quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O brilho do sol


Quando se tem pouco na vida, cada pequena coisa tem importância...

Seja a goiaba cheia de bichinhos que nasce na goiabeira do quintal, doce como algumas lembranças que a gente guarda, seja a luz do sol num dia longo de verão - quando a noite traz de volta prá casa o pai da gente, sempre bravo, que sabe usar uma cinta como ninguém...


Uma das lembranças bonitas da minha infância - porque eu ainda me considerava uma menina, mesmo com quatorze anos... - foi a única vez que me pediram em namoro...

Ele era um menino tão lindo! Tinha os cabelos com caracóis enormes, castanhos, que brilhavam dourados devido ao sol, parecendo ouro de alta quilatagem, envelhecido... Os olhos, castanhos bem clarinhos, meio verdes, brilhavam luminosos no meio do rosto bronzeado, brigando pela atenção da gente com o sorriso enorme, de dentes muito certos e brancos...

Eu e as outras meninas nos sentávamos em alguma sombra de árvore e ficávamos a assistir os garotos jogando futebol na rua e esquecíamos os problemas, a pobreza - especialmente eu.

As outras meninas já namoravam - ou tinham namorado - alguns dos meninos jogando bola, mas eu não. Acontece que eu não era nenhuma beleza, era magrela demais, branquela demais, não sabia fazer charmes e dengos - era uma menina triste e cheia de pensamentos na cabeça. Mas quando o assistia jogando bola...

A vida parecia mais bonita, dá prá entender? Ele era tão alegre, tão cheio de vida! Nem olhava prá mim, mas eu não me importava - quem visita o Louvre e aprecia a Monalisa não fica triste de não poder levá-la prá casa, se contenta apenas em poder apreciá-la...

Ele era tão pobre quanto eu - talvez mais. Meu pai e o dele eram amigos, saiam prá caçar e pescar juntos volta e meia, eram chegados demais em bebida alcóolica, tratavam muito mal suas esposas e filhos - uma família era quase a cópia da outra. Ele também tinha cinco irmãos, como eu...

O pai dele morreu afogado, numa das pescarias que fez com meu pai - tava tão bêbado que caiu do barco, no meio da noite, custaram a encontrar o corpo...

De certa forma eu tinha mais sorte do que ele: minha mãe tinha mais prendas prá se virar e sustentar a família. Costurava, bordava, fazia tricô e crochê, fazia coxinhas prá vender nos bares, vendia livros... Cortava cabelos, fazia pé e mão - qualquer coisa honesta minha mãe fazia prá sobreviver... Já a mãe dele só sabia fazer uma coisa: docinhos. Fazia brigadeiros, pães de mel, ovos de páscoa... Era gigantescamente gorda, parecia o personagem "Mama Bruscheta" que passa no programa de televisão... Acabou morrendo cedo, nem cinquenta anos tinha.

Moravam numa travessa da minha rua, numa casa que pertence à família deles até hoje, mas está alugada...

Entrei nessa casa apenas uma vez na vida, entregando uma costura a pedido da minha mãe, cheia de vergonha dos garotos (dele e de seus irmãos mais velhos)... Entrei muda e saí calada...

Em frente dessa casa tinha uma mansão, de uma costureira de luxo prá quem minha mãe prestava serviço quando faltava freguesa - chamava a si mesma de "estilista". Era uma casa muito grande, toda coberta de pastilhas azuis e dentro parecia casa de novela. Tinha os móveis mais lindos que já vi, lustres de cristal, piano, quadros à óleo espalhados pelas paredes, pintados pela própria dona da casa. 

Ali vivia a menina mais mimada do lugar, com direito a escola particular (o Colégio São Vicente de Paula) - coisa que ninguém no pedaço nem sequer sonhava. O uniforme dela era lindo, azul marinho com camisa branca e até gravata tinha, parecia um sonho. O nome dela era Laura e ela era a namoradinha dele.

Faziam um casal lindo, ela toda branquinha e delicada, como uma princesa; ele, dourado do sol da rua...

A mãe dela era contra, achava um desaforo a filha, criada com todo luxo e mimo, namorar um pobretão como ele, um maloqueiro que não ligava prá estudo, que vivia na rua jogando bola... Eles desmanchavam e voltavam, desmanchavam e voltavam. A mãe ameaçava colocar a menina num colégio interno.

Um dia, numa das desmanchadas que eles tiveram, lá foi minha mãe entregar ela mesma a costura e, quando voltou disse, sorridente, que o André tinha pedido prá me namorar e que tinha vindo junto dela até o portão.

Espiei pela cortina e lá estava ele, parado encostado no muro, os cabelos brilhando no sol...

Um monte de coisas passou pela minha cabeça...

Eu poderia ter uma chance de fazer ele me conhecer e gostar de mim, esquecer da outra menina... Mas, mesmo não entendendo nada de amor, não me pareceu que fosse possível fazer alguém amar você, por melhor que você fosse...


Eu não estava apaixonada por ele, só o achava bonito - será que valia a pena namorar alguém só por esse motivo? A maioria das minhas amigas responderia que sim, mas eu...

Pensei também que ele só estava fazendo isso prá causar ciúmes na menina que ele realmente gostava, que eu ia ser usada como uma coisa e jogada fora depois. 

Mesmo assim achei bom ele ter me escolhido prá isso - já depunha em meu favor, eu pensei... Tendo um monte de garotas prá escolher prá isso, ele tinha escolhido EU...

Por fim, achei absurdo ele me pedir em namoro através da minha mãe - pensei: "Que diacho! Em que século estamos vivendo??? Será que eu sou assustadora, que dá medo conversar comigo?". 

Tornei a espiar a janela pela renda da cortina, vendo ele ali tão lindo, esperando uma resposta minha, me virei prá minha mãe - tão ansiosa, eternamente romântica, aguardando o primeiro namoro da filha... - e disse prá ela ir lá fora dizer que eu não tava em casa, que tinha ido fazer um trabalho na biblioteca.

Ela foi, a contragosto...

Fiquei muitos dias pensando nisso. Achei que, se ele realmente gostasse de mim, daria um jeito de vir falar comigo - mas nunca veio. 

Reatou e desmanchou o namoro com a menina rica mais um montão de vezes.

Um dia, voltando de uma noitada com amigos, de algum bar no centro da cidade, ele salvou a vida de um homem. Era uma tecelagem que tinha na Amador Bueno, pegou fogo no meio da madrugada e o segurança tava desmaiado lá dentro, quase sufocado pela fumaça. Ele entrou sozinho e resgatou o homem, se machucou feio num braço, até saiu no jornal.

Ele nunca terminou os estudos. Sempre trabalhou no que aparecesse: ajudante de pedreiro, vigia noturno, vendedor de queijos numa perua, de porta em porta... Casou, teve filhos, separou. Virou um alcóolatra...

Um bocado de anos atrás, quando meus filhos ainda eram pequenos, eu e o Marildo voltávamos à pé do cinema e entramos na padaria perto de casa, prá comprar uns pães de queijo prás crianças. Lá estava ele, bebendo no balcão - ficou me encarando sem parar, causou até ciúmes no Marildo... Já não estava bem, parecia tão mais velho do que eu!

Mais recentemente ele voltou a morar ali no pedaço - vê só como são as coisas: inquilino da antiga namorada. Ela internou a mãe num asilo, no interior de São Paulo e nunca mais a viu na vida - morreu por lá, pobre da mulher. Dona de todos os bens, todas as casas, vive de receber os aluguéis dos imóveis, incluindo duas mini-casinhas que ficam no porão da casa em que vive, quarto-cozinha-banheiro de tamanho irrisório. Bem pertinho da casa da minha mãe, então passei a vê-lo sentado na porta, na calçada, quando estou de passagem.

Ele, envergonhado, abaixava os olhos pro chão todas as vezes.

Velho como se tivesse vinte anos a mais, magro como um farrapo, quase nenhum dente na boca. Os irmãos abriram mão do convívio com ele, esqueceram que ele existe. Mandavam entregar prá ele parte do aluguel da casa, que ele usava mais prá beber do que prá comer, se acabando um dia depois do outro...

Eu - romanticamente, confesso - imaginava que até tinha certa beleza poética no fato dele morar no porão da casa dela. Afinal, apesar do abandono da família dele, apesar dos destinos tão separados que os dois tiveram desde a juventude, ela o estava amparando na velhice (coisa que muitos cônjuges não fazem, não é mesmo?). Eu pensava que ela o deixava ficar ali de graça, em lembrança por outros tempos... 

Mas não: ela cobrava dele duzentos reais pela moradia, o tratava como um estranho. Casou-se diversas vezes, cada filho de um pai diferente e eu me pergunto: será que a vida de ambos teria sido outra? Será que o amor deles lhes teria dado uma vida diferente? 

Sinceramente: acredito que não. Sou cética a respeito desse tipo de coisa. Mesmo casados acho que ele acharia um motivo prá beber, acabariam se separando - de um jeito ou de outro. 

Acho que algumas pessoas, por mais boas que sejam - e ele era um rapaz muito bom - tem o coração de vidro (e não apenas no que diz respeito a decepções amorosas). Fazem determinadas escolhas, daí as dificuldades da vida os quebram e depois, mesmo colados os caquinhos, nunca mais é a mesma coisa prá eles...

Semana passada, passando por onde ele morava, notei a placa de "Aluga-se" na porta da casinha. Me perguntei, triste, se ele havia morrido...

-"Foi internado" - minha mãe disse. Tava semi-morto de tanta bebida e os irmãos o mandaram prá um asilo, sabe lá Deus onde. Dizem que não volta mais...


Confesso que chorei - sou uma boba, eu sei... É que, na minha cabeça, a cada ser humano que conquista uma vitória, cada médico que realiza com sucesso uma cirurgia, cada artista que pinta um lindo quadro ou escreve uma linda história, a humanidade como um todo avança mais um passo em direção ao seu potencial divino - e o contrário também é verdadeiro prá mim. Cada pessoa que sucumbe ao peso da adversidade, cada um que é derrotado pelo destino, é uma perda prá todos nós. Parte da minha infância se perdeu, deu errado, por causa disso.


Gostaria de tê-lo visto envelhecer com dignidade, de ter presenciado um outro desfecho, mesmo que numa comum e corriqueira história.

Nunca mais o sol brilhou daquele jeito, nem prá mim, nem prá ele. Prá ninguém. Como é linda a esperança, o caminho que se tem pela frente quando se viveu pouco e não se sabe quase nada da vida - e tudo pode acontecer! 

E aí, um dia depois do outro, vem a chuva, vem a noite, um sonho que não dá certo, outro que se realiza mas não valeu tanto assim a pena - a gente teima em pegar um atalho quando devia seguir em frente e assim se vai moldando o futuro... 

Hoje, olhando prá trás, agradeço aquele "quase" pedido de namoro - fez eu me sentir um pouquinho bonita, por um pouquinho de tempo... 

Agradeço mentalmente a ele, ao garoto que ele um dia foi, por ter tornado os dias de sol da minha infância um pouco mais bonitos...

Principalmente, agradeço a Deus pelo que Ele me negou e pelo que Ele me deu - apesar dos tombos, meu caminho tem valido muito a pena.

E peço a Deus que olhe por aquele menino tão bonito - Ele, que é Pai de todos nós, pelo menos Ele, deve amá-lo muito, com certeza... 

Que pena, não é mesmo?... Nem todas as histórias tem final feliz...
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11 comentários:

  1. Ai Rosa, que triste…eu aqui na minha noite de insônia com lágrimas nos olhos lendo a sua história. Fiquei emocionada com suas palavras, com seus bons sentimentos para com a humanidade, muito bonito.
    bjs querida e uma linda quarta-feira para você

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  2. Rosa...uma história de vida!
    Tenho um cunhado alcoólico...e sei bem o que isso é!!!
    Bj amigo

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  3. Mais uma história triste de alguém que desperdiçou essa dádiva que é a nossa vida. Deus nos dá oportunidade de crescermos e se não o fizermos é de certa forma uma covardia. Crescer dá trabalho e às vezes dói. Que o dia que nos encontrarmos seja o melhor de nossas vidas e não um dia de tristezas e arrependimentos.
    O lado bom é que a história desse homem nos ajuda a crescer. Aprendemos com ele como é difícil viver e ao mesmo tempo como pode nos dar prazer. Ter um vício é uma prova muito difícil e vencê-lo é para poucos tem que ter muita fé e ajuda. Um dia maravilhoso para você. Conheci a muito pouco tempo o seu blog e adorei. Parabéns. Só quero lhe dizer que acho que você deve ser uma pessoa belíssima por dentro e por fora só não tem consciencia disso e é muito exigente com você mesma. Beijos. Katia Vieira

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  4. Olá queridíssima amiga, realmente é uma história triste. Mas, sabe, eu acredito que nossa vida esteja totalmente traçada nos céus, mesmo antes da nossa chegada por aqui. Cada um tem uma missão, para alguns mais leve, para outros mais pesada. Nossa vida é um eterno aprendizado e é para isso que aqui estamos, para aprender dia após dia, para nosso crescimento. Algumas pessoas conseguem descobrir isso, outras não. Sabe-se lá se você tivesse ficado com esse rapaz, o que teria sido de sua vida? Hoje você tem uma família linda, que a ama e que você ama profundamente. De uma coisa eu tenho certeza, você está cumprindo sua missão, o que lhe foi destinado. É o destino de cada um. No meu entender, não podemos mudar o destino, podemos somente melhorar nossa vida.
    Querida, tenha um bom dia e fique na paz do Senhor. Beijinhos carinhosos.

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  5. Nossa era lendo a história e me sentindo parte dela parecia que eu estava ali naquela casa luxuosa a observar você admirando a garota mimadinha, tua mãe nas costuras e a mãe arrogante. História real com um final triste, mas que deixou marcas e lição de vida.História muito parecida com as tantas dos livrinhos da Júlia, Sabrina, barbara que lia na ninha adolescência.Muito bom ler, ouvir histórias assim e você é muito boa nas suas escritas,poderia escrever um livro. Amei e muito obrigada por me fazer voltar ao passado junto com você. Foi uma viagem maravilhosa.

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  6. Muito triste...
    Acho que sim, poderias nem ter casado com ele, e hoje estaria casada com o mariildo, mesmo. Mas penso que se tivesses ao menos falado com ele por ocasião do pedido de namoro, pudesses ter impresso na vida dele mais alma, mais luz, um outro olhar sobre a vida. Quem sabe?! Penso que nem tu, Rosa querida,
    "Cada pessoa que sucumbe ao peso da adversidade, cada um que é derrotado pelo destino, é uma perda prá todos nós.
    Mas não acredito que parte da tua infância 'deu errado' por isto. Nunca saberemos porque nossos caminhos tem determinados desvios.

    Amiga, continuas sendo uma das minhas escritoras favoritas.

    Bjs

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  7. Rosa, que estória mais bonita. Fico encantada com a enormidade da sua humanidade, que a faz tão bondosa, por importar-se tanto com a situação de um coleguinha da infância. A sua alma é deveras, muito iluminada. Adoro ler as
    Os seus textos, são bem detalhados, leves, que nos fazem rir e chorar em muitas passagens, parece que somos parte da sua estória.
    Beijokas, Rê!!!

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  8. É verdade Rosinha, nem todas as histórias têm final feliz, mas mesmo
    assim continuam sendo histórias e ficam gravadas no nosso intimo,
    beijos amiga

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  9. Rosinha querida, para ti o Oscar! Oficialmente, por mim nomeada, a melhor contadora de estórias que já conheci.
    Cada pedacinho das tuas memórias, é um presente que nos ofereces.

    Muito obrigada sobre a sugestão para reaproveitar as almofadas, mas ... Não. O enjoo é intransponível. Vou oferecé-las a uma amiga. Se vivesses aqui, seguiriam para tua casa.
    Beijinhos

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  10. Oi Rosa, adorei a sabedoria do seu comentário, sim, é verdade que os períodos de casulo são cíclicos em nossa vida, assim é que crescemos e nos desenvolvemos interiormente.
    Olha querida, a minha insônia é uma companheira de muitos anos, desde quando fiz 40 anos eu não sei o que é dormir uma noite de sono direto, e lembrar que na juventude meu apelido era bela adormecida…eu dormia até com aspirador de pó ligado, nada perturbava meu sono. Agora qualquer barulhinho me acorda e depois é difícil pegar no sono de novo.
    Mas hoje está bem melhor, tenho feito Tai Chi, respiração e meditação e as minhas insônias são mais raras, ainda bem…
    Obrigada pela dica da banana!
    Bjs e bom final de semana

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  11. Puxa!

    Que triste!

    Eu nunca mais encontrei nenhum amigo da infância e adolescência.

    Também mudamos tantas vezes...agora que criamos raízes aqui.

    Mas...Deus que o ampare!

    beijinhos, Rosa, beijinhos,

    Eu estou aqui em uma reforma da casa e já estou com vontade de me enfiar em um buraquinho e me esconder...a poeira tomou conta de tudooooo....afffff...e nem bem comecei...

    ai, ai.

    beijinhos,

    Lígia e =^.^=

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