quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Nossa verdadeira natureza


Quando a Kelly decidiu que era hora de arrumar um emprego em empresa - e deixar de trabalhar prá mim como doméstica... - saiu daqui da minha casa muito triste. Ambas choramos, pois até hoje nos gostamos muito, nos visitamos - mas ela queria convênio médico, coisa que a empresa dava...


Antes de ir embora arrumou uma substituta, vizinha dela lá na favela do Pirajuçara.

-"A Fernanda é de confiança, dona Rosa. É uma moça nova, mas muito trabalhadora e tá muito precisada do emprego..."

Eu eu tava "precisada" de empregada, então aceitei antes mesmo de conhecer, mediante o aval da Kelly.

Daí ela apareceu no sábado, já prá trabalhar logo cedo e, quando eu fui abrir o portão, senti uma imensa e irracional vontade de dar as costas e entrar correndo prá dentro de casa, como se não tivesse ninguém ali, fosse um engano, igual criança (eu, uma mulher de 30 e poucos anos - com medo...).

Mas intimida, não intimida - uma mulher assim, bonita?:



Essa atriz é cara dela, só que ela tinha a pele mais escura, quase negra. 

Vinte e dois anos de pura beleza sem nenhum trato, com roupinhas muito simples e muita timidez.

Diacho!!! Tinha que ser tão bonita? "Imagina se eu vou ter uma empregada assim linda dentro de casa!" - eu pensei - acho que por ciúmes, inveja, sei lá... 

Perto dela eu parecia um troço (eu, apenas uma mulher normal, enfeiada quase que automaticamente!). Fiquei espiando enquanto ela limpava, lavava, passava pano... Remoendo minhas ideias, decidindo se mandava ela embora no mesmo dia ou se esperava uma semana até achar outra...

Daí, na segunda feira à tarde, quando cheguei do trabalho, notei ela andando pela casa escondendo o rosto, andando meio de lado e, burlando a vontade dela, a surpreendi com dois enormes olhos roxos e inchados!

A pobrezinha começou a chorar e me contou que tinha apanhado do marido. Que isso era quase todo dia, por qualquer motivo ou por nenhum... Me implorou prá não mandá-la embora, que tinha um filho pequeno, da idade do meu Ike (que tinha 3 anos...), que o marido não parava em emprego e que era muito ciumento. Tinha ciúme se ela ficava em casa, tinha ciúme se ela trabalhava...

Me doeu tanto vê-la chorar... Lembrei da minha mãe, sofrendo abusos similares... Lembrei de mim mesma, assistindo as surras - e levando as minhas também!

Prometi que não ia despedí-la, acabei pedindo a carteira de trabalho dela e a registrei eu mesma, naquela hora (sempre era o Marildo quem registrava, mas eu quis essa prerrogativa prá mim daquela vez...).

Daquele dia em diante eu deixava ela trazer o menino junto quando ela quisesse, dava leite prá ela levar prá casa, mantimentos... Fazia roupinhas pro menino dela na máquina de tricô, igualzinhas as que eu fazia pro meu moleque...

Ela me contou que tava pensando em se separar dele, que já tinha ido ver um cômodo em cima de um bar prá alugar, eu a aconselhava a voltar aos estudos prá um dia poder ter um emprego melhor...

Foi indo assim até que, dois meses depois de começar a trabalhar prá mim, ela faltou um dia. 

Dois. 

No terceiro dia mandei o Marildo  na casa dela, achando que tinha acontecido uma desgraça - mas ela apareceu, toda sorridente, prá atender a porta. Disse que ia parar de trabalhar, que tinha feito as pazes com o marido...Pagamos os direitos dela, férias proporcionais aos dois meses de trabalho, pegamos recibo; o Marildo pediu prá ela trazer a carteira prá dar baixa... 

Ela disse que ia mandar uma amiga prá substituí-la e saiu da nossa vida - ou assim a gente pensou por pouco mais de dois meses...

Toca a campainha da minha casa, a nova moça já tava trabalhando e atendeu. Voltou dizendo que tinha um Oficial de Justiça querendo falar comigo e eu fui (coisa esquisita que nunca tinha acontecido na minha vida...). Acabei recebendo e assinando uma intimação do Ministério do Trabalho, junto com uma cópia do processo trabalhista que a tal moça, que se chamava Fernanda, tava movendo contra mim por tê-la mandado embora ao descobrir que ela tava grávida!!!

"Como é que é???" - eu pensei...

Como aquilo me entristeceu... Como doem as punhaladas, especialmente aquelas que a gente nem sente chegando e que nos acertam em cheio, bem nas costas!!! Então ela já estava grávida, quando começou a trabalhar prá mim...

Pior: o registro tava no meu nome, eu é que ia ter que comparecer no tribunal...

O Marildo nem podia me acompanhar - trabalhava de dia, dava aulas à noite... 

Meu irmão, que é advogado, disse que tava com uns processos difíceis e que não ia poder me ajudar - falou que eu podia me defender sozinha, que no âmbito trabalhista a gente pode fazer isso (como se eu já não soubesse - mas querer é outra coisa! Eu nunca tinha pisado num tribunal na vida!!!). A vida tem dessas coisas: às vezes, quando a gente mais precisa, não arruma uma alma que nos ajude...

Bom, tive que me virar. O Marildo me arrumou uns CD's de leis, eu pesquisei nos livros, peguei cópias de processos, de petições, de recursos. Estudei decisões de juízes em outros casos similares e, baseada em tudo isso, compus minha defesa.

Arrumei duas testemunhas: a própria Kelly, que me havia indicado a moça (e que não parava de me pedir perdão pelo problema...) e que era vizinha dela e um outro vizinho deles, chamado Joe, que volta e meia trabalhava na minha casa como jardineiro.

Inclusive o Joe, que era amigo de longa data do Marildo, havia ouvido uma conversa de bar do tal marido da Fernanda, onde ele "movido a álcool" ria muito da minha cara, dizendo que ia depenar todo o meu dinheiro... Que eu era uma trouxa, uma branquela idiota...

O salário mínimo daquele tempo era de 100 reais - ela ganhava 250. Pleiteava os salários dos sete meses restantes da gestação, mais quatro salários de auxílio maternidade, mais dois salários referentes a sessenta dias de estabilidade no emprego, mais férias integrais e férias proporcionais, incluindo décimo terceiro. Quase ia me esquecendo: também queria o vale transporte do período todo em que estaria trabalhando "se eu não a tivesse despedido"...  Não havia esquecido uma agulha, queria chupar todinho o meu sangue, até a última gota... Tudo isso totalizava mais de 4 mil reais - e o ano era 1995... Se fosse hoje e ela ganhasse 2,5 salários mínimos, minha enrascada alcançava os 30.000 reais!!! E tudo isso era realmente devido, estava de acordo com a legislação trabalhista da época - caso eu realmente a tivesse mandado embora sabendo que estava grávida. 

Era a minha palavra contra a dela, como é que eu ia provar que não sabia???

Redigi o melhor que pude a minha defesa, anexei os testemunhos a meu favor e, no dia do julgamento, faltei no trabalho, recebi em casa as minhas duas testemunhas (pessoas muito pobres...), dei-lhes almoço e, em seguida, fomos de transporte público (porque eu não sei dirigir carro...) até o Tribunal do Trabalho.

Eu estava tão nervosa... Sinceramente eu já me dava por vencida, pois no meu trabalho todos me disseram que era causa ganha prá ela... Que os juízes sempre escolhiam a favor das empregadas - e, no Direito Trabalhista, existe mesmo um princípio chamado "in dubio pro misero", que significa que, se o juiz tiver alguma dúvida, deve decidir sempre em prol do mais pobre...

Chegando lá me informei, pegamos o elevador e fomos até a sala onde o julgamento ia ser realizado. Sentada com uma menininha no colo - que já tinha nascido - estava a Fernanda. A imagem perfeita da boa mãe, a embalar a nenenzinha com suas roupinhas rosas. Uma pintura - é o que eram... De pé, andando ameaçadoramente, o marido da tal moça. Parecia aquele lutador Mike Tyson, forte como um touro, destilando ódio por todos os poros. Imaginei aquele troglodita esmurrando a coitada - a vida dela não era fácil... Mas parei de divagar, tentei dar uma endurecida no coração e me sentei onde me indicaram.

Pouco tempo depois apareceu um homem, chamou a mim e a minhas testemunhas pra um canto da sala.

-"Quem é seu advogado, senhora?"

-"Ninguém, eu mesma estou me defendendo..."

-"Quem foi que redigiu seu recurso?"

-"Eu mesma, tenho bacharelado em Direito, mas nunca tirei a OAB..."

Ele parou um pouco, olhando os papéis nas mãos, olhou prá mim e disse:

-"Está muito bem redigido, um dos melhores que já vi. A senhora me permite utilizá-lo na faculdade, eu dou aula de Direito?..."

Sinceramente eu nem me importava, ele podia até rasgar e tacar fogo no meu recurso, tudo o que eu queria era sair logo dali - ia acabar fazendo um furo na minha língua de tanto morder ela... Mas respondi que ele podia usar meu recurso como quisesse.

Daí ele chegou no ponto. Conversou com a Kelly e com o Joe, que confirmaram seus depoimentos. O juiz (pois que esse era um dos três juízes que estavam encarregados do caso...) disse que o ganho de causa era meu. 

Eu nem acreditei!!! 

Perguntei se então eu podia ir embora, se tudo já estava acabado...

Ele me respondeu que aquela era uma audiência conciliatória - prá fazer um acordo entre as partes sem a necessidade de julgamento. Disse que o ganho de causa seria meu se a moça também concordasse - e que, obviamente, ela não concordaria. Muito provavelmente, segundo ele, a moça ia querer julgamento, prá tentar convencer o juiz... Naquele momento, conversando com ela, estava o outro juiz, representante dos empregados, tentando arranjar o acordo e alertando a moça que, caso fosse mesmo a julgamento, eu sairia vencedora - porque meu recurso estava bem alicerçado na lei e porque eu tinha testemunhas que calhavam de serem vizinhos dela (e não meus...).

Então o meu juiz (que era o juiz representante dos empregadores) me disse prá fazer assim: dar prá ela somente um mês de salário, prá ela não sair de mãos abanando e ter como pagar o advogado que ela havia contratado...

O monstrinho no porão me disse prá dar uma banana prá ela, que ela arrumou advogado porque quis, que a intenção dela foi me fazer mal e que eu não devia dar nada!!!

Mas, nessa hora, a menininha começou a choramingar... Senti pena da criança, filha de pais assim, desonestos...

Falei pro juiz que tudo bem, que eu dava os 250 reais prá ela.

Assinamos um montão de papelada, assinei um cheque - o advogado dela com cara de sonso, decepcionado por não levar a gorda fatia que imaginava do meu suado dinheirinho...

Quando acabamos de assinar eu perguntei pro juiz:

-"Tá tudo certo? Não devo nada?"

-"Tá tudo certo, a senhora tá liberada."

-"O senhor me permite dar uma palavrinha com a moça?"

-"À vontade."

Aproveitando que tinha seguranças no recinto - e que o marido dela não podia pular na minha jugular (como parecia querer fazer a todo momento...) eu cheguei perto dela, parei, olhei prá menina e disse:

-"Muito bonita a tua filha... Como se chama?"

Ela nem levantava os olhos, continuou sentada, parecia se encolher com a minha proximidade. Com a voz fraca, quase falhando, respondeu:

-"Mariana."

-"Se você tivesse continuado a trabalhar na minha casa, tua filha ia me chamar de tia. Todo o enxovalzinho dela teria sido feito por mim, com o maior carinho. Nunca eu ia deixar faltar nada prá ela - nem pro teu outro filho...".

Agradeci ao juiz, chamei a Kelly e o Joe e voltamos prá Penha...

                 *   *   *

No mundo tá cheio de gente assim, não tá? Me lembra uma historinha que eu li prá minha avó quando eu era pequena: 

Um homem tava andando na neve e encontrou uma cobra congelada, quase morta. 

Teve pena dela, a agarrou e enfiou dentro do casaco, junto do calor do seu corpo. 

Nem bem a cobra se recuperou, mordeu o homem. 

Enquanto morria, o homem perguntou: 

"- Por quê? Eu te ajudei!!!"... 

E a cobra respondeu: 

"- Desculpe, é a minha natureza...".

Cedo ou tarde a verdadeira natureza aparece...

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7 comentários:

  1. Ai Rosa, que história triste, embora tenha tido uma saída justa para você. Ainda bem!
    As pessoas reclamam da vida e da sorte, mas escolhem os piores caminhos…
    Eu também tenho muitas histórias com empregadas, por isso decidi não ter mais ninguém trabalhando em casa. Eu e o marido fazemos tudo.Uma vez por mês vem uma pessoa para fazer uma faxina mais pesada.
    Bjs querida

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  2. Nossa Rosa, que ignorância! Querendo tirar vantagem, ficaram a ver navios,triste ver isso! Tem aos montes por aí e me dá pena! Porque o caminho que conhecem é o da desonestidade e trapaça!
    Que bom que tudo deu certo pro seu lado! Você se preparou e estava com razão.
    Bjs Nina

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  3. Caramba, Rosa!!

    Tem gente que perde oportunidades boas na vida, de ter boas amizades porque fica querendo só tirar vantagem mas a Lei do Retorno é certa e não falha!! Que bom que deu tudo certo p/vocês e a justiça foi feita.

    Espero que esteja melhor da saúde e continuo torcendo por você e sua mãe.


    Bjs

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  4. Oi Comadre!! Quanto tempo! Temperatura baixando por aqui... ainda bem que tenho um gorro e cachecol lindos prá me aquecer! :) (foto em breve)

    A sua historinha do final é a representação perfeita da situação que você passou com a Fernanda, hein! Exceto por que ela te mordeu, mas o veneno não te matou - ficou a história e lição. No final das contas, mesmo se ela tivesse conseguido te extorquir, teria saído perdendo.

    Obrigada por se dedicar ao seu blog, esse é um lugar que eu sei que posso vir e encontrar sabedoria, bom senso.

    bjo beeeem grande

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  5. Que situação triste Rosinha, nem se pode ser boa, as pessoas não são
    o que parecem, mas o que são, fica a lição, sempre pé atrás com quem
    não conhecemos, é triste mas é assim, beijo amiga

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  6. É... penso se a natureza dela era a da cobra, ou se foi fraca e se deixou dominar pelo marido.Tive várias sensações enquanto lia. Tive pena de vcs duas, das crianças, tive raiva dela, do marido, fiquei revoltada pensando que ao final do relato, eu não veria a justiça sendo feita. Mas vi, e isso me deixou aliviada.
    Rosa, ninguém está livre dessas provações. Acho que dependendo do nosso grau de apego à essência do ser humano (que pra mim, é boa), jamais aprenderemos com essas lições.
    Eu já passei por situações de traição, e me vi procurando a minha culpa depois, acreditas?! Mesmo sem ter culpa nenhuma rs
    Sou um caso de analise, sei.
    No ano passado, com a reforma em andamento aqui em casa. Fomos roubados por um rapaz que trabalhava na obra. Descobri que era ele, o flagrei em um dos roubos, o perdoei e deixei que ele continuasse trabalhando. Passados dois meses, ele roubou de novo. Daí, deixei que o responsável pela obra decidisse. Ele foi demitido.
    Até hoje tenho pena dele rs

    bjs

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