Quando eu estava no primeiro ano da escola, o mundo era bem diferente do que é hoje...
A gente chamava os mais velhos de "senhor" e de "senhora", pedia a bênção a todos os adultos da família e lhes beijava a mão, levava surra de cinta do pai, se aconchegava no colo da mãe, assistia televisão branco e preto - mas via tudo colorido - e nossa mini-saia era somente quatro dedos acima do joelho.
Na escola, as classes não eram mistas - só tinham meninas ou só meninos - e toda sexta-feira a gente tinha aula de bordado. Fazia parte da lista de material escolar comprar uma toalhinha já com o desenho riscado em roxo, repleta de flores, e todas as meadas de linhas e a agulha prá bordá-la. E enquanto a gente fazia isso, Dona Ana, minha professora (já contei a história dela AQUI), sempre nos lia um livro ou nos contava uma história.
O tempo passava mais devagar, mas todo mundo tinha pressa de crescer - especialmente eu, que ia mudar o mundo, salvar minha mãe e meus irmãos, curar minha avó e tornar meu pai uma pessoa boa somente conversando com ele, pois - já naquele tempo - eu me achava uma tremenda argumentadora, negociadora de primeira (pobrezinha de mim, ainda bem que ser sonhadora não era crime...).
Certa vez Dona Ana nos contou a seguinte história, enquanto eu furava os dedos no bordado - pois detestava usar dedal:
"Era uma vez, há muito e muito tempo atrás, numa aldeia indígena no sopé de uma montanha enorme, existia uma família numerosa e feliz: o pai, a mãe, meia dúzia de filhinhos de várias idades e um avô, bem velhinho, que ajudava nos afazeres como podia.
Já bem frágil, com reumatismo nas pernas, não servia mais prá caçar nem pescar...
Há muito tempo relegado aos afazeres de mulher, devido a esse mesmo reumatismo nas mãos já não servia prá trançar palhas nem fazer potes de barro, limpar os couros dos animais e nem mesmo debulhar o milho ou ralar mandioca.
Nesse ponto em que o velho havia chegado, já não servindo prá fazer serviço nenhum e tendo que depender de outra pessoa prá lhe levar o alimento à boca, foi decidido pela família que era hora do velho ir...
Segundo o costume de sua tribo, quando alguém não estava mais em condições de contribuir e só desse trabalho aos outros, essa pessoa era abandonada na montanha mais alta perto da aldeia onde viviam, com comida prá poucos dias, entregue à própria sorte, à natureza e aos seus predadores...
Seu filho, então, pegou um cobertor bem quentinho, estendeu no chão e dentro dele colocou uma esteira de palha trançada enrolada, uma cumbuca de aguardente de mandioca, um pedaço de carne seca e algumas frutas, fechou a trouxa e a colocou junto ao pai na carroça, com destino à montanha .
A despedida foi triste - todas as crianças choraram - mas o velho, com a coragem ainda intacta no peito, segurou qualquer dor que estivesse sentindo com um estoico sorriso no rosto, dizendo às crianças que tudo estava bem, que não chorassem mais...
Chegados ao alto da montanha, já quase no por do sol daquele dia, o filho do velho índio desmanchou a trouxa, estendeu debaixo de uma árvore a esteira de palha, arranjou os alimentos sobre uma pedra e, pegando seu velho pai no colo o alojou sobre a esteira, dispondo sobre ele o cobertor quentinho.
Deu então um beijo nas mãos calosas e tortas de seu pai, afagou-lhe os cabelos - no passado tão negros quanto os dele - e, subindo de novo na carroça, preparou-se para a descida da montanha - com toda a pressa, antes que a noite caísse sobre ele...
Antes mesmo de tocar o animal prá descida, seu pai lhe pediu um último favor:
-"Filho, corta esta coberta ao meio prá mim, não preciso de tanta..."
-"Mas pai, aqui em cima faz muito frio, mesmo essa coberta inteira é pouco!"
-"Não importa, meu filho - logo estarei morto mesmo e mortos não sentem frio ou fome. Leva prá você esta meia coberta - assim já tens prá você, quando chegar a hora de um de teus filhos te trazer prá cá..."
O jovem índio parou, mudo de palavras e de coração acelerado, antevendo na imaginação o dia fatídico de sua vida no qual nunca havia pensado... Olhando à sua volta, viu os ossos limpos e dispersos de todos os que ali foram abandonados, sentiu em seus próprios ossos o frio e a solidão de cada uma daquelas mortes.
Então, sem pensar duas vezes, agarrou seu pai no colo, ajeitou-o de novo na carroça e com ele desceu apressado a montanha - antes que a noite caísse sobre eles...
"Quem sabe meus filhos não aprendem com meu exemplo... Se eu tomar conta de meu pai até que ele morra, feliz e bem cuidado, em nossa companhia, estarei mostrando a eles como devem cuidar de mim, na minha velhice..."
E assim o velho voltou, recebido por todos com lágrimas de alegria - e uma nova tradição se formou naquela aldeia no pé da montanha..."
Quando escutei essa história fiquei feliz e fiquei triste, tudo ao mesmo tempo.
Feliz porque tudo acabou bem pro velho índio e sua família e triste porque, na minha rua, existia uma montanha dessas, onde se largam os velhos prá morrerem...
Cheguei em casa, contei prá minha avó a história, a abracei muito e disse que nunca neste mundo eu iria abandoná-la, que iria cuidar dela prá sempre e sempre...
Foi por essa história que passei a prestar atenção naquela "montanha" perto de casa, naquele abrigo de velhos, onde os pobrezinhos esperavam a morte longe dos filhos que não os queriam mais, sentados nos banquinhos do jardim, famintos da atenção de quem quer que fosse...
E foi por ela que, alguns anos mais tarde - quando minha avó já havia sido levada por Deus - passei a frequentar seus quartos, salões e jardins, distribuindo um biscoito, uma conversa, um sorriso, contando e ouvindo histórias - conhecendo pessoas admiráveis quase em seu momento de partida...
Mas essas são outras e mais outras histórias, prá se contar em outras horas...
"Quem sabe meus filhos não aprendem com meu exemplo... Se eu tomar conta de meu pai até que ele morra, feliz e bem cuidado, em nossa companhia, estarei mostrando a eles como devem cuidar de mim, na minha velhice..."
ResponderExcluirRosa...é o que estou fazendo com meus pais...velhinhos na idade e crianças na velhice!
Tudo de bom!
Que lindo, Maria da Graça! Continue amando seus velhinhos queridos!!!
ExcluirBeijos e bom final de semana!
Ai estou numa correria danada com as pravas de final de ano, festinhas na escola mas passei rapidinho por aqui.linda a historia e o exemplo afinal quando nascemos nossos pais cuidam de nos e nos ensinam tudo com muito amor , em algum momento de suas vidas sera a nossa vez de retribuir .
ResponderExcluirE como queria que as escolas continuassem com esses metodos de ensino acho lindo bordado mas nem sei pegar na agulha. Bjs .
É, acho que muita gente ia fazer bom proveito de aulas de bordado e histórias...
ExcluirBeijos, Elisabete querida, e bom final de semana!
Que bom que a historia teve final feliz , e assim é com a gente , devemos fazer aos outros o que queremos nos façam.
ResponderExcluirbjs tenha uma boa semana.
http://eueminhasplantinhas.blogspot.com.br/
Jesus já nos falava isso, não é mesmo, Simone querida! Nós devemos ser bons exemplos uns para os outros...
ExcluirBeijos e um bom final de semana!
Ai Rosa que história mais linda…Me fez lembrar do filme A Balada de Narayama, um filme japonês que conta esse antigo costume, numa aldeia quando as pessoas completavam 70 anos, era feita uma grande festa, ela passava o que sabia para os parentes e era levada pelo filho para o alto de uma montanha para morrer, só que na sua história, o final é feliz.
ResponderExcluirQue bonito gesto seu de amparar os velhinhos…
Bjs
Que bom que eu não assisti esse filme então, Doutora querida! Sou alérgica a finais tristes, me assombram...
ExcluirObrigada pelo comentário lindo e bom final de semana! Beijos!
Ah Rosa... você é um SER HUMANO impar!!! Como gosto de você e como aprendo sempre!!! Obrigada por ser você do jeito que é e permitir que aprendamos tanto com você...
ResponderExcluirObrigada, Marili querida, pela visita e pelas palavras lindas. Beijos e um bom final de semana!
ExcluirNossa que historia amiga,linda demais aprendi muito com esta historia,obrigada bjs
ResponderExcluirObrigada, Gisele querida! Beijos e um bom final de semana!
ExcluirÉ uma história pungente! Filho és, pai serás ... diz a sabedoria popular!
ResponderExcluirUma grande lição, querida Rosinha!
Obrigada, Nina! Beijos e um bom final de semana, minha querida!
ExcluirÉ Rosa, somos os nossos velhos amanhã! Tratar com desvelo, é dar exemplo a nossos filhos , que a pessoa é importante até seu último suspiro! Ela pode n!ao conseguir fazer mais nada, mas tem a sabedoria e a maturidade! Bela história! bis Nina
ResponderExcluirParece que quanto mais frágeis eles ficam, mais a gente os ama, não é mesmo? Queremos devolver em dobro tudo de bom que nos deram...
ExcluirBeijos e um bom final de semana, Nina querida!
Rosa, querida, estou aqui a percorrer suas últimas postagens onde aprendo sempre.
ResponderExcluirLinda mensagem.
Beijos
Obrigada por arranjar um tempo dentre seus afazeres, Helena querida! Beijos e um bom fim de semana prá você!
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