segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Respeito e opinião


Quando eu era menina morava na minha rua uma velhinha chamada dona Isaura. Ela era apenas alguns anos mais nova que minha avó e residia duas casas prá cima da minha, num quarto/sala e cozinha bem pequenos, com uma varandinha coberta na frente. Minha mãe e minha avó não eram amigas dela, apenas se cumprimentavam cordialmente - havia uma rixa bem antiga entre integrantes de nossas famílias. 


Essa velhinha, por sua vez, não fazia questão da amizade de ninguém - vivia no mundinho dela. Diferente da minha mãe e da minha avó ela não frequentava a igreja regularmente, não participava das novenas... Nunca perguntei, mas desconfio que ela não acreditava em Deus. Às vezes acontece isso: a pessoa lê demais, é mais inteligente que a grande maioria e acaba questionando além da conta a vida e as coisas ao redor e acaba concluindo - erradamente... - que estamos sós no mundo. 

Ela era casada com o homem mais odioso que eu conheci - grosseiro, brigão, sem nada que eu me lembre que depusesse a favor dele... 

Um dia, eu - que era uma "rueira", empinando pipa, jogando pião e bolinha de gude (sempre brincadeiras de meninos, porque brincar de casinha era muito chato) - reparei na dona Isaura rindo sozinha, sentada na cadeira de balanço da varanda, com um livro nas mãos. 

-"O que que a senhora tá lendo?" - eu perguntei.

-"Ah, não é prá você, não é prá menina da sua idade...".

-"Tem figuras?"

-"Não... Os melhores livros, na maioria das vezes, não tem figuras..."

Como eu fiquei empacada ali, na porta dela, ela achou por bem me convidar prá entrar na sala, onde me mostrou uma estante repleta de livros - uns sobre os outros, amontoados precariamente, parecidos mais com tijolos numa demolição. Como ela era bem velha, a casa não tinha esse asseio todo, tinha bastante pó - e ela não parecia se importar muito com isso. Estendeu a mão e pegou o livro "Viagem ao Centro da Terra", de Júlio Verne e, passando-o prá mim, perguntou: "Já leu?"

Ler? Eu só lia mesmo eram revistinhas do Tio Patinhas, do Zé Carioca, da Mônica... Mas, não querendo parecer uma bobona, respondi: "Já conheço a história. Assisti na televisão..."

Ela me mediu, deu um sorriso e disse:

-"Nenhuma televisão tem as imagens, as cores e os sons que tem aqui dentro..." - e apontou prá própria cabeça. 

Então, me olhando nos olhos, ela me disse:

-"Leva o livro. Não tem figuras, mas é muito bom... Lê e, se você gostar, te empresto outro...".

Esse foi o primeiro de um número sem conta de livros que eu li - primeiro todos os que ela me emprestou, depois todos os que eu pegava na Biblioteca da Penha, comprava em sebos...

Um dia, quando eu entrava pela porta da sala - sempre aberta - da casa dela, prá devolver um livro, a encontrei fazendo um bolo, na cozinha. Na minha casa, quando se fazia um bolo, não se raspava toda a massa da tigela prá por na assadeira: sempre sobrava um "creminho", prá gente passar o dedo e lamber... Ela não: raspava com paciência cada tiquinho de massa, com um cabo quebrado de uma colher velha... Estranhando meu olhar ela me disse: "Sabe porque eu raspo toda a massa, até o finzinho? Porque uma colheradinha que seja já é uma mordida a mais de bolo. Massa crua não é tão gostosa quanto um bolo fofinho, não é mesmo?"

Até hoje eu raspo toda a tigela - não deixo nem um tiquinho de massa. Quando assisto programa de culinária na televisão me dá até "um troço" quando vejo o tanto que eles desperdiçam...

Minha mãe e minha avó não gostavam dessa nossa amizade - mas respeitavam. E, graças a isso, quantas coisas aprendi com essa senhora esquisita, solitária, inteligente e bem humorada! 

Acho respeito muito importante na vida: sem ele não sobrevive nem o amor, nem a amizade.

Momento-chave em uma amizade verdadeira é quando ela sobrevive às divergências de opinião: se surgir antagonismo de ideias ou de diretrizes na vida e a amizade se abalar ou ruir de vez é porque nunca existiu de fato. 

Aliás, não se diz que "da discussão surge a luz?" Eu gosto de amarelo, fulana gosta de azul - que tal discutir e criar um mosaico em tons de amarelo, azul e umas pitadas de verde?

Não sei a quem pertencia o site "Aprendendo Artesanato", não sei se ali havia má-fé ou oportunismo. Na minha opinião me parece que não... Eu mesma, procurando receitas, muitas vezes me vali daquele site e achei bom ter tantos artesanatos reunidos... E, como já disse na postagem anterior, recebi visitas ao meu blog através deles. Dizem agora que o fato do site ter sido retirado da internet é uma admissão de culpa... Pode ser... Mas, será que não poderia ser o básico e simples receio de confusão?

Bom, se tem uma coisa que a vida me ensinou é que eu não sou dona da verdade - nem mesmo de um pedacinho dela. Sou somente dona das minhas opiniões, erguidas a custo de minha própria observação e senso crítico. Contudo, como passo pouco tempo na internet, tenho o blog há muito menos tempo do que a maioria e sou apenas uma simples dona de casa posso até estar enganada a respeito dessa situação toda...

Acho que, no fundo, eu só desejaria que as coisas fossem sempre resolvidas na paz, na conversa, na boa vontade... Infelizmente a vida não é sempre assim, não é mesmo?

Às amigas que se mobilizaram contra o fato do site "Aprendendo Artesanato" utilizar suas postagens eu quero dizer que respeito completamente suas opiniões, seu "levantar de bandeiras" pelo que acham justo. A atitude de vocês é, inclusive, louvável: achando-se prejudicadas, poderiam muito bem ter mandado um email pro site exigindo a retirada somente do blog de vocês e deixar o resto prá lá - mas não, preocuparam-se com todas as outras blogueiras. Foram corajosas e solidárias, pensando no bem de todas. Desejo a vocês todo o sucesso do mundo - que continuem a ter seus trabalhos sempre apreciados e bem protegidos e que continuem a fazer o que acham certo...

A quem quer que seja que era dono do site "Aprendendo Artesanato" quero dizer o seguinte: quem estuda Direito aprende uma regra de ouro, usada nos tribunais de justiça de quase todo o mundo civilizado - "in dubio pro reo". Significa mais ou menos que, na hora de emitir um julgamento, caso não hajam provas irrefutáveis de culpa, deve-se sempre decidir a favor do acusado, do réu. Princípio lindo, não é mesmo? Sem ele, bastaria uma acusação prá alguém ser condenado, fosse ela verdadeira ou falsa... Assim sendo, como não tenho em mãos as tais provas irrefutáveis - não tenho, por exemplo, o extrato bancário dessa pessoa prá saber se estava lucrando às custas do prejuízo alheio - continuo optando por acreditar na sua boa vontade. Desejo, de coração, um novo começo - se é mesmo verdade que o site deixou de existir -, desta vez com mais discernimento, com o aval de todos que quiserem participar de sua empreitada...

E a mim mesma desejo coragem, prá manter minha capacidade de observação sempre afiada, meu livre arbítrio sempre atuante e meu julgamento justo.

Um dia, quando eu estiver bem mais velha e esclerosada, posso bem sair correndo de casa, vestindo camisola, perseguindo um cachorro que não é meu... Vão me levar pela mão prá onde eu não quero ir, me vestir com o que eu não escolhi, me dar de comer o que eu não gosto - não vou mais ser dona de nada, nem da minha própria opinião. 

Mas enquanto minha cabeça pensar e meu coração for capaz de ponderar prós e contras, continuarei abrindo minha boca sempre que achar necessário e agradecendo a Deus a bênção e a responsabilidade de fazer o que acho certo - e rezando a Ele prá não atropelar a opinião e o direito de ninguém nem ferir a suscetibilidade de quem quer que seja com isso...

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23 comentários:

  1. Bom dia, Rosa!
    Obrigada pelo seu carinho lá no blog. É muito reconfortante sentirmos que não estamos sós nas vezes que precisamos "abrir a boca".
    Gosto dos seus textos sempre tão cuidadosos, com bom senso e alegres.
    Verdade, bem observado: sem provas concretas, precisamos acreditar na boa fé das pessoas.
    A nossa justiça brasileira é tão lenta!... Isso é muito grave. Mas é igualmente grave fazer justiça com as próprias mãos.
    Uma ótima semana pra vc!
    Beijos,

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    1. Verdade - fazer justiça com as próprias mãos é sempre um risco muito grande de se cometer injustiças. Se mesmo seguindo todos os trâmites da lei, volta e meia tem inocente cumprindo pena - imagine se cada um fizer as coisas com a cabeça quente...

      Obrigada pelo comentário, Vanessa querida. Beijos!

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  2. Rosa, Rosa, o que dizer de seu texto, de sua opinião?
    Maravilhoso.
    Concordo com cada linha que escreveste.
    Vc é uma pessoa iluminada e ilumina à todos que estão a sua volta.
    Obrigada.
    Beijo.

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    1. Obrigada, Rosangela querida, mas eu não sou nada iluminada - é só a sua bondade falando. Eu somente me esforço prá manter o bom senso. Beijos!

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  3. Bem Rosa...mais um texto encadeado noutro...ambos bem pertinentes e repletos de subtileza!!! Bj bom

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  4. Rosinha, minha linda Rosa, oh! Rosa ... é uma musiquinha que já escutei por aí!
    Eu sabia, (que já te conheço!), sabia lendo o título onde querias chegar. Revejo-me nas tuas palavras, amiga. Fujo espavorida de guerras, não compro, fujo. Só mesmo quando não posso evitar. Então aí!
    Essa também não é a minha guerra, mas respeito quem a assume.
    Brigada, linda, muito obrigada pelos afagos.
    Beijo

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    1. Às vezes eu mesma me pergunto se eu não faria melhor em ficar quieta - já me engajei em cada batalha perdida... Mas isso nem foi luta, eu só manifestei minha humilde opinião...

      Beijos, Nina querida!

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  5. Muito bem exposto. Gostei.
    Minha filha amou o livro Viagem ao centro da Terra, que foi comprado em um sebo, mas é "o destaque" entre os livros dela.
    Agradeço pela sua visita, estarei sempre por aqui.
    beijo, boa semana,
    Claudia

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    1. Que bom saber que sua filha também ama a leitura - e Júlio Verne é do coração, eu seria outra pessoa se não tivesse adubado a imaginação com os livros dele...

      Beijos, Claudia querida!

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  6. Oi Rosa, viu o movimento fez aquele site sair do ar.
    Eu tinha a coleção completa de Júlio verne, as capas vermelhas lindas!!!!
    Doei para uma biblioteca municipal da minha cidade, para outras pessoas terem acesso a eles. Acho ter feito o certo pois aqui já lemos e relemos.
    Agradeço por sua visita sempre carinhosa.
    Beijos

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    1. Muito lindo da tua parte doar os livros - vão fazer a alegria de muita gente, tenho certeza! Eu também costumo doar os que já li - principalmente agora, que temos tanta facilidade de ler novamente pela internet, não é mesmo?

      Beijos, Carla querida!

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  7. Rosinha, essa D. Isaura era uma pessoa bem curiosa, gostei da
    história dela, contada por você, boa semana e beijo amiga

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    1. Ela era incrível mesmo, Mira querida. Guardada com carinho no coração...

      Beijos!

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  8. Que linda sua história com a velhinha...e mais uma vez você mostrou maturidade não aceitando de cara a histeria coletiva e ponderando para ter a sua própria opinião.
    Te admiro cada vez mais minha querida Rosa!
    Bjs

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    1. Obrigada, Doutora querida! Como sempre muito bondosa comigo...

      Beijos!

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  9. Rosa, vc, como sempre maravilhosa, bjs

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    1. Fico feliz que tenha gostado de mais esta historinha, Aparecida! É um prazer ter você aqui.

      Beijos!

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  10. Oi, Rosa

    Em 1º lugar, gostei da D.Isaura e dos bons exemplos que ela deixou na tua vida. Pessoas que acrescentam coisas positivas são inesquecíveis.

    Sobre o site que saiu do ar...não entendo a saída como confissão de culpa pois imaginando-me no lugar deles, eu tiraria do ar para não gerar mais polêmicas porém voltaria depois com ajustes, incluindo apenas quem queira fazer parte do site deles. São complicadas essas coisas de direitos autorais e todo cuidado é pouco.

    Uma sugestão que posso fazer, é de quem os quiser de volta que enviem um email particular para os donos. Quem for dono de algum blog e quiser fazer parte da lista deles, que envie o email particular concordando em fazer parte das linkagens deles.

    Expor alguém a critica pública sem antes dar a chance de entendimento particular é atitude execrável. Conclamar outras a fazer o mesmo é mais ainda. Tenho a impressão que muitas entraram como "maria vai com as outras" sem darem antes a chance de diálogo com os donos do site Aprendendo Artesanato. Ou será que foi tentado o diálogo e não foram respondidas? e por isso tomaram tais atitudes?
    Pelos textos que li, não lembro de ter visto menções sobre tentativas de comunicação com os donos e deduzo que não tentaram o entendimento direto e particular e foram simplesmente execrando, acusando. É difícil julgar esses casos quando não se tem provas suficientes.

    Vamos ver no que vai dar essa história toda. Solução sempre há quando ambas as partes se dão chance de entendimento que seja satisfatório para os evolvidos.

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    1. Concordo com tudo o que você disse, Fatinha querida - temos sempre que optar pela paz. Ânimos exaltados geralmente abafam o diálogo que poderia resolver tudo na paz.

      Beijos!

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  11. Oi Rosa!
    Lindo texto!Adoro ler o que voce escreve.
    Fica com Deus.
    Bjus

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    1. Muito obrigada, Márcia querida! Você é sempre muito doce... Beijos!

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  12. Já fui lá participar, minha querida. Obrigada por lembrar de me chamar.

    Beijos!

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