quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Natal em Setembro


Eu tinha nove anos de idade quando minha mãe adoeceu gravemente. Não que ela alguma vez na vida tivesse sido saudável: quase morreu de tuberculose aos 14 anos, teve um aborto atrás do outro até eu nascer e todos os filhos que teve foram prematuros e retirados dela à fórceps - inclusive eu... Sofreu de pressão alta em cada uma das gestações e só teve 13 filhos porque era a vontade de Deus e sua sina...


Depois do meu irmão mais novo ela ainda engravidou algumas vezes, mas esses filhos não eram prá ser deste mundo, assim como os sete antes de mim... Quando começou a ter hemorragias que não paravam mais foi diagnosticada com um tumor e encaminhada prá cirurgia, lá no Hospital Leonor Mendes de Barros, no Tatuapé - o mesmo hospital onde eu e meus irmãos nascemos. 

Nunca teve muita instrução - parou de estudar na 6ª série e foi fazer Corte e Costura. Assim sendo, ela mesma não sabia direito o que tinha de errado com a saúde dela - só sabia que era grave. Dessa forma, fez o melhor que pôde prá se despedir da gente sem fazer drama, pois - no fundo, no fundo... - achava que ia morrer. 

Nas semanas que antecederam sua internação trabalhou feito uma desesperada, pegou costuras e mais costuras em oficinas, fez faxina, lavou e passou roupa prá fora, fez pé e mão de uma freguesa ou outra e, com o dinheiro, abasteceu como pôde o armário com comida... Meu pai estava desempregado, só fazendo bicos (ou "biscates", como se chamava naquele tempo...).

Mas ela não pensou apenas nas nossas barrigas: no dia anterior ao que ia partir minha mãe nos entregou brinquedos - adiantados, pelo Natal no qual ela pensava que não estaria mais entre nós. Uma boneca Susi pra mim e uma prá cada uma das minhas irmãs: a minha tinha cabelos castanhos, a da Cida tinha cabelos loiros e a da Fátima os tinha quase brancos, platinados como eu nunca tinha visto - essa era a que eu queria, mas a minha irmã pegou primeiro...

Meus irmãos eram muito pequenos - dois deles ainda usavam fraldas - então ganharam carrinhos e uma bola de capotão, prá jogarem juntos quando estivesses maiorzinhos...

Me lembro que minha mãe foi embora levando uma pequena sacola com os poucos pertences que tinha e nenhum dos irmãos dela teve no coração a caridade de levá-la de carro - pegou ônibus sozinha, ali na Avenida Amador...

Me lembro que chorei como se o mundo tivesse acabado... Minha avó - mulher forte - consolava a mim e às minhas irmãs, disfarçando corajosamente a tristeza que certamente sentia pela partida de sua única filha mulher... 

Quando perguntei a ela se minha mãe ia morrer ela não soube o que responder - então não disse nada. 

Questionada se a gente podia fazer alguma coisa prá ajudar ela me disse prá rezar... Eu disse que já estava rezando fazia tempo, mas que parecia que eu não estava fazendo nada... Então ela me disse - talvez por pena - que eu podia fazer uma promessa.

-"O que é uma promessa, vó?"

-"É uma coisa que você diz prá Deus que vai fazer em troca de algo que você pede prá Ele. Você pode prometer não brigar mais com uma pessoa, não comer nunca mais um tipo de comida... Alguma coisa que seja difícil de fazer e que exija esforço e determinação da tua parte... Um sacrifício."

Eu pensei, pensei... então combinei com minhas irmãs que, por três anos, nenhuma de nós ia cortar o cabelo se Deus fizesse nossa mãe voltar prá casa curada... 

Minha avó disse que estava bem, que na Bíblia se dizia que Deus gostava dos cabelos compridos nas mulheres e assim nós prometemos. 

Em seu coração minha avó deve ter prometido não chorar, pois não a vi fazer isso nem uma vez sequer, embora seus olhos estivessem sempre vermelhos...

Era mês de julho e minha mãe ficou internada por 45 dias. Quem conhece hospital público sabe como é difícil ficar internado neles tanto tempo - e assim dá prá se fazer uma ideia da gravidade da sua condição...

Minha avó não pôde visitá-la nenhuma vez - pois nem meu pai se propunha a cuidar algumas horas dos filhos prá que ela pudesse fazê-lo e nenhum dos meus tios sequer pensou em trazer a esposa prá essa finalidade. Hoje, eu mesma mãe já madura e pensativa, imagino a dor e a saudade que minha mãe e minha avó devem ter sentido, distantes uma da outra tanto tempo...

Meu pai foi visitá-la uma única vez, prá pedir prá ela voltar prá casa. Disse que minha avó não estava aguentando cuidar da casa e de tantas crianças, que nenhum dinheiro estava entrando em casa pois lhe faltavam serviços e que todos estávamos passando fome...

Minha mãe então mentiu pro médico: disse que estava melhor, que já estava conseguindo se alimentar e fazer suas necessidades sem o auxílio das sondas e, assim, teve alta.

Dizem que os seres humanos não podem voar, pois não tem asas - mas quem diz isso não se dá conta dos voos que nossas almas são capazes de dar: ao ver minha mãe descer as escadas da nossa casa eu juro que voei de felicidade dentro do meu peito, da mesma forma que fazem os passarinhos quando o céu está bem azul e o dia está lindo!

Minha mãe e minha avó se abraçaram e choraram juntas - choramos todos, prá falar a verdade, até mesmo os pequenos, que pouco entendiam do que estava acontecendo...

Com minha mãe voltaram o sol, as risadas, as toneladas de fraldas estendidas no varal - por um dia apenas.

No dia seguinte, ardendo de febre e com a barriga enorme e dura ela voltou pro hospital - sua bexiga ainda não estava funcionando direito, tinha retido urina por aquele tempo todo...

Em setembro, finalmente, ela voltou em definitivo prá casa. Não tinha mais o útero - então as hemorragias acabaram. Não tinha mais o tumor - graças a Deus! - e continuou levando a mesma vida, de trabalho e sacrifício...

Em 25 de dezembro o Natal não nos trouxe nada - pois meu pai continuava desempregado. Nossas bonecas estavam descabeladas - como ficam todas as bonecas que brincam sem parar nas mãos das meninas... - faltavam-lhes sapatos, as roupas nem eram mais as mesmas (substituídas por modelos exclusivos feitos com trapos...). A bola de capotão dos meus irmãos foi furtada do quintal - pois há quem não respeite a pobreza e furte o pouquinho que pertence a ela... Os carrinhos deles nem rodinhas mais tinham...

Sentada na calçada apreciando as caixas de brinquedos exibidas do lado de fora das casas vizinhas eu pensei em como eu era feliz: meu Natal tinha sido em setembro e meu presente não tinha caixa prá jogar fora...

Essa não era bem a história que eu queria contar a respeito do Natal - tenho uma outra história, guardada no meu baú de tesouros da memória... Mas acho que muita gente ia achar triste - talvez eu fizesse alguém cansar de ler minhas histórias...

Então, por agora, deixo vocês com essa lembrança antiga de um final feliz e desejo a todos um Maravilhoso Natal, cercados de pessoas amadas - porque, cedo ou tarde, não apenas os pacotes, mas também os próprios presentes, vão todos parar no lixo. 

Só o que importa é o amor - dado e recebido...

Já estou de férias - então as postagens vão parar por um tempo. Mesmo esta foi programada prá estar aqui muitos dias atrás... Final de ano é corrido aqui em casa, são tantos presentes prá fazer, a casa fica de pernas pro ar, meu coração fica tão acelerado que nem preciso de café...

Assim sendo, quero desejar a todos que me visitam aqui no blog (mesmo os que não comentam, por falta de tempo...) um Natal cheio da presença de Deus: aproveitem bem as festas de fim de ano, comam muito panetone, bebam champanhe sem álcool (que álcool mata as células do cérebro, prá quem não sabe - e elas não nascem de novo...) e um 2015 cheio de saúde e de paz prá todos nós...
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12 comentários:

  1. Rosinha querida, um feliz natal para ti e tua família e obrigada por te teres cruzado no meu caminho. Sei que saí ganhando!
    As tuas histórias não podem nunca ser cansativas, pois são autênticas e testemunhas de uma vida que deu certo.
    Beijinhos da Nina

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  2. Esqueci:
    - Sim, as roupas das interpretes de Downton Abbey são maravilhosas, esplendorosas, únicas!
    Beijo

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  3. Rosa, você sabe bem, adoro suas histórias!! Pode contá-las sempre que tiver vontade que eu não me canso de ler.
    Um feliz Natal prá você e sua família e até 2015, se Deus quiser, com muita saúde!!
    bjss

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  4. Rosa...começo por agradecer os seus comentários sempre cheios de energia positiva!
    Gosto imenso de passar por aqui e conhecê-la um pouco melhor!!!
    Um Natal bem feliz!!! bj amigo

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  5. Bom dia Rosa.
    Vim aqui lhe desejar um feliz natal,mas a sua palavras foram um presente divino para mim, o seu relato é uma grande lição de vida, no final de tudo o amor é algo mais importante do que todos os presente que podemos da ao nossos filhos. Um lindo e iluminado natal.
    Beijos.

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  6. Foi bom ter ouvido um pouco de sua historia e lembrar que pessoas como voce sao gente como a gente e passamos por dificuldades e o que nos resta sempre e a esperanca.
    Que Deus continue iluminando os teus passos e que o Natal seja repleto de realizacoes e felicidade. Bezo.

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  7. Querida, amo suas histórias, que são puras lições de vida, de garra, de força que nos incentiva na caminhada. Que seu Natal também seja de muita Luz, de Paz, de Amor e União com os amores todos de seu lar. Você é um ser Iluminado, então leve Luz para todos, Brilhe!!! Brilhe sempre. Carinhos de Ana Clara - Poços de Caldas - MG.

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  8. Ah, Rosa... Gosto demais das suas histórias, a gente sempre aprende tanto com elas... Obrigada por fazer parte das nossas vidas. Que Deus continue abençoando você e a sua família, um bom Natal para vocês, e um 2015 maravilhoso!!!

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  9. Realmente o único presente que fica é o carinho que damos e recebemos de quem amamos. Assim, desejo que o baú de carinhos de sua família esteja abarrotado, que vocês possam apreciar este presente de grande valor, que tenham saúde e que transborde o amor. Um 2015 com muitas histórias, realizações e alegrias!
    Bjs mil!
    Mara

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  10. great !
    Greetings from Poland :)
    Katarzyna


    www.sajuki.blogspot.com

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  11. Rosinha, que situação triste e difícil, sua mãe é uma mulher com M MAIOR, até fiquei emocionada, Deus abençoe vocês, toda a familia,
    muitos beijos amiga

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  12. Obrigada a todas as amigas queridas que aqui deixaram comentários tão lindos! Desejo a todas um ano de 2015 cheio de paz, com muita saúde prá lutar pela felicidade de cada dia. Beijos!

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