sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

O Coliseu



O que fazer quando a vida se torna um fardo que você pensa não ter forças pra carregar?

A cada dia que passa sinto menos vontade de sair de casa, de olhar o mundo a minha volta...

Mas há uns dias atrás, aceitei o convite do meu marido prá ir até o metrô Penha buscar minha Lolinha, voltando do trabalho. Coisa tão simples, não é mesmo? Mas não prá mim...

Meus olhos sempre estão alertas a tudo o que se passa e usando meus poderes sobre-humanos eu olho cada rosto e adivinho por trás de seus semblantes todas as suas dores na luta pela sobrevivência: as contas prá pagar, o risco do desemprego, a solidão, a dor, o medo... 

Então, após pegarmos minha Lola, contornando o metrô prá irmos prá casa eu reparei um rapaz, a idade pareando com a do meu menino, sentado encostado num prédio abandonado, todo sujo... A Imagem do abandono.

Eu falei: "Pára! Pára o carro!Lolinha, desce lá nos carrinhos, compra batatinha frita, cachorro quente, refri, vamos levar lá praquele menino!...

Meu marido, pés e mãos atrelados mecanicamente à direção do carro, disse que não dava prá voltar, que a gente ia rezar por aquele menino e que no dia seguinte a gente se preparava e trazia alguma coisa.

"Mas ele sente fome HOJE e rezar é muito bom, mas não enche a barriga dele. Vamos dar a volta SIM, senão eu mesma vou, desço de bengala e vou lá comprar!"

Meu marido, a contragosto, deu a volta no metrô, a Lolô desceu e com apenas 15 reais veio com uma batata grande, um cachorro quente no capricho, com tudo que tinha direito e uma Coca. Fizemos o contorno até chegar ao rapaz, meu marido parou o carro aos resmungos de "vou é tomar uma multa, isso sim...", desceu e foi levar o lanche pro tal menino. Conversou com ele uns dois minutos e voltou transformado: "Você tava certa, benzão, ele tava com fome mesmo, você fez bem".

Mas eu tava chorando. Do outro lado da rua haviam outros dois mendigos deitados com um cachorro e prá eles meu marido ia deixar prá depois, de qualquer jeito.

Se a gente contorna todo o metrô encontra vários, e depois no centro da Penha, nos largos e praças, sempre tem tantos...

Eu chorei e disse baixinho, a garganta doendo, as palavras saindo sufocadas de tristeza:

_"Eu não gosto deste mundo. Ele é duro, é cruel. Estou cansada de ser testemunha das misérias da vida, cansada de tanta dor que eu vejo e sinto..."

Dentro de mim até já cheguei a pensar que, se um dia eu encontrar Deus face a face, primeiro vou perguntar prá Ele por quê ele me fez assim. Depois eu ia ver se havia um jeito de Deus viajar no tempo e, lá atrás, quando ele tirou a Rosa da sua imaginação e a fez um ser pensante, se tinha como deletar, me apagar de toda história - igual Jorge pede a Deus no filme "A felicidade não se compra". Pedir a Deus prá não nascer, assim todos os meus problemas estariam resolvidos. Não existiriam minhas dores físicas - que são extenuantes, caso alguém se pergunte... - e principalmente não existiria todo esse sofrimento emocional dentro do meu coração, de imaginar cada vida que começa neste mundo prá carregar fardos tão pesados pela sobrevivência...

Esse pensamento ainda é recorrente dentro de mim - mas todas as vezes que ele surge eu o combato com a seguinte ideia:

Como eu me sentiria se um dos meus filhos se sentisse assim a cerca da própria vida? Como me entristeceria se um deles desejasse nunca ter nascido - e aí eu penso como Deus deve ficar triste comigo, por renegar a ideia dele de me trazer ao mundo.

Aprendi duas coisas fazendo terapia - minha terapeuta é muito boa, me faz usar as células cinzentas prá pensar ao invés de apenas sofrer:

Se alguém me pedir cinco reais e eu os tiver na bolsa eu posso dar. Se não tiver, não posso - ou seja: há limites para a ajuda que eu posso dar. E quando não posso, não é culpa minha.

Segundo: sou uma tremenda egoísta. Quero todo mundo feliz prá viver sem culpa a felicidade que eu tenho. A infelicidade alheia me faz mal. Quero meus filhos habitando um mundo bom.

É isso.

Então estou fazendo mais toucas, bem antes de chegar o inverno - porque quanto mais toucas eu fizer, mais pessoas se servirão delas nas noites frias.

E prá bloquear meus pensamentos tristes eu comecei a brincar de bonecas nas horas vagas, customizando-as. 

Customizei uma blythe xing ling que eu comprei e fiz roupinhas, modifiquei o rostinho e se alguém quiser comprá-la é só fazer uma oferta: o dinheiro da venda será destinado a comprar comida para a instituição que fornece almoço aos moradores de rua.

Mexer com bonecas é muito bom: elas não sofrem, não pensam, tenho total controle sobre elas. Pego uma boneca feia, abandonada, dou-lhe um cabelo novo, rosto novo, faço roupinhas. Esqueço por alguns momentos que sou apenas uma mísera testemunha distante dos incêndios na Amazônia e na Austrália, respiro fundo e deixo de sofrer por todos os direitos trabalhistas que foram roubados dos trabalhadores brasileiros, das grávidas que podem ser demitidas, das pessoas que só vão se aposentar depois de mortas.

Esqueço que somos governados por uma criatura que eu não contrataria nem prá lavar meus banheiros, um ser da mais baixa categoria, racista, homofóbico, cruel e burro ao extremo que me dá ao mesmo tempo nojo e vergonha de ser brasileira.

Respiro fundo e esculpo uma boquinha, uns dentinhos, pinto algumas sardas e parto pro próximo desafio.








No sítio os caseiros pediram demissão numa confusão idiota por causa de uma galinha branca - história prá outro dia. 

Nosso velho cavalo Pé de Pano morreu. Fiquei muito triste... 

Mas um cavalo do vizinho arrebentou a cerca e engravidou a velha Orelhinha e olhem a potrinha que nasceu:




Ainda não tem nome.

Meus três filhos já estão encaminhados: O Ike trabalha no mesmo lugar que o pai, a Lolô passou num concurso e trabalha num fórum criminal - lidando com pedófilos e homicidas o tempo todo (mas se tem alguém que tem força e coração prá conseguir lidar com isso é minha Lola) e minha Naninha está fazendo residência em cirurgia num hospital público. Meu marido sonhava com os hospitais Albert Einstein da vida e ela disse, bem ao estilo da mãe dela :"Nem sonha, pai. Vou fazer em hospital público e depois vou ser médica em um deles. Não quero ser rica. Quero ser útil onde mais se precisa".

Muito orgulho desses filhos que eu tenho. Eu sempre digo que eu poderia fazer o mundo um lugar ainda melhor se tivesse tido uns vinte filhos - já pensou?

Nos momentos em que eu me sinto numa viagem de carro desconfortável, que está se estendendo muito, que está demorando muito prá chegar ao destino, em que eu resmungo pro Pai:"Falta muito? Já chegamos?" eu sou salva dessas ideias absurdas pelos três anjos da guarda que Deus me deu, que ele me fez trazer ao mundo pro meu próprio bem.

Ele sabia que chegaria o dia em que eu ia precisar de muitos anjos prá me ajudar.

Ou porque sou quebrada, ou porque me falta algum hormônio dentro da cabeça ou porque a fé que trago no peito é menor que um grão de mostarda - vai saber...

A todos vocês que partilham comigo este Coliseu de lutas diárias, matando cada um de vocês um leão por dia: tenham força e deem forças uns aos outros. Assim como eu preciso, vocês que são mais fortes auxiliem os mais fracos ao seu lado, como eu sou ajudada.

Senão a vida fica difícil demais prá se viver.

Até outro dia.


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7 comentários:

  1. Gostei que você voltou a escrever, estava com saudade de ler! Te amo, mãezinha!

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  2. Olá Rosa:)

    Que bom que voltou.

    Saudades das histórias e de tudo.

    Tudo de bom para si e os seus.

    Beijinhos

    Tina

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  3. Quanta saudade de ler seus textos novamente. É muito boa a sensação de vir aqui e encontrá-la. Nunca perdi a fé de que voltasse. Obrigado amiga.

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  4. Ai que bom que você voltou! Quanta saudade de ler seus textos! Sabe que outro dia fiz um viés do jeito que você ensinou, fazendo o tunel de tecido, pensei tanto em você, muito obrigada por ensinar! Sobre a boneca: quero ajudar, mas eu não tenho nem ideia do preço dela, ainda mais customizada por você, por favor, se puder me envia pelo email yaralucas@yahoo.com.br.

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  5. LEGAL ,GOSTARIA DE TE CONHECER.SOU PROFESSORA APOSENTADA.BEIJOS.

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  6. Vc sente tudo com muita intensidade, né? E dói, dói bastante... Gostei da sua alternativa e da proposta de ter limite.
    Um abração aqui do Amazonas.

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  7. Parabéns pelos seus filhos, Rosa, de coração.

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