Na rua de cima da minha casa, a uma quadra de onde eu moro, vivia uma família formada pela mãe velhinha, da idade da minha, e seus dois filhos - vou chamá-los de Julio e João.
Ambos amigos do meu irmão mais novo, com idades pareando com a dele. Meu irmão volta e meia os visitava e tinha mais afinidade de conversa com o mais novo - não porque gostasse mais dele, mas porque o mais velho tinha um problema de saúde que o fazia muito mais lento de raciocínio, sendo aposentado e vivendo somente em casa, convivendo com a mãe e sendo cuidado por ela.
Havia trabalhado por muito tempo na SBT, como ajudante geral - montava e desmontava cenários, fazia parte elétrica, hidráulica - o que fosse mandado fazer. Um dia sofreu um acidente de trabalho, fraturou a cabeça, ficou muito tempo internado. Não tinha problemas de locomoção, mas tinha crises de epilepsia - e prá isso tomava medicamentos receitados pelo médico. Sua maior e única diversão era seu rádio.
O mais novo era funcionário público - desses que se penduram no cargo de meio período, não fazem nada e correm no banco prá sacar seu salário. Mentia prá mãe e pro irmão mais velho sobre o valor do aluguel, das contas de luz e de água, do imposto da casa - aumentando tanto os valores que alguns ele dizia ser o triplo. E ainda comentava sobre isso rindo com os outros, falando como era esperto - e com o dinheiro ele se fartava de diversão em casas noturnas, barzinhos e ainda praticava agiotagem, emprestando dinheiro aos outros a altíssimos juros.
Me perguntem: "Dona Rosa, como é que seu irmão se dava com um traste desses?" e eu respondo que desde pequeno meu irmão teve dedo podre prá escolher tanto os amigos quanto as namoradas. Tem gente que é assim mesmo, fazer o quê...
Mais ou menos uns três anos atrás morreu a mãe deles. O mais novo ligou prá casa da minha mãe avisando e pedindo 2.500 reais pro (trouxa do) meu irmão prá fazer o enterro. Depois meu irmão ficou sabendo que ele deixou o enterro por conta do governo e usou o dinheiro na agiotagem - o cúmulo da ganância, usar a morte da própria mãe prá lucrar em cima da caridade alheia. Imagino em quantas pessoas mais ele não aplicou o "Golpe do enterro da mãe".
Bom, meu irmão não aprende mesmo. Dedo podre é pouco. Continuou frequentando a casa dos irmãos - minha mãe põe panos quentes, diz que ele não gosta de dissolver amizade, que ele tem o coração de ouro, que visitava prá saber como o mais velho ia passando...
E a vida do mais velho ficou assim: o mais novo começou a levar ele num psiquiatra desses que passa prescrição muito fácil e começou a pedir remédios mais fortes pro irmão. Daí em diante, quando meu irmão ia lá, o coitado tava ou meio grogue ou dormindo. A casa uma sujeira. Restos de comida no chão, banheiro pior que de bar no centro da cidade, nunca davam descarga prá economizar - ideia do mais novo.
O coitado do João só comia miojo e pão, nenhuma verdura, nenhuma fruta, nada além de miojo e pão. E - pasmem! - o coitadinho recebia do SBT, todo mês, entregue na porta, uma boa cesta básica - que nem entrava na casa, o irmão mais novo a vendia e dizia que o SBT não tava enviando mais...
Meu irmão levou prá ele um disco de vinil do Elvis que estava na casa da minha mãe prá ele ouvir, pois ele era muito fã. Alguma alegria , mesmo pequenininha, ele tinha. Meu irmão disse que ainda tentava mudar a situação dele, tentando tocar o coração do Júlio, prá tratar o irmão melhor, já que recebia a aposentadoria do coitadinho e ficava com tudo - mas o disgranhento respondia que a vida do irmão tava boa, que ele não sentia falta de nada, que ele vivia fora da realidade...
Pois é.
Duro de se pensar nos corações de certa gente nesse mundo. Aliás acho que nem pode ser chamado de coração mesmo - é simplesmente um mecanismo de bombear sangue nesse corpo em que habita esse ser desumano, sem amor, sem empatia, essa alma doente e egoísta...
Pegando carona no assunto de coração: sabem quem foi a primeira pessoa a morrer no Brasil de corona vírus? Uma empregada doméstica, de 62 anos, que contraiu o vírus da patroa, que havia regressado de uma viagem à Europa...
Em Belém do Pará, nesta semana, o prefeito baixou uma lei na qual as empregadas domésticas eram consideradas trabalhadores essenciais - e tinham que continuar trabalhando normalmente durante a pandemia, como os médicos, enfermeiros...
Ranço maldito que sobrou da nossa sociedade escravocrata...
Era uma experiência: o governador do Estado do Pará, se desse certo, ia fazer funcionar no Estado todo - um lugar onde 80% dos trabalhadores domésticos trabalha sem registro em carteira e recebendo, grande parte deles, meio salário mínimo ou menos.
Fico imaginando as donas de mansão, senhoras ricas e poderosas, apavoradas por ficarem sem suas "serviçais"... Sentindo nojo de terem que limpar a própria sujeira...
As classes médias altas, querendo fazer suas fotos no Instagram em suas piscinas, seus jardins maravilhosos, efetuarem seu "Home Office" meia boca no aconchego de sua casa limpinha, enquanto uma pobre coitada, de máscara para não trazer o vírus do transporte público para suas belas casas, trabalha por necessidade de não perder seu emprego.
Ainda bem que essa lei não passou - essencial mesmo é ter coração, ser solidário neste momento tão difícil que o mundo enfrenta, é arcar com algum prejuízo prá outra família ter o que por na mesa.
Na verdade, uma parte de mim não quer culpá-los: não estou dentro deles, não sei como pensam, como enxergam o mundo...
Já dizia Paulo de Tarso: "Miserável homem sou, que não faço o bem que desejo, mas o mal que não quero". Como ele era rígido consigo mesmo! Como todos nós devíamos ser rígidos com nós mesmos, lembrar que muitas vezes julgamos o nosso supérfluo necessário enquanto fechamos os olhos pro mínimo básico do outro...
Fico imaginando quantas diaristas estão sem um tostão prá comprar um quilo de feijão neste momento...
Porque a maioria das diaristas não é registrada, trabalham em mais de uma casa em dias diversos, sendo dispensadas sem nada a receber nesse período de isolamento - e nessa hora, é como disse Lima Duarte (referindo-se a alguma obra que não sei): os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue. Diferente contexto mas, no entanto, com semelhanças: o suor do trabalho dessas trabalhadoras também é seu próprio sangue transformado em trabalho.
Antes da terapia esses pensamentos me fariam sofrer a ponto de chorar terrivelmente, querer sumir do mundo, querer me esconder num buraco, fugir dessa humanidade que renego.
Tento fazer o meu melhor e ele é nada, não basta, é zero a esquerda na contagem de bem do mundo - assim eu pensava...
Daí a Priscila me deu um exemplo do qual me lembro sempre que vejo notícias ruins: "Rosa, se eu te pedir emprestado 5 reais agora, você me empresta?". Eu lembrei que a bolsa anda sempre vazia, que ando de Uber com créditos que meu filho deposita prá mim mensalmente e respondi que não tinha como emprestar.
Ela me disse que sabia que eu emprestaria se tivesse e que na vida é assim: eu faço aquilo que posso fazer... Não posso sofrer pelo que não está ao meu alcance realizar.
Mas dói, não dói? Não consigo tirar da cabeça a quantidade de gente que não vai receber o mirrado auxílio contingencial do governo por não cumprirem determinados requisitos - um deles, talvez, não trabalharem na informalidade.
Tento fazer alguma coisa, o que posso. Não porque eu seja boa, mas porque me incomoda a injustiça, o sofrimento, a miséria e a fome. Já senti isso na carne, sobrevivi a isso. Está dentro de mim e queria que nunca ninguém tivesse que ter isso também dentro de si.
Não é bondade, é lógica. Quero viver num mundo melhor.
Estou agora recauchutando umas bonecas velhas, compradas em bazar, prá doá-las no Natal a meninas carentes.Uma hora dessas se eu lembrar, mostro fotos. Estou ficando cada vez melhor nisso...
Quando puder sair de casa, vou de novo na malharia comprar mais tecidos prá fazer agasalhos pro inverno que logo chega. Que Deus me ajude - que eu sempre possa ajudar aos outros, que eu nunca magoe nem atrapalhe ninguém...
No que não posso fazer nada, rezo. Converso com Deus. Que ele tenha piedade dessa nossa humanidade tão frágil.
Aliás, vocês viram a senhorinha oriental no Metrô Liberdade, distribuindo máscaras confeccionadas por ela mesma e vidrinhos de álcool gel? Coisinha mais linda e fofa, toda alegrinha com a boa ação que praticava...
Se mais pessoas soubessem que alegria fantástica é essa, melhor que qualquer coisa que o dinheiro possa comprar, que ninguém pode roubar de você e que você vai levar dentro de si quando tua jornada acabar!
Se cada um fizesse uma mínima coisa e depois mais e mais pessoas fizessem o que pudessem este mundo se transformaria tão rapidamente!
Tanta ganância, tanta fome de lucro, esse pensamento de querer tudo para si, no fim, não leva a nada! Nossa jornada passa tão depressa, nossa casa é em outro lugar e tudo o que ajuntamos não poderemos levar...
Ah, retomando a história dos dois irmãos do começo da postagem. Esta semana passada o João, com certeza fragilizado pela má alimentação, adoeceu de corona. Morreu sentado no sofá, durante a noite de sábado pro domingo.
O Júlio ligou de madrugada prá avisar na casa da minha mãe. Tentou mais uma vez aplicar o golpe do enterro, tentando lucrar em cima da morte do irmão. Meu irmão disse que não tinha prá emprestar, só 50 reais se ele quisesse vir buscar, prá ajudar...
Ele nem veio.
Domingo de manhã o carro funerário veio buscar o corpo em casa e, como já havia um corpo dentro, tiveram que amarrar o caixão do pobre coitado em cima do carro. Caixão de pinus verde, o mais baratinho, como o da mãe dele, fornecido pelo governo...
Pobre coitado do que ficou, se achava tão esperto... Agora nada mais do salário do irmão, nada mais da cesta básica recebida na porta.
Agora esquece caridade, esquece amor, esquece família, pensa materialmente, sem Deus no coração de forma alguma: se o Júlio fosse esperto, trataria bem o João, prá ele ter uma vida longa e continuar pagando todas as contas. Rendendo a bela cesta básica todo mês...
Podem reparar: normalmente, os que se acham muito espertos são os mais burros...
Realmente Rosa o ser humano com Seu egoísmo pensando só no dinheiro está acabando com o planeta, nem essa doença está abrindo os olhos é uma pena😪
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