Era noite escura, sem lua nem estrelas - 05:19 da madrugada. Sei disso porque olhei no relógio do carro antes de descer prá abrir o portão. Poucos minutos antes me lembro que, ao passar pelo termômetro de rua, achei graça do horário ser 05:17 e estar fazendo 17 graus - uma madrugada fresquinha, como eu gosto... Tínhamos acabado de deixar minha filha Nana do Metrô Penha, a fim de que ela fosse prá faculdade, como sempre.
Abri o portão, sempre de olho no lado de cima e no de baixo da rua, temerosa dos assaltantes que infestam minha amada Penha - e que não escolhem hora, atacam o tempo todo, em todo canto.
Em sua lentidão costumeira, face o espaço estreito da garagem para um carro tão grande - uma Ford Ranger - o "Marildo" estaciona o carro e eu, apressada, fecho o portão e passo o cadeado.
Então, como que saídos de lugar nenhum, dezenas de pessoas aparecem do nada do outro lado da rua - incluindo montes de policiais! A casa dos meus vizinhos de frente se mostra, então, toda acesa e eu, estupefata, vejo gente encostada nos muros sendo revistada, gente sendo levada prá viatura com as mãos algemadas - incluindo o casal de vizinhos, um pouco mais velhos do que eu e meu marido, cabisbaixos e com as mãos algemadas nas costas!
Meu marido se aproxima do portão, preocupado e me pergunta o que estava acontecendo e, ao ver esse quadro absurdo, fica ainda mais espantado do que eu - mas, ao invés de permanecer apenas no espanto, decide que tem que sair e ir prestar auxílio ao casal de vizinhos, que devem estar precisando...
Eu digo que é perigoso, tanta gente estranha, tantas armas! Ele me diz que acha que os vizinhos foram assaltados, reagiram e acabaram matando um dos ladrões - por isso deviam estar sendo presos.
-"Os dois filhos deles são advogados, entra!!!" - e, medrosa, vou em direção à porta. Ele pára, naquela indecisão que lhe é costumeira.
Mal eu atravesso o batente da porta sou empurrada por ele prá dentro, às pressas, aos gritos de "Fecha a porta! Fecha a porta! Eles pularam as grades, vão entrar em casa!!!"
Desesperadamente eu e ele jogamos nossos corpos contra a porta, tentando em vão fechá-la - mas são tantos, são muitos! O tempo todo eu com as chaves da casa nas mãos, tentando enfiar na fechadura e trancar a porta, mas nosso esforço é em vão, estranhas mãos passam pela abertura, arrebatando o chaveiro carregado das minhas... "Eles vão entrar!!! Estão entrando!!! Eles... Meus filhos, meu Deus!!!"...
Nesse momento, com o coração totalmente descompassado, batendo dentro dos meus ouvidos e no meu corpo inteiro, prestes a explodir no peito de tanto tormento, sou acordada por suaves e delicadas lambidinhas - minha cachorrinha me salvou do pesadelo mais real e assustador que tive nos últimos tempos - como é que ela sabia???
Enquanto olho praquele rostinho carinhoso, praqueles olhinhos doces cor de âmbar, luto prá afastar de mim as imagens tão reais daquele pesadelo - mas não consigo.
Era quinta feira da semana passada e durante todo aquele dia e o seguinte fiquei assombrada. Ao abrir as portas, de madrugada, olhei cautelosa embaixo do carro - prá ver se não tinha ninguém escondido e até recuperei meu "chaveiro de lagartixa". Eu explico: é um chaveiro de metal que ganhei há muito tempo do meu filho, que não tem um bom acabamento e tem as bordas afiadas, especialmente na cauda da bichinha - é a minha "faca ninja". O "Marildo" tira a lagartixa do molho de chaves, dá sumiço nela, diz que machuca, que é perigosa e eu sempre acho (de um jeito ou de outro) e a recoloco no lugar. Digo que, se alguém vier me atacar, me defendo com ela - e todo mundo ri, dizendo que aquilo não causa dano algum... Mas me dá mais confiança, é o que me importa...
Então chegou o sábado. As meninas saíram cedo, foram se encontrar com amigas. Um amigo do meu filho veio buscá-lo em casa - está precisando de ajuda prá estudar prá um concurso público e meu garoto é muito bom ensinando. O "Marildo" tem trabalho voluntário todo sábado e domingo, saiu de casa pouco antes das nove horas. Nove e quinze, eu fazendo o acabamento de uma blusa em crochê sentada no sofá da sala ouço tocar a campainha e me pergunto quem seria àquela hora e, olhando através da cortina da copa, vejo parado em frente à garagem, com um rosto esquisito, meu marido, parecendo muito nervoso...
-"O que aconteceu?" - eu pergunto, enquanto rodo nas mãos o molho de chaves, procurando a certa prá abrir o portão...
-"Levaram o carro. Eu estava reduzindo a velocidade prá parar, acertando o carro no meio fio e, do nada, me apareceu um cara armado, apontou a arma prá mim e me mandou descer... Levou o carro com tudo..."
-"Mas não te machucou?" - puxo ele pela mão e vistorio com desespero o rosto tão amado, as mãos, os braços, a camisa clara de mangas arregaçadas. O abracei bem apertado e o cobri de beijos, chorando de alegria! Cheirei o perfume suave da camisa, o cheiro limpinho da sua barba, o cabelo macio recém cortado... Ele relaxou um pouco, pareceu - nessa hora - se dar conta de que estava vivo e que isso era mais importante que tudo...
-"Ele me perguntou se eu era policial, viu o meu crachá... Apontou a arma prá minha cabeça e, por milagre, não me matou, a mão dele tremia. Eu disse prá ele, o crachá é da Receita Federal... Já liguei do celular prá 190, agora tenho que ligar prá seguradora, tenho que fazer boletim de ocorrência, chama o Ike prá me ajudar, tô meio sem chão... Sabe o que é pior, benzão? Ele levou as chaves da casa e, no carro, tem umas contas prá pagar que tem nosso endereço!"
O amigo do meu filho o trouxe de volta prá casa em minutos, meu marido ainda estava no telefone com a Porto Seguro. A funcionária o orientou a fazer o BO pela internet, que tinha a mesma validade que comparecer na delegacia e perder o dia todo - e assim foi feito.
Em minutos após registrada a ocorrência ligou prá casa uma funcionária da delegacia, a fim de confirmar os dados - e, o tempo todo, eu parava o que quer que estivesse fazendo prá abraçar essa pessoa tão amada pelas costas e chorar mais um pouquinho (de felicidade...).
O chaveiro da seguradora apareceu e trocou todas as chaves da casa, incluindo as do portão - mais uma coisa boa em ter seguro. Encarece a vida, mas compensa nessas horas...
Tem mais essa: nosso seguro garante 15 dias de aluguel de carro grátis enquanto se resolva a situação - ou se acha o carro ou se compra um outro - e assim lá foram os dois homens da minha vida até o aeroporto, na Localiza, buscar o veículo.
Fiquei só de novo - mas por pouco tempo. Toca de novo a campainha e os companheiros de voluntariado de meu marido, que haviam testemunhado o assalto, apareceram prá se solidarizarem, oferecer ajuda, o que fosse.
-"Está tudo bem" - eu lhes garanti. "Ele foi com meu moleque buscar um carro lá no aeroporto..."
-"E como é que ele está?"
-"Tá mais calmo, mesmo continuando chateado... Mas tá tudo bem, foi só o carro. Não fizeram nenhum mal prá ele e isso é que importa. Carro a gente trabalha e arruma outro, não tem importância nenhuma..."
-"A senhora parece estar até alegre, que bom que isso não te abalou!" - disse uma das mulheres.
-"Ah, eu tô feliz da vida. Deus foi muito bom, cuidou do que mais importa... Acho que eu devo sofrer de algum distúrbio que me impede de ver o lado ruim da situação, só consigo enxergar a bênção que foi ele não ter sido ferido, estar são e salvo...".
Eles foram embora e o resto do dia transcorreu normal. Fiz duas pizzas bem gostosas pro almoço - não estava com muita vontade de perder tempo na cozinha. Uma de palmito e uma de chitake. Comi só um pedacinho da segunda, não tava com fome. Tudo o que me importava era - volta e meia - grudar no "Marildo" e enchê-lo de beijos, rezar baixinho agradecendo a Deus por sua imensa bondade, chorar mais um pouquinho...
Domingo de manhã fomos os dois juntinhos fazer sacolão, buscar depois os ovos de duas gemas encomendados na feira - usando o carro alugado. Ganhei um bolinho de bacalhau - mesmo chateado esse "Marildo" ainda me mima...
Fiquei de novo sozinha em casa - os filhos foram com ele fazer o serviço voluntário, como vão todo domingo.
Daí bateu uma tristeza - a primeira. Me lembrei da lixeirinha do carro - que meu marido nunca usa prá jogar lixo. Daquelas lixeirinhas pretas ofertadas pelo lava-rápido, bem fuleiras... Dentro dela, tilintando, mais de trinta reais em moedas - todos os trocados que meu marido recebe. Ficam ali, à mão, e ele as distribui um pouquinho aqui, outro ali, em cada farol e esquina que pedem - nunca falha... Me lembrei dele conversando com a policial no telefone, no dia anterior, dizendo que até sua sacolinha de moedas haviam levado... Me lembrei também que, no carro alugado - no lugar do porta copos - já haviam novas moedas, em menor quantidade, certamente com a mesma finalidade. Chorei pela bondade dele, por ficar triste - em meio a coisas maiores - por um mero saco de moedinhas...
Ao retornarem prá casa o almoço bem gostoso já os esperava - conchinhas enormes de macarrão recheadas com cottage caseiro, repletas de molho de tomate e muito queijo ralado, peixe grelhado, salada de batatas, salada de alface... Almoçaram satisfeitos e foram todos tirar um cochilo merecido - só eu permaneci acordada (senão não durmo à noite...). Me ocupei de um tricô e, lá pelas duas horas, tocou o telefone - era a polícia, avisando que o carro tinha sido encontrado. Chamei meu marido e, enquanto ele se trocava, tocou a campainha.
Quando eu atendi, mais uma boa surpresa: era um motoqueiro, funcionário da Porto Seguro - justamente aquele que havia encontrado o carro e avisado a polícia. A seguradora tem dessas: funcionários motorizados que circulam pelo bairro em busca do veículo roubado e que fazem eles mesmos o trabalho da polícia - e a gente achando que o carro tinha localizador... O outro tinha, a gente continuou pagando por isso e, desta vez, a seguradora falhou - vão ter que se explicar, segundo o "Marildo"...
O rapaz nos explicou que funciona assim: o ladrão faz parte de um grande grupo, uma gang organizada, que rouba os veículos prá vendê-los em partes, desmanchados. Como não sabem se os carros tem rastreadores, antes de levá-los para o local do desmanche, estacionam os mesmos em algum local onde não chamem atenção por estarem abandonados - normalmente próximos a grandes prédios de apartamentos, nos quais os moradores não tem tantas vagas na garagem quanto gostariam e por isso são forçados a deixarem carros na rua. Como nem todo mundo se conhece, um carro a mais parado na rua não faz diferença. Daí, por uns dois dias, eles passam nessa rua prá checar se o carro continua lá. Depois de uns dois dias, se o carro não foi resgatado, quer dizer que não tem rastreador e, por isso, é seguro levá-lo pro desmanche...
Estava estacionado a menos de um quilômetro da nossa casa - bem estacionado, sem nenhuma avaria, nenhum arranhão. Não levaram nem o som, nem o ar condicionado - até o estepe estava lá. Quer saber o maior milagre, aquele que fez meu marido sorrir bem largo, de orelha a orelha?
A lixeirinha cheia de moedas - estava lá...
Só levou duas coisas - na verdade, três: o boné de estimação do "Marildo", uma caneta cara, folheada a ouro, com enfeite de madrepérola e o nome dele gravado, presente de uns alunos da faculdade e o nosso sossego por um dia e meio. Mais nada.
Retomado o rumo da vida, a gente parece que acorda do pesadelo - não por causa das lambidinhas da cachorrinha, mas devido à bondade divina, à sua misericórdia para conosco...
Pesadelos sempre vão haver - é consequência do próprio curso da existência. Em muitos a gente chora, noutros a gente se desespera - às vezes, chega até a perder a fé...
Sorte quando a gente consegue acordar deles e viver um novo dia, pensar na parte boa, torcer prá esquecer, a cada dia, o mal que nos acontece... No nosso caso - só teve parte boa. Só Deus sabe o porquê.
A nós, em meio a tanta tristeza e dor que corre pelo mundo, só nos cabe agradecer...
Amiga querida, que pesadelo mesmo! E o susto? Já passei por isso e sei como é. Graças ao Senhor nada aconteceu a ninguém. Sabemos que bens materiais conseguimos repor de alguma forma, mas é angustiante mesmo. Onde mora o Senhor, nada de mal acontece, assim é. Desejo-lhes muita paz. Grande e forte abraço desta sua amiga de coração.
ResponderExcluirRosa querida, mesmo com um percalço tão grande conseguiu superar e dar apoio ao "marildo" grande Mulher, Deus está consigo o pesadelo acho que foi um prenúncio do que ia acontecer. Beijinhos grandes. Tina
ResponderExcluirOi Rosa que bom que tudo acabou bem, graças a Deus, porque vocês não colocam um portão automático, aqui em casa tem e ajuda bastante. Beijos querida. Elaine.
ResponderExcluirbela e triste história. Bela história com final feliz!!!! Fico feliz pela família ter saído ilesa dessa grande aventura...
ResponderExcluirNossa Rosa, que susto, acho que eu ficaria muitas noites sem dormir depois disso…Ainda bem que nada aconteceu com o marido, que ele ficou são e salvo e que o carro foi encontrado.
ResponderExcluirQue triste viver numa cidade sem segurança, tantos impostos pagos para nada…
Bjs querida
Que loucura! Felizmente no final deu tudo certo. Até nessas horas você escreve super bem.
ResponderExcluirO melhor é que você sabe dar valor ao que realmente importa: a vida. Que Deus abençoe sua casa Rosa.
Bjs
Mara
Rosa, rosinha, querida,
ResponderExcluirEstamos vivendo dias sem sossego, sem paz. Vivemos inseguros e assustados.
Fico imensamente feliz em saber que seu Marildo está bem.
Você tem toda razão, vão os anéis...todos, todos...mas ficam os dedos.
Sua intuição te deu um leve aviso da tribulação pela qual passariam.
Fico triste e apreensiva em saber, em ver que não há punição adequada para gente que só pensa em fazer o mal para outros...
Que lindinha sua cadelinha...owmmmm...uma fofa!!!
Desejo a você e família muita paz e que superem mais esse grande susto.
E eu...ainda na reforma...agora na reta final...ando atrás de preços para mármore e (estou de boca aberta com a diferença de preços de uma marmoraria para outra.)
beijinhos, querida, tenha uma boa noite de repouso
Lígia e =^.^=
ufaaaaa! Graças a Deus tudo acabou bem, imagino o nó no estômago! Que bom que a sua perspectiva esteve no fator mais importante o tempo todo, e que o seu carro foi encontrado sem danos.
ResponderExcluirRoubo é uma violência, violação. A gente se sente tão vulnerável.
Como você escreveu tão bem: sorte é quando a gente consegue acordar do pesadelo.
Que bom que está tudo bem com você e sua família.
bjo
Ufa! Que situação! Por aqui já vai acontecendo! Terrível!
ResponderExcluirGraças a Deus que tudo se compôs sem consequências!
Um grande beijinho da Nina
Rosa
ResponderExcluirQue susto mas felizmente passou!
Depois de todas as providências necessárias tomadas, acabou tudo bem e isso é o que interessa. Melhor nem pensar muito nisso e apenas agradecer a Deus por estarem todos bem.
Fiquem com Deus.
Bjs