Até lembra um pouco, não lembra? Os olhinhos pequenos, quase orientais - no hospital, quando ela nasceu, as enfermeiras me perguntavam se meu marido era japonês, por causa desses olhinhos... Era o sangue índio, por parte de pai, diluído a muitas gerações atrás e presente nesses olhinhos castanhos e meigos...
A alguns meses, voltando com ela de uma consulta médica - na qual ela me acompanhou, não me larga essa menina, sempre preocupada comigo... - fomos nós descer na lateral do shopping Penha, a fim de comer alguma coisinha antes de ir prá casa. Tinha chovido no dia anterior e um pouco naquela manhã, então as valetas estavam cheias de água suja - tinha que ter atenção na hora de descer do ônibus...
A mulher que desceu na nossa frente, apressada, nem se deu conta da sujeirada molhada que estava o chão e foi com tudo: meteu inteiro o pé direito, calçando uma sapatinha de tecido, naquela lameira toda. Empacou na porta, a barra da calça também encharcada, eu logo atrás quase caí - mas a Lolinha me segurava.
Ao invés de brigar com a mulher - que na verdade nem culpa tinha, também tinha sido pêga de surpresa... - minha Lola foi logo dizendo:
-"Ai, moça, deixa que eu te ajudo!" e, abrindo sua bolsa, ofereceu a ela um pacote de lenços de papel. Vendo que a mulher tava meio desnorteada, daquelas pessoas que ficam sem ação quando surpreendidas, minha Lolinha abriu o saquinho, foi pegando os lencinhos e, se agachando, foi esfregando os lenços por cima do pé da mulher, secando como dava... Abriu de novo a bolsa e aí pegou uma latinha de lencinhos umedecidos, puxando um depois do outro, acabou por gastar a latinha inteira socorrendo a mulher - que, estupefata, olhava prá minha filha de boca aberta...
No final a mulher agradeceu de monte e, olhando prá mim, perguntou:
"É sua filha? A senhora tá de parabéns, soube dar educação...".
Tão natural prá minha Lolinha ser assim... Não sei se eu dei educação, não me lembro disso... Que eu me lembre meus filhos sempre foram assim, doces, calmos, prestativos, conscientes do mundo à volta deles, conscientes de não serem o centro do universo, mas parte de um todo...
Mas a Lola... Dos três, ela é talvez a mais talhada prá lidar com pessoas. Talvez devesse ter feito faculdade de Psicologia e não de arte, ela poderia ajudar tanta gente!
Ela sabe conversar, sabe ouvir, sabe dizer o que precisa ser dito... Consegue fazer a gente ver onde tá errando sem fazer a gente se encolher em defesa própria, sabe como é? Ela tem aquele jeito de ser que a gente quer abraçar e contar tudo, dá vontade de dormir abraçada com ela. Tranquiliza.
Daí eu chego ao que eu realmente queria contar: o dia em que fui comprar lã prá fazer os coletes do Marildo...
Fomos à pé, eu e ela, numa sexta feira de manhã, lá na Tricolândia. Eu sei que eu tinha me prometido nunca mais ir nessa loja, pois vendem a lã muito caro, trapaceiam a gente pesando o cone junto, esses negócios. Mas é perto de casa e lá eu posso comprar menos quantidade, só 300 gramas e tem muito mais cores que na Lãs Formosa - que ainda leva uma semana prá entregar, às vezes mais - então acabo indo lá mesmo...
Lá estou eu com a Lola, sentadas quase na porta da loja, numas cadeiras plásticas que tem lá, próximas da vitrine. Já tinha entregado os cones vazios prá balconista, já tinha escolhido as lãs prá ela enrolar prá mim e fui me sentar, que não tava muito boa... Em cima do balcão tinha umas linhas lindas, que tinham acabado de chegar, cheias de lantejoulas e eu disse assim prá Lola:
-"Quando eu ganhar na loteria vou comprar essa loja todinha, até o prédio. Aí eu entro aqui e falo assim prá elas: Xô daqui que agora tudo isso aqui é meu, xispa!" e a Lola, rindo, disse assim:
-"Até as fotos da Vitória Quintal, mãe?"
Olhei por detrás da vitrine onde, coladas na madeira, estavam enfileiradas páginas e páginas de alguma das revistas da Vitória, todas com ela posando em alguma das próprias peças...
-"Ôpa, se não! Só que essas eu vou levar prá casa e vou colar no teto do quarto, bem onde eu possa dormir me inspirando com essa diva maravilhosa..."
E lá ia a conversa de nós duas, brincando igual duas bobas, quando aparece na porta da loja, passando por ela, uma mulher muito humilde, arrastando um carrinho de feira todo capenga.
A pobrezinha - dava prá se ver... - tiritava de frio, vestida com uma legging florida, uma blusa curta e surrada de lã vermelha, umas sandálias plásticas cor-de-rosa que faziam seus pés dançarem devido as meias suadas...
E parece que por causa da gente estar olhando prá mulher, a vida resolveu pregar uma peça nela: o carrinho de feira, lotado até a boca de um montão de coisas pesadas, que gemia a cada movimento das rodinhas, resolveu quebrar bem ali, na porta da loja!
Cada roda ficava enfiada num eixo de metal e só não escapava rodando prá fora por causa de um anteparo de metal, bem fragilzinho, na ponta. Bom, esse anteparo saiu voando de uma das rodas e ela caiu!
Aí a pobre mulher arrastou o carrinho até a parede próxima e começou a procurar, em vão, o tal pedacinho de ferro que segurava a roda - e nada de achar.
Minha Lola, toda preocupada, me perguntou como a gente podia ajudar...
Eu disse que o carrinho era muito velho, que mesmo que o tal ferrinho fosse achado, provavelmente deveria ter se partido por causa da ferrugem... Falei prá ela ir na dona da Tricolândia pedir um clipe de papel que podia ser que ajudasse e ela foi, enquanto eu fui ajudar a mulher a procurar...
Segundos depois a Lola volta com a carinha toda revoltada, me dizendo que pediu o clipe prá mulher, que explicou prá quê que era e que a mulher torceu o nariz e disse que não tinha nada que ver com isso...
A pobrezinha da mulher já tava quase desistindo e indo embora arrastando o carrinho pesado sem roda quando a Lolinha, toda preocupada, me perguntou se uma argola de chaveiro servia...
Nem me esperou pensar prá responder, já foi abrindo a bolsa, soltando a argolinha e me dando na mão. Fui me sentar de novo na cadeira (pois eu não estava me sentindo bem mesmo...) e a Lolinha trouxe a mulher e o carrinho até mim, ajudou a levantar o carrinho até uma altura melhor e, abrindo a argola com a unha, coloquei a roda no lugar e consertei o negócio.
A mulher ficou tão grata que quase chorou - e a Lola ficou tão feliz que eu até me senti melhor. Felicidade é um remédio muito bom e é contagioso, não sei se vocês sabem...
Fomos prá casa, ela em paz com a vida mesmo cheia de coisas prá estudar, mesmo interrompendo seu dia prá cuidar de mim... Eu - orgulhosa da filha que Deus me deu. DOS filhos que Deus me deu, pois os outros dois também são criaturas assim, lindas por dentro e por fora.
O mundo, embora a maioria das pessoas não se dê conta, ficou muito melhor depois que eles três nasceram...
Dizem que, das obras que Leonardo da Vinci produziu, a única que ele nunca conseguiu largar, dar nem vender, foi a Monalisa. Carregou ela por toda a vida, morreu com ela.
Eu entendo isso. Amar tanto alguém que a gente quer ter sempre por perto uma lembrança... Eu tenho três obras assim na minha vida... Quero tudo deles sempre perto de mim.
Rosa comovente sua descrição de alguém que tanto ama e é amada!
ResponderExcluirSua filha é linda e acredito que seja abençoada!
Bjs às duas!!!
Eta coisa linda, Rosa! Senti esse amorzão todo, bem daqui onde estou! Beijo pra vc!
ResponderExcluirNossa Rosa, que mulher abençoada!
ResponderExcluirSua filha Lola é um anjo que Deus colocou na terra para semear alegria e amor. E ainda por cima é linda!
Adorei ler suas histórias, até me emocionei...
Bjs espero que você já esteja bem
A Lolinha é uma linda! Por dentro e por fora!
ResponderExcluirGostei muito do seu relato, dessa cumplicidade mãe, filha!
Beijinhos
Sobre educação dos filhos Rosa, sabe o que eu acho? que eles são o que querem ser. Conheço tanta mãe boa, que educa tanto, que dá tanto exemplo bom, mas os filhos são umas pestes. Ai, sei lá. Comparar a sua Lolinha com a Monalisa, ah, isso não. A Lolinha é muito linda. Beijos
ResponderExcluirRosa
ResponderExcluirÉ lindo o amor de mãe mas nós, que somos mães, devemos ter muito cuidado quanto ao apego aos filhos pois chegará o dia que eles terão que sair de casa, nem sempre poderão estar ao lado dos pais embora queiram. Meu filho, por exemplo, por causa de trabalho, teve que ir para fora do Brasil.
Quando meus filhos tiveram que "voar do ninho", no começo fiquei muito triste (Síndrome do ninho vazio) mas depois fui me adaptando mas demorou quase 1 ano até eu aceitar bem.
Digo isso por experiência, continuo amando-os mas não se pode tê-los SEMPRE por perto.
Sua Lola é linda, tem os traços muito delicados, é muito mais bonita do que a Monalisa de Da Vinci.
Bjs
Rosa
ResponderExcluirObrigada pela receita do Gersal, ainda não conhecia! Hoje comprarei o gergelim para preparar o meu.
Bjs
Ai, Rosa!
ResponderExcluirUma emoção, do princípio ao fim, ler sua história, aliás: tantas histórias! E tudo vivido em poucas horas, por vocês as duas: mãe e filha.
"O mundo, embora a maioria das pessoas não se dê conta, ficou muito melhor depois que eles três nasceram..." - eu acredito que sim, porque neste mundo desnorteado, ainda que raro, a gente encontra almas iluminadas de verdade, não só "da boca pra fora", mas não são três: são quatro, com você.
Você tem três obras de arte que também a sabem valorizar, que mais uma mãe há de querer?
bjn amg em você e na sua Mona Lisa, que mais importante que ser linda por fora, é ser linda por dentro, de uma beleza rara.
Linda por dentro e por fora mesmo, Rosa! E tenha a certeza de que os três são assim muito, e muito mesmo, pelos exemplos que você e o marildo dão á eles. Parabéns pela sua Monalisa,
ResponderExcluirbjs
Obrigada, Luci querida... Desculpe não estar tendo tempo prá responder a todos os comentários, mas eu sempre penso na tua bondade e no teu carinho...
ExcluirBeijos.
Rosa linda, você nos dá muito mais do que seu precioso tempo. Você se mostra por dentro, contando particularidades da sua vida, dos seus sentimentos... e isso nos enriquece, e também nos aproxima, apesar da distância física. Deus abençoe você e a sua amada família!!bjss
Excluir