corpinhos destroçados, eu também vi alguns quando fui colher frutinhas - jambolões - prá fazer geleia.
Na verdade, como ele está morando no seminário, a mãe dele alterna o cuidado dos dois sítios - o deles e o nosso. E haja trabalho no dela - ordenhar as vacas, cuidar da horta, das galinhas, das plantações de feijão e de soja, dos pés de pêssego, das ovelhas... A mãe dele - eu já contei prá vocês - é a mulher mais inteligente e mais trabalhadora que eu conheço. Se o mundo acabasse e sobrasse pouca gente, com ela como líder a gente evoluía rapidinho, nada de voltar à época medieval ou à idade da Pedra, como dizem alguns. Se clonassem ela antes, então! Vixe! Dá chance prá elas estudarem e a gente vai prá Marte e volta três vezes e a cura do câncer já seria dada como certa.
Bom, eu fiquei muito triste de ver galinhas adotando os filhinhos das outras mortas - como são lindas as galinhas... - ver tão poucas delas andando e fazendo seus barulhinhos que me fazem tão bem à alma. E o Marildo foi fazer tocaia a madrugada toda, com binóculo que vê no escuro - e descobriu que era um cachorro preto que estava caçando as galinhas!
Aconteceu como sempre acontece: alguém arruma um filhotinho, ele é uma fofura, ele cresce e cavoca o jardim, sujando tudo de terra, entra dentro de casa e marca seu território com xixi no sofá da sala, arranca roupa do varal prá rasgar e fazer marafunho e rói o chinelo favorito cheio de strass da dona da casa.
Os donos chamam ele prá fazer um gostoso passeio pelo campo, ele vai todo feliz e sorridente, abrem a porta do carro, põe ele prá fora e pisam fundo. O pobrezinho corre atrás até não poder mais, fica perdido, não conhece os cheiros, sente fome e sede, sente frio. Chove e ele não tem mais um teto.
Depois de um tempo a fome vence e o instinto de caçador que ele tinha adormecido desperta e ele mata uma galinha prá comer - e acaba pegando gosto pela matança. O medo e a insegurança que ele sentia, coisas que os humanos que o abandonaram fizeram ele sentir já não tem importância: ele descobre uma autonomia que ele não sabia possuir prá se alimentar - descobre que não precisa mais dos donos. Na natureza ele acha água - e no meu sítio ele acha essas frágeis criaturas de penas, tão fáceis de pegar e de matar - ele tem poder, ele tem força!
Pobre cachorrinho, eu pensei. Quanta tristeza e solidão ele sentiu. Quanto abandono... Se enrolou e dormiu num lugar de terra seca com medo de todos os ruídos da noite até se acostumar com eles e vencê-los...
Meu marido chamou o pai do Daniel prá bolarem uma armadilha prá pegar o cachorrinho - isso porque meu marido tava furioso de perseguir ele pelas nossas terras (ele disse que o cachorro parecia rir da cara dele...). Mais quatro galinhas tinham sido mortas na noite anterior...
Eu chamei o Daniel e disse prá ele que nenhum mal podia ser feito ao cachorrinho - que ele tinha que ser capturado com saúde e depois se pensava se ele ia ser mantido ali no sítio mesmo, talvez acorrentado numa corrente grande, que ele pudesse correr bastante, a gente compraria ração, uma casinha, dava as vacinas e as galinhas tinham que ficar espertas e não irem pro lado dele.
Ele me prometeu que assim seria.
A Dani - a moça que faz a limpeza prá gente - acompanhou toda a história (ela também adora cachorros, tem oito pinschers de vários tamanhos). Trabalha de limpeza em vários sítios, sendo que vem no nosso sempre no final da tarde.
Me contou que dia 14 de março ia ter um casamento e que tava um alvoroço, todo mundo indo prá cidade alugar roupa ou mandar fazer na costureira, marcar cabeleireiro, comprar sapato, bolsa. E me contou que tava chocada com o que tinha acontecido naquele sábado mesmo (ela veio lá em casa era perto das cinco da tarde): uma vizinha dela de bem perto tinha passado o sábado na cidade, nos preparativos e, quando voltou, encontrou a única vaquinha que tinham morta no quintal da casa. Quem matou a vaca destrinchou a pobrezinha e só levou as partes chamadas "nobres", o resto deixou ali sendo roído de moscas.
Que tipo de ser humano é esse? Matou a vaquinha prá vender as carnes nobres ou prá fazer um churrasco com elas? Sem respeito à vida da pobrezinha, que tava dando de mamar pro filhinho - era vaquinha leiteira... A única que a família tinha pra consumo próprio, prá fazer seu queijinho branco, sua manteiga...
Repito: que tipo de ser humano é esse, meu Deus?
O cachorrinho simplesmente não viu escolha a não ser matar galinhas prá viver - e se perdeu nessa escolha.
Mas o ser humano TEM escolha.
Tem RESPONSABILIDADE pelo mal que pratica...
Meu coração dói. Os cardiologistas discordariam, mas meu coração dói, eu sinto.
Sinto que a humanidade ainda tem muito que aprender em matéria de respeito a todas as outras vidas que toca, às vidas que abandona, às vidas que ceifa...
E, no entanto (me diz a Lolô, meu anjinho que faz aniversário dia 29 e eu não vou poder abraçar nem beijar nem esmagar de tanto amor nem dançar com ela chorando nós duas a música que tocou quando ela nasceu - estou de quarentena, já já eu explicando):
"Hoje em dia não tem mais carrocinha, as pessoas acodem os animais abandonados e procuram lares prá eles. Fazem páginas adoráveis no Face e no Instagram prá animaizinhos cegos, sem perninhas, que são amados e cuidados... Compram caminhões de cachorros que iam pro abate e o pessoal do GreenPeace patrulha os oceanos prá impedir o massacre das baleias. O mundo tá evoluindo, velhinha. Deus tem paciência..."
Minha Lolinha está certa. Meus anjos estão certos...
O mundo está evoluindo e Deus tem paciência.
O Daniel me mandou uma mensagem com foto no celular. Disse que não queria ver eu triste, que a mãe, o pai e a irmã tinham conseguido pegar o bichinho e que já tinham arrumado um lar prá ele na cidade. Final feliz prá ele, graças a Deus.
Olha que bonitinho - quem diria que é um predador? Se Deus quiser isso logo vai ser passado na vida dele - se bem que as pombas que fiquem espertas e não apareçam pelo quintal...
Quanto a mim - às vezes me sinto um camundongo. O mundo é grande demais prá mim, com todas as suas questões, todos os discernimentos que eu tenho que formar a respeito de tudo, a respeito de mim - todas as ansiedades, os medos (e eu agora tão fraca, tão dependente dos cuidados do marido e dos filhos quando eu é que deveria estar cuidando deles...)
Na vida já fui a galinha e abrigava todos debaixo das minhas asas. Hoje sou apenas um camundongo. Às vezes. Nem sempre, só às vezes...
Com essa pandemia agora a vida de todos nós está passando por uma reavaliação, não é mesmo? Meu marido e meus filhos estão todos em casa, cuidando de mim. Começaram bem antes de todo mundo, pois minha doença fez com que eles tivessem que ficar em casa prá não pegar o vírus e trazer prá mim, pois eles dizem que sou grupo de risco pela idade e pela doença e posso morrer.
Nosso quarto de casal agora é só meu - aqui fico trancada o dia todo, só saindo prá ir ao banheiro, que também tenho um só prá mim, que ninguém mais usa. Na porta do banheiro escrevi uma placa: "Bat Caverna da Velha. Não entre" - mais prá servir de aviso prá empregada. Na porta do quarto eu tinha escrito "Cela da Condenada" mas meus filhos ficaram bravos. Eu mudei prá "Quarto da Velha. Não entre". Eles cozinham e trazem tudo prá mim na porta e eu uso máscara o tempo todo.
Sou a pessoa mais amada e mais preciosa do mundo - eles que dizem, não eu. Minha mãe me liga todo dia, tão preocupada comigo - e ela tem 84 anos, também é grupo de risco, mas se preocupa comigo.
Minha família me trata como se eu fosse feita de cristal, como uma princesinha. Eu costuro prá eles o dia todo, pinto, canto no Smule. Eles gostam, faço eles felizes com minhas cantorias. Mando elas prá minha mãe e ela e minha irmã dizem que eu tenho uma voz linda. (Toma essa, minha sogra! Eu te amo, mas você dizia que eu tinha a voz fanhoca da Regina Duarte - chupa no céu esse picolé de uva!).
Minha empregada me diz que acha lindo demais todos os cuidados com os quais minha família me cerca, que os filhos dela nem sequer contribuem com as despesas, viajam e nem avisam. E eu não sei o que dizer. "Talvez eu seja muito fraca e Deus sabe disso. Você muito forte e Deus sabe disso também..." . O que mais posso dizer se não tenho explicação prá dar?
Sou cercada de cuidados e de carinhos por todos os lados, não apenas da família, mas também da minha médica, da fisioterapeuta e da Pri, minha Super Psicóloga.
Menina de tudo, até a voz parece de menininha. Mas tem abraços e palavras poderosas e, assim como tem me ajudado muito, espero que ajude vocês - ela escreveu um pequeno livro prá socorrer a todos nós neste momento atual, a lidarmos com essa fase Covid-19. São apenas 12 páginas, nada de preguiça de ler, é pro bem de vocês.
E olha: eu sei que tem gente que vai ler essa (longa quiném a preula) postagem (certo, Ike?) e vai ficar cansado de tantas palavras. Fazer o quê, eu sou uma velha tagarela. E sei que tem gente que vai achar que estou me gabando dos filhos e sentir que merecia isso mais do que eu - e provavelmente merece mesmo. Eu sei que eu talvez seja merecedora de muito pouca coisa, recebo de Deus dádivas de misericórdia muito além da conta e só ele tem explicação pra isso.
Eu tento ser boa. Nem sempre consigo, mas tento...
Mas ainda estou caminhando...
Fico feliz por si é super bom quando somos amados com pureza e de coração.
ResponderExcluirA Rosa merece.
Tudo de bom para si e sua família.
Beijinhos do outro lado do oceano.
Tina
que linda! estava com muitas saudades de seus comentarios. Deus te abençoe muito e proteja voce e sua familia desse mal que está assolando o mundo!
ResponderExcluirRosa, boa tarde. Fico muito feliz com seu retorno, muito mesmo! Penso que a gente recebe o que planta.Todo esse amor e cuidados que vc recebe hoje, plantou lá atras e acho que continua plantando então, receba com alegria essa farta colheita. Um grande beijos pra todos. Estejamos todos com Deus e, escolhendo com muito cuidado nossas sementes.
ResponderExcluirPois seja essa tagarela... Camundongo ou galinha, vc é maravilhosa!!
ResponderExcluirContinue se cuidando que não tá fácil. Amar é cuidar.
Beijão