quarta-feira, 28 de maio de 2014

Enquanto gira o mundo...


Minha mãezinha se formou - com diploma e fotografia prá posteridade - como costureira aos doze anos de idade. Na foto, mulheres adultas com seus vestidos todos brancos, rendados, flores no busto, batom escuro - e minha mãezinha no cantinho, ao lado da professora, toda pequenininha e magricela... Criança de tudo. 


Estudava e costurava prá fora - chegava da escola e nem almoçava, tomava um "Vic-maltema" - que é como o Ovomaltine se chamava naquele tempo, antes de 1950 - e já sentava na máquina. Vinham mulheres de longe, fazer com ela os vestidos da Elisabeth Taylor e de outras atrizes de Hollywood. Ficou tuberculosa aos quatorze anos - por milagre não morreu. 

Ela nos sustentava com o dinheiro obtido das suas costuras - e cobrava baratinho, que era prá nunca faltarem freguesas. Mas, mesmo assim, o que mais tinha no bairro eram costureiras ...

De vez em quanto, prá gente não passar fome, ela oferecia seus serviços numa casa - e me levava sempre junto. Lá ela passava o dia todo costurando, fazendo lençóis, cortinas, roupas, da manhã até a noite chegar - foi assim que eu aprendi o pouco que eu sei.

Outras vezes ela pegava trabalho em oficinas de costura e trazia prá casa - prá não ficar longe da gente... Era um serviço sacrificado, sacolas e mais sacolas de roupas... Tudo pago a preço de miséria - mas na matemática da necessidade, pouco sempre é melhor que nada.

Na minha rua tinha uma dessas oficinas, meia dúzia de casas prá baixo da minha, na casa de uma conhecida de infância da minha mãe. A mulher tinha um cômodo da casa reservado, com duas máquinas de costura e duas de overloque e nelas trabalhavam ela e três funcionárias. Várias outras costureiras buscavam ali suas sacolas de roupas prá terminar em casa - incluindo, esporadicamente, minha mãe.

Estávamos com quase nada na despensa, a luz cortada - tempos difíceis dos quais ninguém sente falta.

Fui com minha mãe buscar as sacolas de roupa - eu tinha uns 10 anos de idade, ia com ela prá todo lado, pois era a mais velha. A mulher garantiu a minha mãe que, se ela terminasse as costuras até sexta feira, recebia na hora - e minha mãe varou a noite costurando. "Tléc, tléc, tléc" sem descanso, prá lá e prá cá seus pés no pedal da máquina velha...

Amanheceu sexta feira, minha mãe aprontou a gente prá escola sem café - mas quem ia prá aula tinha sorte, pois lá tinha merenda... Beijou a mim e a minhas irmãs e prometeu que, quando a gente voltasse, ia ter comida na panela, "Se Deus quiser...".

Onze e meia da manhã nós três chegamos juntas em casa, a barriga colando nas costas de fome, imaginando felizes o que ia ter prá comer...

No silêncio da casa sem TV dava prá se ouvir bem alto o choro triste do meu irmãozinho mais novo - mas não era somente ele quem chorava. Com os olhos inchados, sentada num canto da cama, se apoiando na cabeceira, minha mãe balançava o neném junto do peito, a própria imagem da tristeza...

Minha irmã Cida pegou meu irmão no colo  e o levou pro sol, em busca de alguma luz e alegria, enquanto eu me sentei na cama, prá entender e partilhar daquela desesperança...

Minha mãe desabou no choro de novo - tão criança quanto eu, talvez mais... Me contou que entregou a costura prá dona da oficina e que ela disse que havia mudado de ideia, que só ia pagar semana que vem. Explicou que, no dia seguinte, era aniversário da filha dela, que ia dar uma festa - e que o dinheiro que devia prá minha mãe teria melhor uso na compra de cervejas e refrigerantes pros convidados.

-"Mas Lúcia! Você sabe que eu tô sem comida em casa, a luz cortada! Trabalhei a noite toda prá poder receber hoje, tô precisando muito, você me prometeu..."

Tem momentos na vida em que tudo aquilo em que a gente acredita parece mentira - que Deus não existe, que o Bem nunca vai vencer o Mal, que a vida não faz sentido algum, que é tudo uma grande perda de tempo, uma piada de mal gosto do Universo... Esse era prá ter sido um desses momentos em nossas vidas.

Sentada na cama, minha mãe era o retrato da desolação. Da fome.

Sabe o que a mulher teve coragem de dizer prá ela?

"-Olha, minha filha, não sei por quem você me toma. Vou te explicar como eu sou: se eu estiver na beira de um poço e ver uma pessoa batalhando prá subir, me estendendo a mão por ajuda, eu piso na mão dela. Não tenho nada a ver com a fome dos teus filhos, com a tua luz cortada. Na minha vida, tudo vai bem - e isso é que me interessa. O resto que vá à m*."

Eu até podia dizer prá minha mãe que Deus tava vendo, que ia dar o pago prá ela, que tudo ia dar certo - mas eu também não pensava assim, eu também estava sem esperança nenhuma. 

Aquela mulher havia pisado na mão da minha mãe e na minha. No fundo daquele poço, tudo o que eu fiz foi chorar com ela.

O dia passou, a noite chegou - e todos fomos dormir com fome. 

Na manhã de sábado meu tio Antonio veio visitar minha avó e, vendo nossa falta de tudo, nos trouxe algumas coisas - pão, leite, óleo, arroz e feijão - porque Deus se lembrou de nós... 

A noite de sábado chegou, com a música alta e a barulheira da festa da menina.

Domingo de manhã bate palmas na nossa porta aquela mulher, descabelada por ter acabado de acordar, vestindo um roupão mal amarrado - parecia uma louca fugida do manicômio...

Minha mãe começou a subir as escadas e a mulher, antes que ela chegasse ao topo, lhe atirou em direção ao rosto umas notas de dinheiro amassadas, com um ódio infinito estampado na cara.

Gritou "Toma aqui o teu dinheiro, sua maldita! Nunca mais apareça na minha oficina em busca de trabalho e vá rogar pragas prá p* que te pariu!"

Minha mãezinha, atordoada, perguntou o porquê daquilo, o que tinha acontecido!

-"Como se você não soubesse!" - e, virando as costas, foi embora.

Ficamos sabendo depois, por uma das vizinhas dela, que na noite da festa, os portões e as portas da casa se mantiveram abertos, prá livre circulação dos convidados - principalmente porque a casa era pequena prá tanta gente. Em dado momento, três marginais, passeando pelo bairro em busca de oportunidades, invadiram a casa, roubaram tudo o que puderam e ainda agrediram várias pessoas, acabando com a festa. Deus também se lembrou dela...

Gozado... Na minha casa, cada minuto gotejou devagarinho - parecia que o tempo não passava nunca, as horas de fome se estendendo até meu tio providencialmente aparecer prá nos ajudar...

Na vida dessa mulher, o mundo deu uma volta rapidinho - mas ela colocou na conta da minha mãe o mal que lhe aconteceu...

Nunca mais minha mãe costurou prá ela.

Hoje, minha mãezinha mora numa das casas mais lindas da rua e essa mulher ainda vive no mesmo lugar, do mesmo jeito, uma vida pequena que se arrasta a cada volta que o mundo dá.

E minha mãe nunca mais achou que Deus não estava vendo... 
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22 comentários:

  1. Uma bela história de vida Rosa...bem descrita por si... que escreve com alma!!! Bj amigo

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    1. Muito obrigada, Maria da Graça querida. Beijos e tenha um ótimo final de semana!

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  2. Rosinha, isso é maldade absoluta! Parece de filme, de bruxa malvada! Que horror!
    Mas o mundo gira e a justiça acaba por ser feita!
    A sua infância foi muito sofrida, querida. Sempre me comovo lendo as tuas narrativas.
    Depois, acredito piamente na lei das compensações, matemática pura!
    Vê como agora és uma feliz, orgulhosa, babada mãe desses três pintainhos e rainha desse namorado que te adora!
    Muitos beijinhos

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    1. É, Nina... Você está certíssima... A vida continua sempre, o mundo tá sempre girando e a gente consegue felicidade, com a ajuda de Deus...

      Beijos e bom final de semana!

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  3. Que mulher horrenda! Deus tudo vê e a energia maldosa daquela mulher foi que atraiu os bandidos...gente ruim atrai ruindade e isso eu acredito e ela não deve ter mudado a energia, porque ainda continua no mesmo lugar ! O bem atrai o bem , então vocês atraíram seu tio que trouxe os mantimentos! Nossa que história fantástica!
    bjs Nina


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    1. Essa mulher é uma pobre coitada, é uma pessoa triste e mal humorada, já bem velha - que Deus tenha misericórdia para com ela.

      Beijos, Nina querida, e tenha um ótimo final de semana!

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  4. Rosa, enquanto lia seu post me deu uma vontade louca de escrever linhas e linhas te dizendo que bem sei como era a vida há 50 anos atrás, das dificuldades e que minha máe tb foi costureira e tantas outras coisas. Mas acho que por tudo o que li no seu post me lembrei de uma passagem bíblica de Provérbios de Salomáo a qual diz: aqueles cuja riqueza é de procedência vã a veráo diminuir e por fim desaparecer. (curioso que li isso ontem e hoje vejo o seu post).
    Queria amiga virtual, nada fica escondido aos olhos de Deus.
    Uma excelente semana,
    Bjs,
    Cris

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    1. A vida hoje é bem melhor, bem mais fácil, não é? Tudo sempre melhora, com a graça de Deus...

      Obrigada, pelas palavras e pelo carinho, Cris querida. Beijo e tenha um lindo final de semana!

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  5. Eu daqui fico imaginando como fica seu coração ao se lembrar e descrever essa passagem da sua vida com tantos detalhes... deve ser sofrido, mas ao mesmo tempo dar um certo alívio, porque hoje, você e sua mãezinha estão bem e são pessoas maravilhosas !! Te admiro cada vez mais, Rosa! beijos

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    1. Tem coisas que eu lembro que machucam mais, outras menos... Mas a gente não pode guardar no fundo do baú, tem que remexer, por prá fora, prá nada ficar cristalizado por dentro...

      Beijos, Luci querida e tenha um ótimo final de semana!

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  6. Rosa, por isso que eu rejeito esse tipo de gente que me procura com a intenção de tercerizar aquilo que aprende aqui. Não quero ajudar a ninguém explorar os outros. Tenho pena dos bolivianos que trabalham nessas oficinas de fundo de quintal a troco de comida apenas. Bem-feito para essa malvadona.
    Beijos,

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    1. A exploração sempre continua, o ser humano sempre acha um jeito de levar vantagem sobre o menos afortunado, não é mesmo? É nojento, mas tudo chega ao fim um dia, tudo é aprendizado...

      Beijos, Helena querida, e muito obrigada. Tenha um ótimo final de semana!

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  7. Rosinha, que história mais sofrida, como pode um ser humano, falar e
    abusar de outro ser humano? Coitadinha da sua mãe, até doi pensar
    na situação, por favor vá ao meu blog ver o elástico na cinta, beijo

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    1. Ah, minha mãe é uma mulher forte como não há outra, cheia de fé em Deus. Extremamente amada pelos filhos, um exemplo de vida, graças a Deus.

      Obrigada pela explicação do elástico, Mira querida. Tenha um ótimo final de semana.

      Beijos!

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  8. Rosa querida,com certeza a mulher que te trouxe tanto sofrimento e a sua mãezinha não tinha (ou não tem) por princípio que tudo que fizermos de bom ou de ruim para nosso próximo virá multiplicado para nós mesmos!Como dizia minha avó....Deus não dorme.....
    As vezes,de acordo com as nossas nescessidades,o auxilio vem na hora,as vezes demora um pouquinho mas sempre vem!Nosso Pai Amoroso nunca nos desampara!!E você sabe disso!
    Um abraço apertado com carinho!Deus te abençoe sempre!
    Cristina Peres RJ

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    1. Obrigada, Cristina querida, por palavras tão carinhosas. Que Deus também sempre esteja presente na tua vida, te abençoando. Beijos e tenha um lindo final de semana!

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  9. Essa história é da sua vida?
    Aconteceu mesmo?
    Estou com um nó na garganta.
    Ana Paula

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    1. É da minha vida sim, mas não fica triste...Tudo é aprendizado na vida, Ana Paula querida. A gente não aprende a andar se não levar uns tombos, não é mesmo?

      Beijos!

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  10. Rosa
    Enquanto lia seu post, me lembro tudo que aprendi e continuo aprendendo nessa vida. Por tudo que devemos passar pelo vale (momentos difíceis) , o Senhor nos permite que passemos para amadurecer e ganharmos a experiência para que possamos testemunhar para as pessoas que não sabem a importância do cuidado de cada um. Como por exemplo, aquela mulher deveria agradecer a Deus por UMA lição que recebeu pq se não fosse isso poderia ser algo pior, aquela mulher entendeu de imediato que fez errado de que prometeu e não compriu o que deveria. E ja sua mãe mesmo no sofrimento, ela decidiu entregar nas mãos do Senhor pra cuidar de vcs, e sim ele viu o que tava acontecendo e tomou providências. Isso foi um ato de confiança e obediência ao nosso Pai com coração sincero. Deus não aceita que "exploradores" usam de má fé e enganação com os filhos de Deus pq amam incondicionalmente. .. mas sabemos que quando a pessoa erra, devemos orar por misericórdia pra que a pessoa conheça ao nosso Pai. Amém? :)
    Desculpe o comentário gigantesco, pq to inspirada nesse momento aqui no expediente de trabalho sem poder fazer nenhuma tarefa. Tudo tem seu tempo no Senhor!
    Fica na paz e a todos

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    1. Tudo o que você disse é verdadeiro, Mimika querida, especialmente a parte em que devemos orar por essas pessoas, prá que elas recebam Deus em seus corações e se transformem.

      Beijos e muito obrigada!

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