sexta-feira, 14 de março de 2014

Há muito, muito tempo atrás...


Muitas histórias começam assim - deve ser porque o tempo passa e coloca os acontecimentos na sua devida perspectiva (porque de longe talvez se enxergue bem melhor...).


Eu estava casada há menos de dois anos, já tinha tido minha Lola e estava grávida da Naninha - e que barriga enorme eu tinha! Parecia que eu tinha engolido uma melancia inteira - perto de oito meses, mas parecia de onze...

Trabalhava fora das 7 da manhã até a uma da tarde, chegava em casa (na casa da sogra, prá ser mais específica...) e tinha toneladas de fraldas prá lavar (meus três filhos sempre foram alérgicos às descartáveis - já nasceram querendo salvar o planeta...), roupas do "Marildo" prá lavar e passar, jantar prá fazer antes de ir prá faculdade (cursando Direito à noite - e muito boa aluna, por sinal...).

Chegava "esbudegada", moída e sempre apressada. Sentadas no sofá, minha sogra e minha cunhada Lila - que morava a uma quadra de distância - jogavam conversa fora, riam até chorar de piadas que só elas entendiam (cúmplices numa amizade começada anos antes de eu aparecer...). Riam também de mim, do meu stress... 

Eu era boba, ficava magoada por bobagem - essa é a verdade. Também sentia - no fundo - aquela mordidinha que a inveja dá na gente quando tem uma mulher mais bonita do que nós por perto. Casada com o irmão do meu colega de quarto ela era cinco anos mais nova do que eu e muito linda. Mas bota linda nisso: imagina se a Roberta Close fosse mulher de verdade - era ela. 

Linda até dizer chega. E levava a vida em câmera lenta: enquanto eu acordava antes das cinco da madrugada prá fazer fresquinha a sopa da minha Lola, com pedacinho de tudo quanto é legume, ela - que não trabalhava fora, não estudava, não fazia tricô, não costurava... - vinha na hora do almoço na casa da sogra, com o filho, "serrar" arroz branco com caldo de feijão pro moleque...

Eu me esforçava, me desdobrava, parecia três mulheres em uma e minha sogra não fazia um elogio - e, com ela, era aquele doce todo (inveja é uma meléca...).

Como eu estava dizendo no começo, lá estava eu perto de ganhar a Naninha... Tinha chovido a manhã toda, o céu quase noite - eu imaginando como é que eu ia fazer com as fraldas, o tanque não tinha uma cobertura de telhas... Ia ter que lavar tudo em balde, dentro do banheiro - Ô desgosto...

Faltando uns quinze minutos prá eu sair São Pedro resolveu abrir as represas do céu todas duma vez e deu no que deu: a rua onde eu tinha que pegar ônibus prá ir prá casa ficou alagada! 

Carregando a melancia eu subi uma travessa, desci de novo mais prá frente na rua em que o ônibus passava - nada. Não vinha um sequer. O jeito era subir a ladeira da Penha até chegar na outra avenida, prá ver se ali passava algum que me deixasse perto de casa...

Eu usava uma camisetinha barata cor-de-rosa bebê por baixo de um macacãozinho pula-brejo de tricoline branca, com bolinhas vermelhas e um chinelo de dedo, pois nada mais cabia nos meus pés em formato de bola. Subindo a tal ladeira - já toda ensopada da chuva que vinha de tudo quanto era lado... - lá ia eu, lutando contra a ventania que queria virar meu guarda-chuva do avesso e contra a enxurrada que queria me carregar morro abaixo quando...

Vindo por detrás de mim, um carro de polícia apareceu do nada e subiu com tudo a mesma ladeira que eu e, passando de propósito por cima da valeta, jogou prá todo lado a água mais suja e pestilenta que eu já vi na vida! Minto: jogou mais em mim do que no resto do mundo - na boca, nos olhos, dentro das orelhas, no cabelo... O macacãozinho ficou meio bege, meio marrom, muito fedido. Pior que tudo foi o policial, que da janela ainda gritou: "E tome lama!" - todos rindo muito da minha cara molhada e suja, a franja colada na testa.

Eu até podia chorar que ninguém ia perceber, de tão ensopada que eu tava. Ia adiantar?

Cheguei no ponto de ônibus e os motoristas não paravam prá mim - não queriam que eu entrasse no veículo deles daquele jeito. Às vezes, a caridade some mesmo, em meio à chuva e à pressa... 

Mas tinha uma alma boa no meio deles, disposta a me levar prá casa - e eu nem me sentei, prá não emporcalhar o banco, fui de pé mesmo, apenas grata por logo, logo, chegar no meu destino...

Desci do ônibus, andei uns poucos metros até o portão e, quando entrei, na mesma hora minha sogra - toda arrumada - se despediu e disse que estava saindo com a filha, que tinha vindo naquela manhã do litoral prá passear. 

Minha sogra não era uma má pessoa - muito pelo contrário. Simplesmente ela era dura, criada sem mãe, sem se fazer de dodói... Órfã de mãe aos sete anos de idade, se criou sozinha mais as irmãs - o pai casou de novo e disse que quem quisesse vir, que viesse - e quem não quisesse, que se danasse... Se criou - como ela mesma dizia - como batata que se joga na terra e pega porque tem que pegar... Tratava as pessoas sem meias palavras, sem alisar a cabeça nem carregar no colinho... Vivia dizendo: "Quem pariu Mateus, que balance o berço"...

Lá estava eu, imunda e encharcada, faminta e cansada, com uma criança chutando dentro da barriga e outra engatinhando no chão atrás do meu colo - e ela ia me deixar só...

Nem bem ela fechou a porta atrás dela, eu percebi um movimento vindo da sala e uma voz me disse assim:

-"Vai tomar um banho quente, Rosa, senão você adoece e faz mal prá nenenzinha. Deixa que eu cuido da Lola enquanto isso..."

Era aquela minha cunhada linda...

Nem pisquei os olhos - corri prá tomar banho, temerosa em abusar da boa vontade dela...

Infelizmente o banho demorou mais do que eu queria... Minhas pernas estavam geladas, rígidas; minha coordenação motora estava toda atrapalhada pelo barrigão, pela pressa, pelo chão do banheiro que teimava em escorregar debaixo dos meus pés... Tinha lama até dentro do meu ouvido, o cotonete saía marrom e areioso (não, não era cera...).

Quando eu saí ela me deu nas mãos uma xícara de chá de melissa, quentinho e doce - "Prá te acalmar, você parece que tá a ponto de explodir de nervoso..."

Já tinha esquentado e dado a sopinha batida da Lola, que tava calminha no chiqueirinho, junto do primo... Me sentei prá tomar o chá e então... 

Ela se ajoelhou perto de mim e secou entre os dedos dos meus pés - que eu não estava conseguindo mais secar depois do banho há semanas!!!

Esquentou o almoço, me fez um prato, se serviu também de chá e quando a chuva acabou, voltou prá casa dela...

Fiquei tão feliz naquele dia! Tão feliz, tão feliz, tão feliz!!! Adoro essas surpresas da vida, como estar errada quando penso o mal, ou quando sinto ciúme; quando caio no poço da inveja como se fosse uma cega correndo desembestada pelo mundo e aparece uma mão bondosa prá me tirar dali!

Viver tem dessas coisas: às vezes você espera pelo melhor, acha que conhece alguém e leva uma rasteira daquelas - dá até prá perder a fé na vida. E às vezes você não espera nada, julga mal uma situação ou uma pessoa e leva uma tremenda duma surpresa - daquelas que fazem teu coração pular de alegria (essas fazem a vida valer mesmo à pena...). 

Desde aquele dia, volta e meia, conto pros meus filhos essa imensa caridade que a tia deles fez comigo - e não importa quais os defeitos que ela tenha (pois todos nós os temos...), não importa o que ela faça: eu deponho a favor dela. Se um dia, perante Deus, ela precisar de uma palavra em sua defesa, eu terei um dicionário delas.

Sábado passado, no aniversário do meu neto, chegou ela, o irmão do Marildo, os filhos - um deles recém casado. Vieram - como sempre - sentar na mesma mesa que eu, arrastando mais cadeiras do que qualquer mesa comporta (por milagre de Deus eles gostam de mim...). Em meio à comilança, às conversas, ela sentada do meu lado acalmando um recém nascido da família (é a maior encantadora de bebês que eu conheço, nenhum chora no colo dela, de jeito nenhum...) eu me viro pro meu sobrinho e sua esposa e falo assim:

-"Júnior, já te contei do dia em que tua mãe salvou minha vida?"

Ela, envergonhada, corou o rosto e disse: "Ah, Rosa, de novo com essa história?..."

Ele já tinha ouvido - mas a moça não. Eram os ouvidos dela que estavam na minha mira... 

Depois de contar - que surpresa boa! - noto os olhos do rapaz marejados de lágrimas, ele ainda se emociona, olhando orgulhoso prá mãe. A nora, pela primeira vez (eu sei!) vendo a sogra com outros olhos...

No caminho de casa meu filho diz assim:

-"Você nunca vai cansar de contar essa história, mãe? Todo mundo já ouviu umas trocentas vezes!"

-"Não acredito! Sua mãe contou de novo a história da chuva e da tia Lila secando os pés dela?"

E eu nem me lembro mais do que falaram, do quanto riram das minhas bobagens... Sei que agradeci a Deus pelas oportunidades de me reconhecer errada, de mudar de opinião, de me surpreender positivamente com as pessoas - viver tem sido extremamente positivo, tenho aprendido muita coisa, graças a Deus...

E aqui estou eu, pela trocentésima primeira vez, contando a mesma história...

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27 comentários:

  1. Nossa minha sogra tambem dizia a mesma coisa, tambem foi uma mulher sofrida perdeu o pai com 8 anos e teve que ajudar a mae , as vezes a gente se sente meio que de lado mas acredito que essas passagens sao necessarias para aprendermos com a vida, e quanta coisa ela nos ensina ..... bjs um lindo final de semana.

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    1. Com certeza, aprendi a ser mais forte com minha sogra, muito mais do que se ela me desse mole...

      Beijos, Elisabete querida1

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  2. Olá Rosa

    E fizeste muito bem em contar, li todinho, por momentos senti-me à janela observar a tua aventura. Emocionei-me com os teus sentimentos, com a "nau" tão grande que tentavas levar a bom porto.
    Para mim, há mais gente nessa história, quem não parou, quem não abrandou, quem ainda se meteu contigo... É uma história que me tocou e que vou contar às minhas filhas. Por vezes criamos verdades dentro de nós, que não correspondem minimamente à verdade. A tua cunhada, possivelmente, nem se apercebia do mal que fazia sentir e tu ainda bem que tiveste a hipótese de ver a criatura sensível que estava por baixo da beleza física. Nada acontece por acaso, não será?
    Não te arrependas de contar esta história, e tenho a certeza, que ainda a vais contar muitas vezes.
    Um grande beijinho
    Helena

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    1. Que lindo que você vai contar prás filhinhas - espero que elas gostem... E pode deixar, eu sou uma contadora de histórias compulsiva - nunca vou parar de contá-las...

      Beijos, Helena querida!

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  3. É verdade Rosa...há histórias que nós nunca nos cansamos de contar...por terem mexido connosco...no bom ou no mau sentido!
    Quando leio os seus relatos...dou comigo a pensar...que se escrevermos com o coração como você...somos excelentes contadores de nossa história de VIDA!!! Bj amigo!!!

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    1. Obrigada, Maria da Graça querida! Pelos seus comentários eu percebo que você realmente gosta das minhas historinhas e isso me deixa feliz!

      Beijos!

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  4. Oi, Rosa

    Exemplos bons tem que ser lembrados, nunca esquecidos.

    No Centro Kardecista que vou há uma frase de Chico Xavier (e uitas outras) que gosto muito e se adequa à tua cunhada e diz assim: : "O Bem que praticares em algum lugar, é teu advogado em todo lugar"

    Belíssimo exemplo de fraternidade ela deu. Sua história é muito rica.

    Bjs

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    1. Que frase linda, Fatinha querida! Adorei e vou guardar, obrigada por me trazer ela de presente.

      Beijos!

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Nem tenho o que dizer, só que a sua história é linda e emocionante. E o principal é que você souber reconhecer o gesto de carinho naquela época e sempre que pode sabe reconhecer e agradecer. Quantas vezes fazemos algo por uma pessoa que não reconhece e nem agradece. Parabéns por mais esta história e pela lição de vida. Grande beijo.

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    1. Eu acho que a ingratidão é um dos maiores defeitos que uma pessoa pode ter, não é mesmo? Eu procuro sempre ser grata, não importa o favor que tenha me sido feito...

      Beijos, Ligia querida, e obrigada pelo comentário carinhoso.

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  7. Adoro suas histórias! Sempre aprendo um pouco. É a primeira vez que escrevo para um blog. Rsrs . Bjs

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    1. Que bom, Rô! Fico feliz! Obrigada pelo meu blog ter sido o primeiro...

      Beijos!

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  8. Rosinha, sabes quanto eu gosto de ti?
    Não sabes, não!
    Beijo

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    1. Sei, sim, Nina querida! O mesmo tantão que eu gosto de você, minha linda!

      Beijos!

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  9. E aqui estou eu Rosa, pela "trocentésima primeira vez" agradecendo à Deus ter encontrado seu blog, ter "conhecido" você. Obrigada...

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    1. Ai, que lindo! Adorei, Marili querida! Espero sempre ter uma boa história prá contar...

      Beijos!

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  10. Olá Rosa! Gostei muito do seu blog, de seus trabalhos, suas histórias e seu jeito de expressar! Estou te seguindo para voltar sempre!
    beiijos
    roarteestilo.blogspot.com

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    1. Muito obrigada, Rô! Espero sempre ter algo interessante prá te fazer ficar voltando, minha querida1

      Beijos!

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  11. Olá Rosa! Amei sua história. Coisas assim temos que contar muitas vezes. Que bom que a lindona te surpreendeu amiga.
    Recebemos daqueles que não esperamos, não é mesmo Rosa?
    Beijos

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    1. As surpresas boas da vida são as melhores, não são? A felicidade é tecida delas e de outras tantas coisas sem preço, todas guardadas no coração...

      Beijos e obrigada, Carla querida!

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  12. Afff,me emocionei com sua história,linda demais.Você é uma vencedora.Entrei no teu blog para procurar uma receita de um casaquinho simples, dessses qque você sabe muito bem para uma amiga minha que falou assim: Cida quero um casquinho bem simples e sem detalhes. fazem duas semanas que era já pra ter feito e de repente minha vida mudou de uma hora pra outra.Comecei ficar rouca, e terminei sem fala.fui ao médico e fiz um videilarin.... não sei bem o nome só sei que filmou minhas cordas vocais e pra desespero total. calo enorme nas cordas vocais sessão com fono e cirurgia.Fui afastada da sala de aula por 30 dias nas 2 instituições que trabalho. Quis bater a depressão,passei dias chorando, com pena de mim mesma.Resolvi por conselhos de amigos consultar outro médico afinal sempre nos supreende, assim fiz .Gostei mais desse ultimo. vou fazer o mesmo exame ou seja, mas cauteloso e constrangedor pelo nariz,claro que não falei nada da conssulta com o outro, quero ver o que este tem a dizer. Exame amnhã as 3horas. E eu aqui anciosa, sem dormir, prestes a fazer exame de mestrado, não consigo me concentrar no estudos, vou pro face uma porcaria, pessoas postam coisas lindas e nada de receitas, aí lembro do casaquinho da minha amiga e venho procurar aqui no meu anjo da guarda e me deparo com uma história tão linda que levantou a minha auto estima. Sua alegria por apenas uma atenção me fez repensar no meu comportamento. Obrigada e que Deus te abençoe.

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    1. Vai dar tudo certo, Maria Aparecida! É muito comum acontecer esse problema com profissionais que usem muito a voz: professores, cantores, atores. Existem exercícios que os atores e cantores praticam várias vezes por dia, especialmente antes de pisarem no palco - a fonoaudióloga vai te ensinar e tudo vai acabar bem, se Deus quiser. Beijos e obrigada, Minha querida!

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  13. Realmente uma linda e surpreendente história que deve ser repassada a muitas pessoas. Rosa, você escreve muito bem, pois deixa aflorar os sentimentos através de um canalzinho que vem direto do coração, tenho certeza! Parabéns! Quero que vc conheça a história de um anjo que bateu à minha porta. Acho que você vai gostar. Deixo aqui o link: http://feiticosdobem.blogspot.com/2012/12/recebendo-visita-de-um-anjo.html Beijos pra vc!

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  14. Obrigada pela dica, Ildete querida. Já fui lá ler a tua história e gostei muito, realmente comovente e muito bem escrita.

    Beijos!

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