sexta-feira, 9 de outubro de 2015

As flores do caminho



Quando eu estava no terceiro mês de gestação da minha Lolinha meus seios se encheram de leite - ficaram tão lindos... Especialmente porque antes da gravidez eu tinha dois ovinhos fritos no meio do peito - nem de sutiã eu precisava...


Tanto minha mãe quanto minha sogra me diziam que isso era sinal de que eu teria muito leite prá alimentar "o bebê" - porque não dava prá saber se era menino ou se era menina, a danadinha se escondia do ultrassom na minha barriga... Mas eu sabia que era a Lola chegando, tinha aquela intuição de mãe - e nem escolhi nome de menino, era só minha Lola prá lá, minha Lola prá cá...

Ela nasceu prematura, num domingo às 6 e trinta e cinco da manhã, depois de um sábado de muito trabalho e de eu ter esquecido de tomar medicamento prá não abortar (coisa que eu fiz nas 3 vezes que fiquei grávida, pois o risco era muito grande disso acontecer - falhando o remédio, adeus gravidez...).

Fiquei internada em enfermaria, pois não sabia que tinha direito a apartamento. Até que foi bom, fiquei com outras cinco mulheres que tinham dado a luz: muita conversa, muita risada (gente simples se diverte até em cama de hospital...). Bebi doze litros de água naquele dia - seis jarras de dois litros, um copo atrás do outro, sentia uma sede desesperadora...

Não sei se foi o stress, a emoção de pegar pela primeira vez a Lolinha nos braços - tão pequenina e tão linda, aqueles olhinhos puxadinhos de índia... - mas meu leite sumiu! Não me saía mais uma gotinha dos seios, nem se valesse um milhão de dólares...

As enfermeiras me traziam a Lolinha várias vezes por dia prá mamar - e nada. A pobrezinha choramingava de fome, aquele chorinho baixinho de criança doce - me cortava o coração até às lágrimas...

Uma moça que também havia dado a luz, percebendo a minha situação, veio se oferecer prá amamentar a Lola enquanto eu lá estivesse - era o primeiro filho dela também mas, com seios que faziam dez dos meus, ela tinha leite prá amamentar uma creche inteira (e era o que ela fazia: com a bombinha tirava o leite e punha em mamadeirinhas prá doar pro berçário - moça muito boa, nunca esqueci o rosto dela, embora seu nome tenha se perdido na montanheira de coisas da minha memória...).

Fiquei internada somente um dia - o dia de domingo, no qual a Lolinha nasceu. O Marildo me trouxe um sanduíche de provolone com maionese de azeitona preta no pão de hambúrguer, feito por ele mesmo, embrulhado no papel alumínio (pois eu tinha sentido desejo disso a semana toda e ele não tinha tido tempo de me dar)... 

Mal o médico passou na enfermaria às 7 da manhã me deu alta - prá mim e prá Lolinha... - então eu arrumei na mala as minhas coisas e fui me sentar na sala de espera do andar da maternidade. Não tomei café da manhã (pois já tinha assinado a papelada da alta e não tinha mais direito...) e fiquei ali sentada, com a Lolinha dormindo no meu colo - o estômago roncando feito um tigre.

O ronco era tão alto que acordou a Lola diversas vezes - mas eu não tinha uma gota sequer de leite, punha ela no peito vazio e ela o sugava sem resultado até que cansava de chorar e adormecia (tadinha da minha criança...). A moça que a tinha amamentado no dia anterior já tinha ido embora...

Deu dez horas e nada do patrão aparecer. Onze horas. Meio dia... As moças da copa estavam retirando as bandejas e uma delas, curiosa, me perguntou se vinha alguém me buscar... Eu respondi que tava esperando meu marido, que devia ter acontecido algum imprevisto - mas que ele viria...

Apiedada de mim ela se foi e voltou pouco depois com uma bandeja de almoço quentinho - me disse que era prá não faltar leite prá criança...

O Marildo só veio aparecer quase quatro horas da tarde. Nosso carro - um Fiat 147 vermelho caindo aos pedaços... - havia quebrado em cima do pontilhão de Guarulhos: o chão do carro tinha arriado!

Ele teve que desembolsar dinheiro pro guincho - nós dois pobres igual dois passarinhos... - teve que passar um nervoso tremendo (se consolando somente por achar que eu, por estar no hospital, estava tranquila e protegida...).

Fomos prá casa de carona de um amigo dele...

Passados três dias eu ainda não tinha uma gota sequer de leite prá dar prá Lola - que chorava igual um gatinho, miando baixinho (delicada e feminina até nisso, minha deusinha...).

Minha sogra diluiu leite de vaca com água fervida e tentou dar prá ela (pois dizia que leite de vaca era muito "forte", tinha que desmanchar ele pro estômago da criança aceitar...). O Marildo comprou uma lata de leite Nanon na farmácia - e a Lolinha só chorava e vomitava... Tentei tirar o leite com bombinha - mas nada saía...

No terceiro dia, depois de não ter dormido quase nada, não ter me alimentado, ter feito tudo quanto é simpatia e enchido o bucho de canjica prá ver se o leite brotava resolvemos - eu e o Marildo - ir até uma clínica pediátrica que tem em Guarulhos, prá ver se o médico receitava algum tipo de leite prá alimentar a Lola...

Fui com uma calça e uma blusa de grávida - pois demorei cerca de dois meses prá retornar à minha antiga forma... - e lá fiquei balançando a Lolinha prá lá e prá cá (tentando fazer ela se distrair com o balanço e não pensar na fome...).

Perto de mim havia uma moça de cabelos bem curtos, sentada ao lado de seu filho que devia ter uns 6 ou 7 anos de idade. Andando de um lado pro outro, mexendo nos brinquedos e se distraindo com as outras crianças estava o outro filho dela, de 2 anos, que tinha vindo tomar vacina...

Conversando com ela acabei contando que estava sem leite e que o motivo da consulta era descobrir como alimentar minha filhinha - e ela, com o olhar de experiência de mãe de longa data, me disse que eu estava muito ansiosa e que isso é que estava atrapalhando eu ter leite...

Disse assim prá mim:

"Olha, independente de qual leite o médico prescrever prá sua filha, eu me ofereço prá alimentar ela hoje - tenho muito leite. Assim que acabar a tua consulta me espera: a gente vai até meu apartamento e lá eu dou de mamar prá tua nenenzinha..."

Eu quase explodi por dentro de tão agradecida! O Marildo tava do meu lado e concordou com a cabeça (sem dizer uma palavra, pois estava o tempo todo rezando em pensamento, como sempre faz - acho que ele reza até mais que o Papa...).

Bom, o médico prescreveu um leite prá Lola - daqueles leites caros que nem toda farmácia tem (tivemos que rodar um monte delas prá achar - e isso porque o Marildo, no desespero, já tinha arrumado outro carrinho velho prá substituir o anterior...) e, quando a consulta acabou, lá estava a moça, esperando a gente.

A seguimos de carro até um conjunto habitacional bem modesto - mas de sonho prá nós dois, que não possuíamos casa própria, morando de favor na casa da mãe dele... - e lá fomos muito bem recebidos pelo marido dela, sentado no sofá assistindo a um jogo de futebol...

O Marildo lá ficou, ao lado dele, os dois conversando...

Quando entrei no quarto - arrumadinho, colcha de chenile vermelha sobre a cama... - a primeira coisa que reparei foi numa Bíblia aberta em cima da penteadeira, no lugar de honra entre porta retratos e vidros de perfume da Avon...

Reparando em meus olhos a moça me disse que era seu costume, prá proteger a casa e a família...

Sentada na cama ela pegou minha Lolinha com todo cuidado no colo e lhe deu de mamar por quase meia hora - e como minha menina tinha fome! Acabado um seio, esvaziou também o outro - e eu pedindo desculpas prá moça, pois ia faltar leite pro menino dela (que estava sentado no berço, se distraindo com um brinquedo qualquer, parecendo um anjo de pintura com seus cabelos pretos encaracolados e seus olhinhos brilhantes...). Ela me disse que ele já comia comida de panela, só mamava na hora de dormir - e essa hora ainda estava longe...

Quando a Lolinha adormeceu, derretida de satisfação em seus braços, ela a entregou prá mim e fomos prá sala. Lá meu marido e o moço conversavam sobre o jogo totalmente animados, pareciam dois grandes amigos.

Bebi um copo de água, agradeci imensamente aquela caridade e ela, humilde, me disse que havia sido um prazer. Que se eu precisasse podia ir lá todo dia que ela dava de mamar prá minha Lola!

Saí dali tranquila e em paz e, antes mesmo de chegar em casa, rios de leite represado escorriam dos meus seios...

Nunca precisei voltar naquele apartamento - nem que eu e o Marildo quiséssemos voltar apenas prá agradecer não poderíamos, pois não gravamos o caminho. Bem que tentamos.

Me pergunto - de vez em quando - o que terá sido feito daquela família tão boa, que nos acolheu como irmãos, que alimentou minha filha e acalmou meu coração... Que tipo de adultos serão seus filhos hoje em dia - muito bons, certamente, frutos dos bons exemplos dos pais...

Com certeza ela não se lembra de mim, apesar de eu jamais me esquecer dela... Assim como também não vou me esquecer da enfermeira que me ofertou um almoço grátis e da moça do hospital que deu de mamar diversas vezes prá minha Lolinha sem jamais perguntar nem mesmo meu nome...

No meu caminho encontrei muitas pedras - com elas dava prá erguer um muro e me apartar de tudo e de todos...

Mas como é bom deixar as pedras quietas, lá no lugar delas e, ao invés disso, fixar os olhos nas flores do caminho, não é mesmo?...
Share:

10 comentários:

  1. Rosa...a vida é assim...e ver flores que nascem entre pedras...é um privilégio de muito poucos! A Rosa tem a sorte de conseguir ver esse desabrochar! Eu amamentei durante meio ano os meus filhos! Mas minha mãe contava que eu era tão esfomeada que mamei nela e numa amiga da família! Bj amigo

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir
  3. São acontecimentos assim que nos fazem acreditar que é possível, sim! Vivemos numa selva de pedras, encurralados e temerosos por tantos olhares e gestos duros, que custamos acreditar nas flores que surgem bem ali, diante de nossos olhos. Parabéns, Rosa. Seu texto é pura emoção! beijos

    ResponderExcluir
  4. Que linda história Rosa...
    O que aconteceu com você é muito comum na primeira vez, quando as mães ficam exaustas e ansiosas o leite não desce. Quando você relaxou ao ver sua filhinha bem alimentada o leite desceu...Que bom!
    Com certeza essa família recebeu as bênçãos de gratidão que você envia a eles.
    Bjs

    ResponderExcluir
  5. Que lindo! Adorei, Rosinha!
    Tenha um sábado muito feliz!
    Beijinhos da Nina

    ResponderExcluir
  6. Ohh Rosa, que lindo!! Como é bom encontrar pessoas assim, iluminadas pelo caminho... Com certeza, os filhos desse casal são educados e amorosos, assim como são os seus.
    bjss

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Luci querida. Me desculpe nem sempre responder os teus comentários, tão carinhosos... Beijos, minha amiga.

      Excluir
    2. Rosa, não se desculpe por isso querida! Sinto seu carinho e sua atenção em todas as suas postagens, pode ter certeza!!

      Excluir
  7. Muy lindo.
    La fotografía es preciosa.Las flores llenas de vida entre las piedras... Una lección de supervivencia.

    Un abrazo.

    ResponderExcluir
  8. Oi Rosa! Que lindo texto. A vida tem dessas coisas, a gente ajuda a alguém hoje e recebe ajuda de alguém amanhã. É preciso estar disposto tanto a ajudar e a aceitar ajuda também, não é mesmo?

    Minha pobre máquina de costura tá parada desde abril, março talvez... por mais que eu tente cumprir com outras obrigações mais rápido, prá quem sabe sobrar um pouquinho de tempo prá costurar, mesmo assim não tem jeito. Mas em contrapartida fiz uma reorganização geral em casa, pintei parede, modifiquei móveis, blábláblá. tô com uma blusa cortada , simplérrima prá ver se costuro rápido, quem sabe em breve...
    beijos
    elisana
    (aliás, costurei um par de cortinas romanas em junho... tinha esquecido, forradas com tecido que bloqueia a luz (!), pra o espacinho das crianças)

    ResponderExcluir

Todos comentários são moderados pelo meu filho para evitar spam. Se você postou um comentário e ele ainda não apareceu, aguarde mais 24 horas. Obrigada!