sexta-feira, 29 de abril de 2016

Catalogando lágrimas


Já pararam prá pensar em como nós, seres humanos, temos medo da tristeza? Pois temos. Todos nós, por mais jovens ou velhos que sejamos, por mais fé que a gente tenha no coração, sendo ricos ou pobres, feios ou belos - todos nós nos pelamos de medo da tristeza, fugimos dela.


E é assim mesmo: fomos criados prá sermos felizes. Deus, que é um pai amoroso e bom, nos quer felizes. Mas, da mesma forma que a criança não entende porque o pai passa remédio que arde no machucado, prá não infeccionar e sarar logo, a gente também não entende uma porção de coisas na vida, por mais inteligente que a gente seja. E eu acredito sinceramente que de tudo se tira uma lição, por mais difícil de aprender que ela seja...

Amanhã é aniversário da minha filha Nana. Pensei que então hoje fosse um dia bom prá contar do dia em que ela nasceu - um dia no qual fui infinitamente feliz, mas sofri como poucas vezes na minha vida. Mas, pensando melhor, vou deixar essa história prá outra ocasião e me transportar pro presente, pra acontecimentos que estão mexendo com o coraçãozinho da minha menina - seu gradual nascimento como futura médica.

Contei prá vocês que ela está fazendo plantões em hospitais - pois já está no 5º ano de Medicina. Os plantões menores são de 12 horas, mas ela também tem plantões maiores intercalados, de 24 e até de 36 horas. 

Isso mexe com o emocional dela - demais. Uma pequena parte disso vem do cansaço, obviamente... Mas os dramas que ela assiste são o que mais influência tem, sei muito bem...

Ela chega em casa e eu sempre examino seu semblante à procura da tristeza - e, ultimamente, ela está sempre lá, em maior ou menor grau. E eu, perguntando como foi seu dia, geralmente consigo que ela compartilhe algum acontecimento, alguma história, dividindo um meio quilinho do seu fardo tão pesado...

Um dia desses ela me contou - chorando - que tinha atendido uma senhora, vítima de um derrame. Ficou ao lado do médico plantonista enquanto a senhora era atendida, aprendendo os procedimentos. A mulher chegou lúcida, deitada numa maca, minha filha conversou um pouco com ela. O médico prescreveu medicamentos de emergência, prá tentar minimizar as sequelas e a enfermeira encarregada anotou tudo na ficha. Minha filha continuou o plantão, assistindo outros atendimentos - e, volta e meia, retornava àquela senhora, prá ver como estava. A cada vez que a via, deitada na maca, no corredor do hospital muito lotado de doentes, reparava que a mulher ia ficando mais e mais alheia...

Na ficha de paciente não constava que o medicamento havia sido aplicado e minha menina, sempre tão preocupada com tudo, ia procurar a enfermeira encarregada - e mal humorada esta lhe respondia que ainda não tinha tido tempo... 

Minha filha passou aquele plantão inteiro agoniada. Cansou de ir atrás da enfermeira, atrás do médico que havia feito o atendimento e prescrito o medicamento. 

Em determinado momento ela reparou que a mulher não reagia mais...

Desesperada, minha filha foi mais uma vez atrás do médico - desta vez toda nervosa... "Que isso não se fazia, que se fosse a mãe de alguém importante todo mundo tava dando atenção, que nem um animal merecia aquele abandono..." e, face o nervosismo dela, o médico mesmo foi lá aplicar o medicamento - mas disse que ela era muito estressadinha e uma pessoa difícil de se conviver...

De outra vez ela me contou que havia uma senhora muito gorda deitada numa maca e que ela reparou que a mulher chorava baixinho, quase sem ninguém perceber... Ela se aproximou, perguntou se estava tudo bem e a mulher respondeu que estava com muita sede. Minha filha pegou a ficha dela, presa nos pés da maca e viu que ela iria realizar um exame que necessitava jejum absoluto, tanto de comida quanto de água e explicou isso prá mulher... Mas, movida de compaixão, disse assim prá ela:

-"Olha, o que eu posso fazer é molhar um pedaço de algodão em água e molhar um pouco a sua boca, deixar cair algumas gotinhas, tá bom?" - e foi isso que fez.

Enquanto fazia isso, a mulher começou a chorar mais e mais, a ponto de soluçar - e minha Naninha ficou até assustada, pensando: "Meu Deus, será que eu fiz alguma coisa errada?"!!!

A mulher se acalmou e contou que tinha três filhos, mas que eles não se importavam com ela. Que o marido havia falecido há quase um ano e que ela o acompanhara o tempo todo, inclusive passando algodão em seus lábios nessa mesma situação. Explicou que seu choro era de alegria e de tristeza, tudo junto. De tristeza por pensar que não teria ninguém que lhe desse água nessa hora difícil, estando completamente sozinha e de alegria por Deus ter respondido suas preces e ter enviado a ela um anjo...

Minha filha foi a única a atender um garoto de 14 anos, paraplégico devido a um tiro levado num assalto - ele era o assaltante. Os colegas dela se recusaram a atender, pois diziam que o rapaz merecia morrer e que, se dependesse deles, morreria mesmo - por falta de atendimento...

Atendeu uma prostituta esfaqueada - que, segundo os colegas dela, melhor estaria morta (menos "lixo" no mundo...).

Um rapaz que fez cirurgia de mudança de sexo, realizada pelo Estado - e que tanto os médicos residentes quanto os plantonistas colegas dela tratavam como se fosse uma aberração...

Estes são uma fração das histórias que ela me conta - e mesmo essas são apenas uma fração das que ela vive e não compartilha comigo (diz que eu iria chorar se ouvisse todas - e ela me conhece muito bem...).

Tem dias nos quais ela chega tão nervosa, com a cara tão fechada, que até se recusa a falar... Sem apetite, come pouquinho, só se interessa em tomar banho, estudar calada na cama e ir dormir, calada... Um ou dois dias depois ela abre as "comportas da represa", cheias além da conta - retira das minhas mãos a costurinha que estou fazendo, senta do meu lado no sofá, coloca suas pernas sobre as minhas (como se ficasse no meu colo, sem ficar...) e apenas diz assim:

-"Ai, mãe, hoje eu vi tanta dor, tanta morte..."...

E chora. Chora enquanto eu a beijo, enquanto eu choro junto - porque infelizmente eu nasci chorona, ninguém pode chorar perto de mim que eu choro junto, sou uma vergonha de mãe...

Daí, quando a fonte dá uma secada, ambas com os olhos vermelhos e inchados, a cara lavada, eu pego seu lindo rostinho em minhas mãos e digo prá ela ser forte e ter fé em Deus que tudo vai dar certo...

-"Tudo talvez fosse mais fácil se você tivesse escolhido ser uma botânica ao invés de ser médica, filhinha. Você viveria cercada de flores... Mas sabe, mesmo assim, rodeada de flores, a dor alcança a gente. Não importa se a gente é dona de casa ou empresária, se a gente é analfabeta ou tem mestrado e doutorado, a dor e a tristeza aparecem volta e meia na vida da gente. E quer saber por quê? Porque a dor é a escola - a risada é o recreio. Na vida, infelizmente, é a dor que ensina - por isso ela aparece tanto... E é por isso também, meu amor, que muitos colegas teus acabam ficando insensíveis, endurecidos na profissão: é uma auto-defesa. Eles se encouraçam, na tentativa de se protegerem da dor alheia... 

Se eu pudesse, meu amor, eu te faria um escudo de tricô ou costurando algum tecido mágico, prá te proteger - mas eu não posso - e nem sei se devo...

Você diz que só vê tristeza, dor e morte e se apieda das pessoas que você vê - mas se esquece de que está vendo elas no seu pior momento. Ninguém vai no médico à passeio: vão porque estão doentes e muitos vão porque estão morrendo - faz parte da vida. Você não se dá conta, mas muitos vão sarar, sair do hospital e seguir com suas vidas, tendo alegrias e tristezas igual todo mundo. E os que morrem - é duro, eu sei... - mas Deus assim permite e os recebe do outro lado, pois é pai deles assim como é teu também, e os ama...

Antes de qualquer atendimento reza, minha filha. Não vai deixar de vir dor e tristeza, mas Deus vai mandar força prá você aguentar e seguir em frente.

Eu estava pensando o seguinte: é no calor da fornalha que a gente sabe de que metal é feito... Lembra das aulas de Química, no colégio? Dos pontos de fusão dos metais? Pois então: o ouro é um metal maravilhoso, extremamente valioso. Os seres humanos se matam por ele... 

Quando a gente quer dizer que alguém é bom demais no que quer que faça, diz que essa pessoa vale ouro, não é? - e o ouro praticamente só é usado prá ornamento... O ponto de fusão dele é pouco mais de 1000º C - alto, né? Se a gente parar prá pensar, a água ferve aos 100 º C e a gente já se queima tanto com essa temperatura - imagina mil graus.... 

Já o tungstênio, um outro metal que a gente mal ouve falar tem um ponto de fusão que chega a quase 4 mil graus Celsius - é preciso muito mais fogo, muito mais calor prá desmanchar, derreter o tungstênio. Por isso mesmo um fiozinho dele vai dentro das lâmpadas - e aguenta o calor do gás lá dentro prá fazer ela acender, gerando a luz...

Deus não te criou prá ouro, filhinha... Ele te criou prá tungstênio. Você não veio ao mundo apenas prá decorá-lo com a tua presença - você vai ter muita utilidade...

Você sempre vai ser o anjo doce que pinga água na boca de alguém no momento mais necessário, vai ser a mão macia que segura uma outra mão no seu momento derradeiro, a voz suave do amor do nosso Paizinho do Céu a sussurrar algum consolo...

E, se tiver que chorar, filha, chora. Chora que chorar não é pecado, até Jesus chorou mais de uma vez na vida... E nem todas as lágrimas são ruins, afinal de contas, principalmente se são lágrimas de amor e de compaixão...".

É o que eu posso fazer: falar e chorar com ela. Por mais que eu queira correr pro lado dela e trabalhar junto, como voluntária, afastando a dor e a tristeza prá longe do meu bebê, a vida tem, prá cada uma de nós, um caminho diferente, muito embora paralelo...

Ela vai prá frente do campo de batalha - e os que estão na frente sempre levam mais flechadas... Cá fico eu, na retaguarda, rezando e esperando que ela volte, fazendo uma comidinha gostosa prá alimentar seu corpo, costurando uma blusinha nova prá ela usar com um sorriso, um jaleco novo prá ser seu uniforme de guerra...

Feliz aniversário, Nambinha da mãe, meu bebê chantilly...
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21 comentários:

  1. Amiga querida, parabéns para a sua Naninha! Parabéns também para você, mãe amorosa, zelosa, carinhosa. Que bom que ela tem uma mãe que lhe dá retaguarda, colo, carinho, força, exemplo e fé. Deixo aqui o meu abraço à ambas. Todos os dias oro pelos meus amigos de perto e de longe, e hoje minhas orações serão especiais para vocês, para que o Senhor as abençoe, lhes dê força e fé, sempre. Muitos beijos e abraços carinhosos.

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    1. Muito obrigada, Ligia querida. Saber que estamos nas tuas orações é uma alegria e uma consolação. Beijos!

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  2. Sem encontrar palavras para dizer algo melhor, faço minhas todas e cada uma das palavras de Dª Ligia Barreto.
    Parabéns para a doutora tão sensível e tão humana, digna filha de tão maravilhosa mãe!
    Abraços,
    Teresa

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    1. Obrigada por todo esse carinho, Teresa querida. Beijos!

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  3. Pessoa linda a sua filha e dê os meus parabéns!
    Meu filho fez hoje 34 anos e eu adoro set a mãe dele...pois é um menino de bem com a vida!
    A Rosa tem bons filhos por certo é uma boa mãe e isso faz de nõs mães gratas à vida!
    Bj amigo

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    1. Que linda, Graça querida! Dê os parabéns atrasados ao teu querido filho e que Deus abençoe todos os dias da vida dele com um caminho repleto de trabalho e fé. Beijos!

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  4. Pessoa linda a sua filha e dê os meus parabéns!
    Meu filho fez hoje 34 anos e eu adoro set a mãe dele...pois é um menino de bem com a vida!
    A Rosa tem bons filhos por certo é uma boa mãe e isso faz de nõs mães gratas à vida!
    Bj amigo

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  5. Minha querida, é verdade que a dor está em todo o lado, mas, na medicina o contacto é inevitavelmente mais profundo. Sei, por experiéncia própria que, com o tempo e por defesa se desenvolverá uma carapaça que permite uma distáncia segura e saudável - que não é indiferença.
    Feliz aniversário querida dra Naninha, sua linda!
    Beijinhos

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    1. Realmente, Nina querida. Acho que, com o tempo, minha Naninha vai ficar mais forte sem jamais perder sua doçura e humanidade... Beijos!

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  6. Olá Rosa! Parabéns a sua filhinha! Parabéns a você que educou uma filha tão maravilhosa, que vai saber encontrar o caminho do meio e equilibrar as emoções para poder atender os necessitados e passar o melhor dela para os doentes! um beijo carinhoso!
    Nina

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    1. Muito obrigada pelo carinho, pelas palavras tão sábias, Nina querida. Beijos!

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  7. Chorei...
    Parabéns Nana e parabéns Rosa, vc é, realmente, um ser de outro mundo. Um beijo gigante prá vcs.

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    1. Muito obrigada, Marili querida, mas eu não sou de outro mundo não... Só bondade tua. Beijos!

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  8. Rosa

    Parabéns à Nana pelo aniversário e que ela tenha muito sucesso em todos os aspectos da vida dela. Muitas bençãos de Deus e que ela cumpra a missão que lhe foi dada.

    Como em todas as profissões é necessário ter o dom pois em tudo há necessidades a serem atendidas. Sua filha está desenvolvendo a compaixão o que é MUITO diferença de ter dó de alguém. Ter Compaixão ajuda, ter dó atrapalha mesmo quando a intenção é ajudar.

    Não sou médica mas procuro não sentir dó das pessoas princ. quando posso ajudar.

    Deus abençoe sua filhota Nana, assim como a Lola e o seu menino.

    Rosa, vc está melhor de sua saúde? continua se cuidando, né? quem gosta de cuidar dos outros precisa em 1º lugar se cuidar. E sua mãe, está melhor?

    Tudo de bom para todos vocês.
    Bjs

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    1. Fatinha querida, obrigada pelas palavras de carinho e também pela preocupação. Vou me cuidando sim, do jeito que dá, trabalhando enquanto faço isso e contando com a ajuda de Deus. Beijos e muito obrigada!

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  9. Rosa, minha querida Rosa.
    De uns anos para cá, talvez pela consciencialização de certos aspectos da vida, a minha sensibilidade se exacerbou e a lágrima vive às portas dos olhos. Ultimamente, então, a situação tem vindo a se agravar. Por isso, não se culpe de ter nascido "chorona".
    E lhe digo que foi difícil ler este seu relato, por ter que, a dada altura, me debater com a emoção toldando a leitura.
    "a dor é a escola - a risada é o recreio" - nunca li uma definição de vida com mais poesia, e já tantos a definiram!
    "Deus não te criou prá ouro, filhinha... Ele te criou prá tungstênio" - Rosa de Deus! Aqui eu, que já me derramava a potes, ri. Ri de vontade, ri com a alma e com o corpo todo, porque só você pra fazer uma tal - e perfeita - comparação.
    Este seu texto merecia ser publicado, de tão rico em emoção e, pela forma como você o escreve, lindamente, com todos os "pingos nos is" e todas as "vírgulas" no lugar exacto, sem necessidade de edição: porque se mexer, estraga.
    Você é ouro puro, Rosa. Como eu gostava de a conhecer, lhe digo do fundo do meu coração. É daquelas pessoas que a gente lê, aqui neste mundo da blogosfera e "sente" a sua alma falando no nosso ouvido, ainda que não lhe ouça a voz.

    *espero que seus problemas de saúde, e os de sua mãe estejam sendo levados com força para os "segurar".

    Parabéns pelo aniversário da Drªde coração dourado, um bj especial para você.

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    1. Carmem querida, que lindas palavras, nem sei como agradecer... Meus textos são sempre coisas simples, meros desabafos, nada de pretensões literárias... Mas fico feliz que você e outras amigas gostem. Beijos e muito obrigada...

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  10. Rosa querida,

    Seus filhos são um presente para o mundo!
    Feliz dia das Mães!
    Grande e carinhoso abraço

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    1. Doutora querida, muito obrigada e muitos beijinhos atrasados pelo Dia das Mães!

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  11. Bom dia! Descobri seu blog por acaso e simplesmente estou maravilhada com tudo... Parabéns! (pedagoga.rayluar@yahoo.com.br)

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  12. Rosa, como sempre sua postagem me emocionou bastante. Sua filha é uma anjo de Deus e que veio para dar um pouco de alívio e amor a muitas pessoas sedentas disso!! Me tocou profundamente, continue dando força a ela!! Que Deus proteja sua filha, abençoe, ilumine e dê sabedoria para saber lhe dar com as adversidades da vida!! bjsssssss

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