quinta-feira, 9 de abril de 2020

Biju



Alguém conhece este biscoito, esse doce, vendido aqui em São Paulo por vendedores nas ruas, anunciado pela matraca ouvida de longe?

Que som mágico esse, que me faz viajar mais de cinquenta anos no passado, quando o vendedor velhinho e sorridente interrompia minhas brincadeiras de menina prá me fazer correr até meu avô pedir moedas, ao que ele sempre dizia:

-"Pega na gaveta, filha, tu sabes onde fica!"... 

Ele sempre me acompanhava, me guiava pela mão e me fazia tão feliz! Aquela presença milhões de vezes mais doce que o biscoito, a me sorrir quase sem dentinhos, me olhando com seus olhos de âmbar ilhados no rosto que mais parecia um mar de rugas... 

Quantas saudades o coração da gente consegue guardar ao longo da vida!

Eu achava o vendedor parecido com uma ilustração de Getúlio Vargas que meu avô tinha pregada com percevejos na parede do barracão de ferramentas, "o melhor presidente que o mundo já teve" - como meu avô dizia, que tinha dado muitos direitos aos trabalhadores... Tão lindo em sua bondade e inocência, sem se dar conta das lutas sindicais, das greves...

Mas até hoje o "Cléc! Cléc! Cléc!" do bijuzeiro chama meus olhos prá janela - e quem diz que é porque eu gosto do doce está apenas enxergando um fiapinho da minha alma faminta de histórias e lembranças...

Aqui estou eu, vivendo num único aposento da casa, isolada de todos que amo e que temem me trazer essa doença maldita,  esquecendo (como muitos...) em que dia da semana estamos e às vezes até da passagem das horas...

Só não me esqueço de pensar - tarefa tão natural e tão árdua, tão simples e complicada demais prá mim quase que o tempo todo... 

Como eu disse uma hora dessas sou tratada como uma rainha - meu isolamento é quase um hotel cinco estrelas. Meu marido e meus filhos cuidam de tudo - limpam a casa, aguam as plantas, cuidam das cachorrinhas, lavam as roupas, cozinham... Quando atravesso de máscara o corredor até o banheiro, sem encostar em nada, de longe conversam um pouco comigo, querendo me fazer demorar e ao mesmo tempo sendo o mais breves que podem, prá evitar minha exposição aos "ares da casa". Afinal a Nana continua indo ao hospital onde faz residência realizar cirurgias de emergência e sou feita de biju (mais apropriado que cristal, igualmente quebradiço e sem conserto...).

E apesar das cinco estrelas do meu quarto, nele às vezes me sinto como em um cárcere - já até pensei em colar com pasta de dentes uma grande folha na parede, a fim de riscar nela os dias que se passam, como fazem os condenados.

Um dia destes falei prá minha Lola que, quando isso tudo acabar, vou atrás do homem que me roubou o barco e casou com minha Mercedes - alusão que minha Lolinha achou meio estranha, demorou a reconhecer na mãe a Condessa de Monte Cristo (ai, como às vezes falo bobagens, mas me deixem!, às vezes só falar bobagens já basta prá dar uma leveza ao dia, ao fardo...).

Passo o "tempo entre costuras" no seriado que protagonizo: com quilos de malhas compradas com leves defeitos na fábrica de tecidos fiz já quilos e quilos de toucas de moletom para os pobrezinhos - este ano começadas no princípio do verão prá sobrar tempo de fazer peças de roupas mais elaboradas que as mesmas - algumas blusas de mangas compridas prá aquecê-los também nos corpos mas, infelizmente bem poucas, em comparação ao grupo de necessitados que tento ajudar.

No Youtube eu havia visto um vídeo de uma grande loja oferecendo tecidos às costureiras que quisessem confeccionar máscaras protetoras a serem doadas a hospitais e outras instituições e eu me inscrevi - um bom modo de passar meu tempo costurando, sendo útil, espantando a tristeza sem motivo ou sentido com trabalho, mas dias depois a loja se retratou: nosso Ministério da Saúde proibiu o uso desse tipo de máscara caseira de tecido, dizendo ser ineficaz...

Incrível esse governo nosso: além de não fornecer álcool gel, sabão e máscaras suficientes para todos a fim de conter a pandemia ainda impede atitudes nobres voluntárias - eu até daria risada, mas perdeu a graça faz muito tempo (aliás, para quem tiver curiosidade, entrem no site do nosso Ministério da Saúde: depois da polêmica que essa portaria causou, agora o governo incentiva a confecção de máscaras caseiras usando camisetas, cortinas e até cuecas velhas...).

Daí minha filha me disse que faltavam máscaras no hospital em que ela trabalha e as colegas sabendo que ela era filha de costureira estavam interessadas em comprar umas, se eu fizesse.

Quando me inscrevi prá confeccionar as tais máscaras eu pretendia doar no hospital dela mesmo... Então, pedindo aos filhos que caçassem meus retalhos, comecei fazendo algumas e agora não consigo mais parar, de tantas encomendas! Vendo-as bem baratinho - o menor preço que vi nos sites e redes sociais. Primeiro porque isso também é uma forma de fazer o bem - abrindo mão do lucro que não ambiciono em prol dos trabalhadores que se arriscam na linha de frente das doenças que nos assolam e segundo porque com o preço de cada máscara, segundo meus cálculos, vou poder comprar moletom flanelado suficiente para uma blusa quentinha pros desabrigados - não é ótimo?

Até pensei em colocar em cada máscara um bilhetinho: "A renda desta máscara será revertida à confecção de um agasalho para alguém necessitado. Muito obrigada e lembre-se: a melhor proteção de todas é o amor ao próximo" mas, depois, deixei prá lá. 

Não preciso disso como propaganda prá vender mais máscaras, são todas tão bonitas e bem feitinhas - além de baratas - que se vendem logo que chegam, não sobra uma sequer.

Devia ter tirado foto de algumas, mas nem lembrei, ando trabalhando tanto - e agora dei uma parada prá fazer camisas novas prá Naninha, que faz aniversário no final do mês.

Aqui no quarto ouvindo ora música, ora o silêncio, ora os passarinhos do jardim, em determinados dias fica difícil lutar contra aquela tal tristeza sem causa nem sentido algum - especialmente em tempos de pandemia (eu, que em dias normais já sou tão pensativa, sozinha então... Ainda bem que meus pensamentos não tem auto falante externo, há muito já teriam me amordaçado a cabeça...). 

Conversei com Deus por um segundo, perguntando prá Ele se custava muito me fazer chorar de alegria prá variar - eu mesma me amordaçando a cabeça com razão, blasfema desnaturada cheia de bençãos e ingrata filha que sou...

Com a maioria da família fazendo o tal de "home office", mesmo com as perdas salariais decorrentes disso ainda estamos todos bem, nada nos falta, muito nos sobra - sigo eu tomando duas qualidades diferentes de antidepressivos prá lidar com as dores físicas e as psicológicas, o amor sendo de longe o único remédio que me alivia um pouco, minha família me ofertando ele de baldes várias vezes por dia, mas eu...

Eu penso nas pessoas sozinhas, que não tem ninguém que se preocupe com elas.

Penso nos idosos nos asilos, a dependerem dos cuidados de estranhos, tão diferentes de mim e, ao mesmo tempo, tão iguais...

E penso nos trabalhadores autônomos, cujo ganha pão só depende deles mesmos, os donos dos pequenos mercadinhos, das lojinhas, dos feirantes e, principalmente, dos "trabalhadores das ruas".

Os vendedores de pamonhas, tapiocas, picolés, churros, circulando pelas ruas quase desertas, vendendo quase nada porque, em tempos de pandemia, a doença pode entrar em nossa casa de todas as maneiras...

O pobre afiador de facas, com seu apito característico, os vendedores de plantas de porta em porta, querendo dar um jeito no meu jardim já por si só tão lindo! O vendedor de sacos de lixo quase transparentes, aquele outro que vende alfinetes e agulhas que logo se enferrujam num encarte com desenho de cestinha de flores...

E hoje, enquanto eu cortava uma das blusinhas da minha Nana, tentando com trabalho espantar as nuvens de tempestade que pairavam sobre mim, escuto a matraca de um vendedor de bijus - que foi de onde veio a inspiração da postagem de hoje.

Na mesma hora me cheguei à janela, espiando meio de longe através da tela que tenta impedir a entrada de mosquitos no meu quarto (os malditos se esgueiram pela porta mesmo, vindos de outro canto qualquer da casa...), torcendo para não ser vista - porque a esperança de vender passaria pela cabeça dele e eu nada poderia fazer... Em tempos de epidemia, mesmo se eu chamasse meus filhos - pensei eu - talvez eles não comprassem por medo de trazer doença prá dentro de casa...

Alguém se lembra do rapaz dos churros na praia, de uma postagem antiga minha? Pois não me esqueço dele e achei que o rapaz dos bijus ia ser mais um na minha coleção infindável de rostos quando então...

Ouço abrir a porta da frente da minha casa - aquele rangido tão familiar - e apesar do moço dos bijus ter me visto, ter dado um passo prá trás e ter seguido seu caminho subindo minha rua, uma voz que conheço tão bem e amo muito (quando não tenho vontade de esganar a garganta ciumenta de onde ela sai, de vez em quando...) ultrapassa a máscara de proteção e grita:

-"Ei, moço do biju, volta!"

Meu marido - que odeia comidas de rua, que dorme em outro quarto há quase um mês pela minha saúde, que aparece na janela prá me ver costurar e conversar comigo durante o dia, todo amoroso numa hora mas que escuta os barulhos de mensagens do meu celular (não sei como, do andar de cima da casa!) e desce querendo saber, com a veia da têmpora pulsando "quem foi", "o que foi", azedo quiném limão cravo - pergunta o preço e entra, com a bermuda que eu fiz prá ele toda torcida (como quem tava sentado e levantou correndo e nem se ajeitou, na pressa...) a fim de buscar o dinheiro na carteira.

Eu olhando ele pegar o pacote de bijus, vendo o moço sorridente de ganhar talvez prá comprar um pouco de arroz e de feijão, talvez o leite dos filhos, talvez um sanduíche prá comer - vá saber... 

Não falei nada, não me atrevi. Lembrei do homem dos churros, quando eu disse prá ele comprar nem que fosse prá depois jogar fora, só porque a gente tinha dinheiro prá comprar e porque o vendedor precisava vender prá sobreviver... Me calei - mas meu coração sorriu menos triste, um fio de sol atravessando a nuvem espessa, melhor que só pensar no cinza que eu vejo no mundo, enxergar um pouco de azul salpicado no meio e daí...

"Toc, toc, toc" de leve na porta da minha cela.

Eu coloco no rosto a máscara, como já virou costume e, ao abrir a porta, o meu "companheiro", "colega de quarto", "filho mais velho", na verdade alma gêmea da minha alma, me estende o saquinho de bijus e fala através da máscara dele, prá não me contaminar:

-"Pega com um pano. Esfrega com um perfex álcool em toda a embalagem e deixa num canto por 3 dias prá você não pegar nada, Rosa."

Me chamou pelo meu nome - tá bravo com a distância ou com qualquer coisa, mas desta vez não me zango. Eu olho quase sem acreditar e ao mesmo tempo não me espantando nem um pouco - nas contradições do amor... - e, com os olhos mareando esperando que ele não perceba, eu digo:

-"Obrigada. Eu ia te pedir prá comprar, pobrezinho do moço, não deve estar vendendo quase nada..."

E ele me responde:

-"Eu sei. Foi por isso que eu comprei."

Eu também sei que foi e fiquei tão feliz que voltei a me sentar no quarto e chorei, quieta como um ratinho que sou por bem uns quinze minutos, rezando e agradecendo a Deus pelas lágrimas de felicidade que não merecia e que ganhei tão rápidas de chegar quase como um estalo (ou um merecido tapa na cara - grita o meu "monstro no porão", gargalhando de mim sem dó).

E assim eu termino esta postagem já de rosto seco, sabendo que meus filhos vão perceber os olhos vermelhos - e vão ler o que eu escrevi como mais uma das minhas mensagens na garrafa (e sim, Ike meu bebê, eu tenho bijus no quarto e são meus reféns, não te entrego e você não pode entrar no quarto prá tirar de mim - hahaha) - deixando a todos vocês a inspiração prá se sentirem como estou me sentindo hoje:

Está difícil prá todos este tempo que estamos vivendo. A insegurança, o medo... As perdas financeiras... Mas sempre estamos bem se podemos ajudar alguém, se o "óbulo da viúva" pode sair do nosso bolso, esteja ele farto ou carente de moedas.

Se vocês não comem nem pamonha nem churros, não gostam de picolé nem sabem o gosto de um biju, se as facas das casas de vocês estão todas amoladas ou se vocês não tem nem mesmo jardim nem levam jeito com plantas - abram o seu portão de vez em quando e comprem qualquer coisinha que seja, um agulheiro de péssima qualidade ou um saco de lixo que não aguenta nem o peso do papel higiênico macio do banheiro, mas comprem. Nem que seja prá jogar fora depois, "por na conta" da vossa própria alma prá um débito futuro. 

Nunca se sabe o dia de amanhã - e tem muita gente que não tem um pouco de farinha prá por no prato hoje.

Até qualquer dia e desculpem mais uma vez tantas palavras.



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9 comentários:

  1. Ah, mas como eu me sinto feliz de ter a senhora na minha vida!
    Só mesmo um texto escrito por essa mente maravilhosa poderia me fazer rir e chorar ao mesmo tempo.
    Realmente, algo tão simples foi feito, mas pro outro (e pra senhora, de muitas formas) foi tudo naquele momento.
    Logo tudo vai passar e eu vou abraçar muito a senhora (vai ter que me expulsar daí)

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  2. Ahh, D. Rosa....
    Como gosto das suas postagens, suas lembranças da infância....
    E como admiro sua bondade!!!
    Chorei pela sua preocupação com os ambulantes que passam nas nossas portas....
    Achei lindo o gesto de seu marido em comprar os bijus (mesmo meio contrariado, mas por saber da sua preocupação), assim como todo esse cuidado de toda a sua família com a senhora....
    Cada vez que a leio, mais a admiro, a senhora é uma pessoa bonita!

    Ana

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  3. Lindo, que Deus a abençoe a si a sua família.
    Beijinhos
    Tina

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  4. Rosa, que saudades... quanto tempo não vinha aqui. Fico feliz por você estar bem, em casa, bem cuidada e vigiada pelo Pequeno Príncipe e seus aliados.
    Fico triste e preocupada, também, com todas as coisas que você descreveu no texto. Que Deus proteja sua família e em especial a Nana (guerreira essa menina!).
    E esperemos, na fé, que possamos passar por tudo isso...
    Bjs amada!

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  5. Bom dia, querida Rosinha. Fiquei muito feliz com o seu comentário, porque representa a certeza que você está bem. A sua família é magnífica e você passará incólume no meio desta tempestade horrorosa. Realmente a política de Bolsonaro é deplorável e coloca em risco milhões de pessoas.
    Por aqui temos conseguido controlar a pandemia e os númeroa são animadores.
    Eu e o marido não saímos de casa a não ser para o absolutamente indispensável.
    Os filhos estão bem, embora, sendo médicos, me preocupem muitíssimo. Procuro não pensar demasiado no problema, o que é uma defesa, ou facilmente entraria em depressão.

    Essas bolachinhas com que inicia o seu post, aqui chamam-se Língua da sogra e associo-as à minha infância, quando, na praia, as compravamos a um vendedor ambulante.

    Continue bem.
    Tenha um bom dia.
    Beijinhos da Nina

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  6. Felicidades!Suas palavras são um deleite para o tempo que estamos passando.Adoro.que Deus abençoe sua linda família.Saúde e Paz!

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  7. Com q alegria qd vim visitar o blog atrás das suas receitas e vi q voltaste a escrever e q começou a postar d novo adoro suas histórias o q posso dizer é muita saúde a vc e sua família obrigada pelas receitas e histórias bjs

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  8. Hoje, pela primeira vez visitei seu blog, adorei tudinho, essa mensagem então linda de mais... Jesus abençoe grandemente você e sua Família...

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