sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Pequenas felicidades...


Quando comprei minha casa, há 20 anos atrás, ela praticamente caiu do céu. Não estava em imobiliária, não havia uma placa de "vende-se", pouca gente sabia que os donos queriam se desfazer dela. Ficava há duas quadras da casa da minha mãe - bom demais prá mim. E foi minha mãe, durante uma conversa com uma amiga, que ficou sabendo... 


A casa em si era velha - necessitava de reparos urgentes, pois os donos (um casal de velhinhos...) não aguentavam mais fazer a manutenção e a limpeza. Desejavam vendê-la o quanto antes e se mudarem prá perto dos filhos, numa cidadezinha do interior - uma oportunidade única na nossa vida.

Nós a compramos com muito sacrifício (mesmo com um preço bom, abaixo do mercado...), sem pedir empréstimo a ninguém - nem a banco (eles não nos emprestariam mesmo...). Demos tudo o que tínhamos de entrada e o restante os velhinhos nos deixaram pagar em dez vezes sem juros, na pura confiança, sem contratos nem nada (gente de boa fé - já estão ambos no céu...). 

O "Marildo" trabalhava em quatro empregos - um cargo público e dava aulas em três lugares diferentes. O pobrezinho não tinha nem sábado, nem domingo: dava aulas em cursinhos preparatórios prá concursos nos finais de semana... Eu trazia processos prá casa, a título de hora extra e adentrava a noite analisando documentos, rubricando cópias, numerando folhas e folhas. Pouco dormia.

Antes do casal de velhinhos ir embora nos pediu que trocássemos as grades dos portões por outras novas, bem altas: já haviam sido assaltados diversas vezes e temiam pela segurança de nossos filhinhos - eram gente muito boa mesmo.

E foi assim, justamente, que começou a inimizade dos vizinhos para conosco: disseram prá minha mãe que éramos nojentos, que estávamos erguendo o muro para nos separarmos de todos... Nós - os esnobes. Desde aquele tempo já vivi cada história - pequenos transtornos e desapontamentos que, somados, me deram desde o início a certeza de que aquele sonho de receber em casa uma vizinha prá jogar conversa fora, compartilhar um pedaço de bolo e um cafezinho jamais se realizaria. 

Tenho esse vizinho - o chamamos de Senhor Burns (pois ele se parece mesmo com o personagem dos Simpsons, um pouco mais jovem): da família dele, somente uma das filhas me responde aos cumprimentos. Ele mesmo, quando bebe, fica de língua solta e resmunga - em alto e bom som - o que pensa de mim. De mim, não do "Marildo", com quem mantém um relacionamento amistoso. Reclama da hera que cresce no meu muro e que ameaça virar prá casa dele. Reclama dos latidos dos meus cachorros (sendo que ele tem ainda mais cachorros do que eu - e gatos, que não saem do meu jardim, fazendo cocô em todo canto). Reclama das folhas da mangueira, que caem com o vento no seu quintal - embora subam na escada para apanhar as mangas em dezembro. São eles que quase caem do telhado de um puxadinho que tem nos fundos, onde mora uma das filhas, prá apanhar minhas jabuticabas - mas reclamam das minhas árvores na calçada, que sujam a sua porta.

Mais de uma vez ele me chamou de bruxa - e eu tenho testemunhas! Eu abrindo a porta prá algum parente, ele passa (cabeça cheia de álcool) e fala "Bruxa!". Eu atendendo o carteiro, o homem do gás... "Bruxa!"... É até engraçado - me faz lembrar o seriado "Chaves"... 

De certa forma, apesar de não me queixar, isso me deixa triste - essa coisa que as pessoas tem de nem te conhecerem e já te catalogarem, já te deixarem de lado, sem nem mesmo te darem uma chance... 

A mulher dele é costureira... Quantas vezes eu me imaginei indo tirar dúvidas com ela, mostrando meus trabalhos... Com ela, logo que eu me mudei, cheguei a conversar por alguns minutos: ela tocou a minha campainha. Tendo descoberto por minha mãe que eu trabalhava na Previdência Social, queria que eu a ajudasse a se aposentar - aos 52 anos. Não tinha registro em carteira, não pagava carnê de autônoma, mas achava que, como eu trabalhava lá e agora éramos vizinhas, eu "podia dar um jeitinho". Muito gentil eu expliquei que não conhecia nenhum "jeitinho" - há não ser contribuir e ter o tempo de serviço ou a idade; que se o tal "jeitinho" existisse eu, há muito tempo, teria aposentado minha mãe... 

Nunca mais falou comigo - nem me olha no rosto... 

Bom, há algumas semanas atrás o "Senhor Burns" parou prá bater papo com o "Marildo". Desabafou com ele que estava com câncer, até chorou - o "Marildo" é assim, tem um jeito que faz amizade fácil... Bom prá ele.

Eu já tinha reparado que, de madrugada (lá pelas cinco e dez, quando a gente sai prá levar a Naninha no metrô) o Senhor Burns também já está saindo - ou o encontramos na porta ou a meio caminho do ponto de ônibus em frente ao qual passamos todo dia. Quando o "Marildo" me contou da doença do homem, senti pena. "É por isso, então, que ele está cada dia mais e mais magrinho... Parece um trapinho, o pobre coitado...". E aí eu percebi o porquê dele estar na rua tão cedo - deve estar indo fazer tratamento, eu pensei.

Semana passada falei assim pro "Marildo": "A gente devia oferecer carona prá ele quando leva a Naninha no metrô. De madrugada é tão perigoso andar por este nosso pedaço - aposto que ia ser muito bom prá ele, fraquinho do jeito que está, chegar no metrô sem o sacolejo do ônibus...". O "Marildo" ficou enciumado - acredita? Eu aqui, "entregue à rapadura", só o pó - e ele com ciúmes... Andou uns dias emburrado.

Daí, no começo desta semana, ao cruzarmos com o homem à caminho do ponto de ônibus o "Marildo" parou o carro, abriu o vidro e perguntou: "Quer uma carona, meu irmão?". O homem, assustado, respondeu que ia pegar o ônibus pro metrô Penha, que meu marido não se preocupasse. "É justamente prá lá que estou levando minha menina. Sobe aí!"...

E o homem subiu - cheiro forte de cigarro (como é duro esse vício! A pessoa tá doente, mas não larga...), de bebida curtida do dia anterior. Agradeceu e disse que tinha quimioterapia na Beneficência Portuguesa, que ia bem mais cedo do que a hora marcada prá não pegar metrô muito lotado, que era horrível...

Depois que o homem desceu, acreditem se quiser: o "Marildo" ainda me perguntou como é que eu sabia que o velho ia pegar metrô prá fazer tratamento... "Ora! Não é óbvio? Doente de câncer, acordando de madrugada e subindo a rua pro ponto de ônibus... Imaginei que ele fosse de metrô até o AC Camargo, mas é na Beneficência - ninguém me contou nada, só usei a cabeça...". O ciúmes continua - Ô novela...

De lá prá cá ele fica esperando na própria porta a gente tirar o carro - até me diz bom dia, apesar de ser noite retinta... Eu não abro muito minha boca, deixo por conta do "Marildo" a conversa. Provavelmente ele deve achar que eu não sou a favor da carona, que é ideia do "Marildo" e que eu sou mesmo uma bruxa. 

Fazer o quê, né? Depois que eu retirei minha candidatura à Miss Universo desisti também de ser Miss Simpatia - eu não ia ganhar mesmo... Além do mais, depois de ler todos os livros do Harry Potter, eu até nem acho mais tão ruim ser chamada de bruxa.

Mas me faz feliz poder fazer isso pelo homem - porque ele é um filho de Deus, porque eu vi uma necessidade e agi para que ela fosse suprida, porque eu não preciso que ele saiba que tem dedinho meu na carona. Porque Jesus falou prá gente fazer o bem a quem nos quer mal para assim sermos filhos do nosso Pai, que está nos céus, que faz nascer o sol e cair a chuva sobre todos, sejam bons ou não.

É tão difícil ser feliz neste mundo, vocês não acham? Jesus também falou que a felicidade não era daqui. Concordo com ele: felicidade completa, infinita e duradoura não é deste mundo mesmo. Porque mesmo que você tenha tudo prá você, sempre vai ter algo ou alguém que te deixa triste - alguém que você ama que está doente, ou em dificuldade; planos que dão errado; gente que você nem conhece e cuja desventura você toma conhecimento somente por ler um jornal, ligar a televisão... Eu sofro com tudo isso, vocês não? É difícil ser feliz num mundo onde acontecem tantas desgraças, violência, morte - onde o egoísmo parece imperar, soberano...

Por isso são tão importantes as pequenas felicidades - encher o coração delas prá espantar as tristezas... Deixar de lado nosso orgulho ferido, extrapolar nossa pequenez humana, não ceder àquela vontade instintiva de revidar ofensa com ofensa e fazer algo grande, mesmo que num pequeno gesto, numa palavra.

Aquele homem nunca vai saber que eu rezo por suas melhoras; que quando ele entra no nosso carro eu lhe desejo mesmo um bom dia; que quando ele sai lhe desejo - como desejo à minha Nana - uma viagem segura de metrô (de preferência com algum lugar vago prá sentar) e um tratamento digno e humano lá no hospital. Pensar dessa forma me dá uma leve sacudidela de felicidade no coração. Não me sinto boa, não me olho no espelho e me imagino coberta com uma máscara de virtudes - pois somente eu e Deus conhecemos a exata proporção dos meus defeitos... - mas me olho e me imagino uma esforçada aluna da escola da vida - aprendiz do Evangelho, prá ser mais precisa. 

Um estudo que vai me tomar a vida toda.

Ainda bem que eu gosto muito da escola...


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29 comentários:

  1. Oh D.Rosa novamente a senhora me fez matutar, rsrsrs
    Como gosto de suas postagens, me identifico muito com vc viu! Apesar de não ser tão boa com as palavras como vc , o sentimento é o mesmo... Muito obrigada por transmitir em palavras tudo o que vai aqui no meu coração.
    Bjos e um abençoado final de semana!!!:)

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    1. Que bom que você gostou, Miriam querida! Eu falo demais, escrevo demais e às vezes tenho medo de cansar as pessoas - meu filho reclama, diz que cada postagem minha é uma novela. Obrigada por gostar.

      Beijos!

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  2. Rosinha, querida, outra história cheia de humanidade como só tu sabes contar.
    Felizmente existe essa verdade que se chama Lei das Compensações.... Não te dás com a vizinhança, mas, do outro lado de o oceano, estou eu, amiga do peito. Viu?
    Chá de limão: ferve água com casca de limão. Quanto mais casca,mais forte o sabor!
    A Helena - minha primeira costura - deu-me uma dica preciosa: colocar a forma bem fechada na panela de pressão, com água pelo meio da forma. Depois de apitar, baixar o lume e deixar que coza por 15 minutos. No forno nunca fiz, mas suponho que funcionara igualmente.
    Beijo

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    1. Eu queria fazer desse teu jeito - o difícil é achar uma forma de pudim que caiba na minha panela de pressão e daí o pudim não daria prá nada, seria tão pequenininho... Vou tentar fazer no forno mesmo. Obrigada por responder minha dúvida, Nina querida.

      Beijos!

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  3. Rosa...uma bela história de vida...relatada com muita emoção! Bj e tudo de bom!!!

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  4. Rosa, querida amiga, assim devemos ser. Não é fácil sermos julgados e mesmo assim nos aproximarmos do nosso julgador. Também passei por fato semelhante quando mudei-me para a casa onde moro. Meu marido passou sua infância e juventude nesta rua. Sempre foi mal visto pela vizinhança, chegou a fazer inimizade com alguns que lhe causaram problemas. Quando mudei-me para cá, eu não falava com os vizinhos, ainda influenciada pelas atitudes dele. Depois parei e pensei: afinal de contas o problema era dele com os vizinhos. Para mim, nunca ninguém fez nada, então por quê não falar com os vizinhos. Mudei de atitude. Comecei falando com um, com outro e assim foi. Hoje em dia os vizinhos fazem questão de falar comigo e até já disseram que sou muito diferente do que eles imaginavam a meu respeito. Fico dentro da minha casa, não sou de ficar na rua batendo papo. Mas às vezes isso é necessário. Já falei para todos eles se precisarem de mim, estou à disposição. Quando posso, ajudo. E assim a vida vai acontecendo. Por quê fazer inimizade se muitas vezes são esses mesmos vizinhos que nos auxiliam quando precisamos, como é o seu caso? Comigo já aconteceu por duas vezes e sou muito grata à eles. Gosto muito de conversar, sem absolutamente falar de ninguém. Muito bonita a sua história de hoje, levando a termo os ensinamentos de Jesus, fazer o bem a quem quer que seja. Isso é amor ao próximo. Grande beijo, minha amiga. Fique na paz do Senhor.

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    1. Tenho certeza que todo mundo que mora perto de você te gosta muito, Ligia querida. Você é uma pessoa muito boa, muito agradável. E eu também não sou de ficar batendo papo, mas adoraria uma conversinha de vez em quando...

      Beijos!

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  5. Sempre que visito o seu blog saio com ânimo renovado... Muito obrigada por partilhar estas pequenas histórias de vida... me deixam sempre a pensar... DTA

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    1. Fico feliz em saber disso, Gina querida. Obrigada.

      Beijos!

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  6. Rosa, seu texto me impediu de dizer umas bocas e boas!!! te conto em outra oportunidade! Por que não ajudar aquele que precisa, já que estamos na condição de ajudar e não na condição de precisar de ajuda, não é mesmo?
    Teu coração é nobre!
    Beijos

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    1. Obrigada, Helena querida - e fico feliz em ter servido de um tipo de inspiração prá você.

      Beijos!

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  7. Rosa, se você não for para o céu, ninguém vai!
    Que história linda, querida, me emocionei.
    Bjs

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    1. Ah, eu vou fazer o possível prá ir pro céu - nem que tenha que entrar de penetra...

      Beijos, Doutora querida!

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  8. Bom dia de sábado!!

    Rosinha linda adorei ler seu texto vc é
    bem corajosa, quanto a sua casa parabéns
    nada melhor do que ter algo só pra nós

    .Bjusss tenha um bom final de semana

    Abraços

    __________⊰•✿.•°•.•✿⊰Rita!!

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  9. Oi, Rosa!
    Adoro teus textos. Sempre me emociono e saio com um sorriso do teu blog. Obrigada!
    Quando entendemos que estamos "todos no mesmo barco" fica mais fácil ter o coração leve e ajudar mesmo as pessoas que nos prejudicam de alguma forma. Linda e humana esta sua história!
    Talvez, a felicidade "plena e absoluta" não seja desse mundo. Mas, sim, é possível ser feliz aqui e agora. Só depende unicamente de nós, dos nossos pensamentos e das nossas ações.
    Estar com quem amamos, desejar o bem, enxergar o belo trazem grandes felicidades. Tão grandes que todas dores e misérias humanas ficam bem pequenininhas porque entendemos que tudo é transitório e necessário para nosso desenvolvimento humano.
    Beijos e ótimo fim de semana pra vc,

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    1. Quanta coisa linda você disse, Vanessa querida! Demonstrou muita sabedoria, muita observação das causas e das consequências das coisas da vida. Parabéns e obrigada!

      Beijos!

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  10. Generosa, como sempre! Também aprendemos muito com suas histórias, querida Rosa!
    beijoss

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  11. Olá Rosa querida!
    Me emociono toda vez que leio um texto seu.
    Deixo aqui meu carinho e um grande beijo.

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    1. Obrigada, Carla querida! fico feliz que você gosta...

      Beijos!

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  12. nossa a senhora me fez lembrar uma psicografia de chico Xavier, que o filho pede exatamente isso para a mãe, deixar de lado as diferenças e fazer o bem as pessoas, independente de como elas nos tratam, acredito que somente pessoas de muita vivencia e evoluídas como a senhora consigam fazer isso. eu particularmente as vezes perco a paciência por cosas tao bobas que depois me arrependo. ele deveria tratar a senhora assim talvez porque no fundo admira a senhora e sua familia, ah e marido é mesmo ciumento mesmo, ah aqui eu brinco e falo que sou a bruxa do 121 numero da minha casa rsrsrsrs bjs.

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    1. Ai, então quer dizer que somos ambas "bruxas"? Fazer o quê, né?

      Beijos, Elisabete querida!

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  13. Rosa
    ...hoje lancei-lhe um desafio!
    Se puder e quiser... participe!
    Tudo de bom!

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    1. Pode deixar, Maria da Graça querida. Vou lá xeretar assim que der um tempinho. Beijos!

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  14. Olá, Rosa

    A vida é assim...repleta de oportunidades para nos fazer sentir felizes por dentro. Ele (o vizinho) não precisa saber o que vc faz, pensa ou sente pois afinal das contas tudo é entre você e Deus.

    Bjs

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    1. Obrigada, Fatinha querida - por acrescentar sua sabedoria... você está absolutamente certa.

      Beijos!

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  15. Rosa

    Obrigada por teu comentário no meu blog (minha última postagem) e respondi-lhe por lá mesmo.

    A partir de hoje, farei como você e tantas outras blogueiras estarei respondendo no meu próprio blog abaixo dos comentários.

    Bjs e tenham ótima semana

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    1. Obrigada - assim, sempre que eu comentar, volto prá ler a resposta. Beijos!

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