segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Seguindo a correnteza

Quem conhece o bairro que eu moro sabe que é cheio de ladeiras. Dizem que o nome, Penha, foi dado por D. Pedro II quando por aqui passou a caminho do Riacho do Ipiranga, a fim de proclamar a Independência do Brasil, vindo do litoral. 



Todos esses quadros dele montado num cavalo, com o braço erguido segurando uma espada, não podiam ser mais fantasiosos: na verdade não eram cavalos - e sim burros, que eram mais fortes e resistentes... - e ele estava fraquinho (devido a uma diarreia decorrente de ter comido frutos do mar estragados...) e, portanto, não levantaria nem mesmo o braço vazio (mas cadê a poesia da cena, se a realidade fosse - assim - retratada na pintura?). Daí, ao passar por aqui, ele disse que o local lhe lembrava uma localidade qualquer na França e como era lotado de penhascos e barrancos, deu o nome de "Penha de França", que é o nome da nossa avenida principal, no centro do bairro... 

A rua em que nasci e me criei é, até hoje, assim: alta de um lado, baixa do outro. De um lado as casas ficam mais altas que a rua e, do lado da casa minha mãe, as casas ficam abaixo do nível do calçamento e a gente tem que descer uma escada prá chegar na porta de entrada. Muitas vezes eu aproveitava esse desnível prá espiar o que estava acontecendo sem ser vista: escondida, no meio da goiabeira do jardim, eu olhava o que acontecia através da grade do muro - xeretando...

Havia naquele tempo muitas pessoas que ganhavam a vida - como ainda há hoje... - vendendo coisas de modo itinerante: vendedor de amendoim, pipoca, quebra-queixo, sorvete, biju, algodão doce... 

De todos, o que parecia mais pobre era um velhinho meio surdo, vestido com um paletó marrom surrado, uma calça igualmente velha e curta, usando um sapato de couro marrom sem brilho e furado e, na cabeça, um chapelão de palha rasgado - uma figura de outros tempos, já naquele tempo. Na mão, levava uma cesta de palha, como as de piquenique e, dentro dela, paçoquinhas Amor, balas Banda, doces de abóbora e de batata doce em formato de coração, bananinha , gibi e pipoquinha doce - um tantinho de cada... Tudo vendido por centavos - e, na maioria das vezes, eu não comprava apesar de ter vontade, porque não tinha centavos...

O velhinho - como eu disse - era praticamente surdo, o que significa dizer que ouvia errado o que a gente dizia. Percebendo isso, uns garotos que moravam na minha vizinhança gritavam pro velho a pergunta: "Vende fiado?" - e... bem... vocês podem imaginar o que o velho entendia, não é mesmo?

Toda vez que alguém gritava isso pro velho ele ficava fora de si, pois escutava ofensas e gritava pro vento "Quem falou isso? Vocês não tem educação? Eu vou descobrir onde vocês moram, vou falar com a mãe de vocês...". Tadinho...

Me dói pensar que, um dia, eu fui como um desses meninos... Não sei onde eu estava com a cabeça - ser criança não é desculpa. Eu vi os garotos rindo tanto, escondidos dentro do quintal de um deles, que senti vontade de rir daquele jeito também: escondida ali, no meio da goiabeira, eu gritei "Vende fiado?" e, de imediato, como se recebesse de volta um tapa na cara, me senti a pior das criaturas. Não senti vontade de rir: o transtorno do velhinho me doeu como se ele fosse meu próprio avô, que havia morrido alguns meses antes...

Corri e fui contar prá minha avó - prá perguntar por que eu tava me sentindo tão triste... Lá estava ela, o avental ensopado de água na barriga, esfregando roupas no tanque - o cheiro gostoso do sabão criando uma aura perfumada em torno dela. Depois de me escutar ela parou de mexer nas roupas, enxugou o rosto suado no ombro do vestido e, me olhando com aqueles olhos grandes e cheios de amor, me disse:

-"É assim mesmo, Rosa... Quando a gente não pensa nas coisas antes de fazer, acaba tendo que pensar muito nelas depois, remoendo, remoendo... Remorso é assim. Prá isso que Deus deu cabeça prá gente pensar: pensando bem antes de fazer - na maioria das vezes - a gente evita ter que sofrer com o remorso depois...".

Eu entendi claramente a lição - como sempre entendia tudo o que ela me falava, pois a chave do meu coração era dela... Ainda hoje eu carrego em mim esse remorso, esse fardo absurdo que eu me condenei a levar porque não pensei. Rosa, a "Maria vai com as outras". 

Prometi prá minha avó - e, mais importante, prá mim mesma - nunca mais fazer coisas sem pensar; prometi nunca mais me deixar levar pelos acontecimentos, pelo chamado do grupo e fazer o que os outros fazem, sem ter um bom e justificado motivo prá isso.

"O grupo" - que seria da espécie humana sem ele? Imagina uma pessoa sozinha prá sobreviver na natureza, sem outros seres humanos prá lhe fazer companhia? A gente divide tarefas, compartilha alimentos, moradia, se protege mutuamente, faz planos, divide sonhos... Os bons seres humanos carregam os feridos em meio à guerra!

Eremitas, no meu entendimento, são pessoas literalmente absurdas, selvagens, contra a natureza da nossa espécie - muito embora eu, às vezes, bem lhes entenda o motivo prá fugir ao convívio dos outros, vocês não?. 

Seguir o movimento do grupo pode significar a diferença entre a vida e a morte, em muitas situações: imagina o homem pré-histórico coletando frutos e, num canto, o alerta de um deles avisando da chegada de um predador. Normalmente o grupo mais próximo corre prá longe do bicho - e seguir esse grupo seria a melhor escolha. 

Contudo, o chamado do grupo nem sempre é correto. O grupo também se une prá fazer besteira, prá depredar, invadir, cometer violências. 

Torcedores fanáticos matam pessoas que torcem pro time contrário, anônimas e protegidas pela força do grupo. 

Arruaceiros de cabeça escondida em panos depredam ônibus, órgãos públicos, invadem e roubam mercados - bandidos disfarçados de revolucionários sociais.

As máfias são grupos...

Mas não é só da violência física que se valem os grupos: as discriminações correm soltas nas redes sociais - causando danos tão grandes quanto as destruições físicas. 

Discrimina-se quem é gordo, negro, pobre, gay... Ataca-se quem é umbandista, católico, espírita, evangélico... Cada grupo se acha dono da razão e repleto de direitos de discriminar, humilhar e excluir quem não faça parte do seu círculo...

Tempos difíceis...

A globalização que devia nos unir e os veículos de comunicação que deviam suprir nossas diferenças culturais e de idioma, nas mãos erradas, se tornam ferramentas de separação e de incentivo ao ódio. Cada vez mais parece que deixamos de ser uma única espécie e retornamos às tacanhas noções de raça e de casta: nos apegamos a mixarias que nos dão a falsa noção de sermos melhores do que os outros, mais bonitos, mais merecedores de uma posição de destaque perante o resto da humanidade.

Prá quem vamos correr e perguntar o porquê das tristezas, o que é certo e o que é errado? No ombro de quem vamos chorar nossos erros e ao lado de quem vamos nos sentar, remoendo os remorsos, se continuarmos assim, nos separando de tudo e de todos?

Nem sempre seguir a correnteza leva a um lugar bom, a um porto seguro...

Tudo o que é alimentado cresce e se torna forte, seja uma laranjeira ou uma erva daninha, uma criança ou um sentimento.

Se continuarmos alimentando as diferenças, não nos sentiremos filhos do mesmo Pai nunca.
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21 comentários:

  1. Rosa...a mente foi construindo...a alma abriu-se...
    e o coração falou mais alto...
    e é assim que nasce a escrita!
    Parabéns pelo texto!

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  2. Rosa, rosinha,

    Lendo sua narrativa, senti muita pena desse velhinho...ai...eu bem lembro de pessoas assim, idosas, frágeis, da minha infância também.

    Acho que sua vozinha deu-te uma sábia resposta...o acontecido, serviu para seu crescimento e como uma lição de vida!

    Penso que tudo tem a infância como base.

    Nossas crianças precisam de educação emocional amorosa e firme, para que os bons valores criem raízes.

    Para que cresçam com sentimentos de tolerância e respeito para com o diferente.

    Infelizmente os educadores - pais - falham feio, estando ausentes na educação, delegando às escolas ou a qualquer grupo...bem...os frutos são amargos e nos assustam!!!

    Querida, tenha uma ótima semana, com bons momentos!!

    Ahhhh....eu sempre falei para os meus pequenos alunos sobre a verdadeira história da diarreia do nosso herói...kkkkkkkkk

    beijinhos,

    Lígia e =ˆˆ=

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    1. Que bom, então seus alunos já crescem de olhos abertos... Você deve ser uma professora excepcional, Ligia querida. Deve ser um privilégio te carregar na lembrança...

      Beijos!

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  3. Olá Rosa, primeiro quero agradecer seu carinho.
    Gostei muito de ler seu post e aprender um pouco sobre a sua cidade.
    O texto ´uma verdadeira história.
    Beijos e uma boa semana.

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    1. Eu é que agradeço, Carla querida. É sempre uma alegria te receber aqui. Beijos.

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  4. nossa que aula d rosa, sempre com uma historia de vida pra nos contar, e nos ensinar a ser pessoas melhores. bjs

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    1. Obrigada, Elisabete querida - sempre me faz feliz saber que você gosta. Beijos.

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  5. Rosa, querida (muito querida!), aprendi que ser focada é importante. Ser focada é ser consciente. E tenho horror, pavor ao bulling, ao abuso do grupo sobre o indefeso, seja ele quem for.
    Será que nunca pratiquei bulling?
    Receio que a resposta me envergonhe, dada embora, a desculpa de ser criança. Para me redimir, asseguro, juro a pés juntos, que na atualidade, jamais, que hoje cultivo o sorriso, o carinho , o bom trato e a delicadeza que têm retorno garantido.
    Um grande beijo.

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    1. Que sortuda você é, Nina querida - já veio pronta. Eu ainda estou em construção, tijolinho por tijolinho...

      Beijos e muito obrigada pelo carinho!

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  6. Oi Rosa,

    Adorei seu texto, mais uma vez, um "caminhão" de fichas caiu...
    Principalmente o trecho: Prá quem vamos correr e perguntar o porquê das tristezas, o que é certo e o que é errado? No ombro de quem vamos chorar nossos erros e ao lado de quem vamos nos sentar, remoendo os remorsos, se continuarmos assim, nos separando de tudo e de todos?

    Somente através do amor compartilhado há alguma esperança para nossa espécie...
    Bjs querida e ótima semana

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    1. Obrigada, Doutora querida - de você sempre vem a medida certa das coisas, da sua sabedoria...

      Beijão!

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  7. 'Quem nunca'.... não é mesmo, Rosa. Mas como é bom termos ciência disso. Temos a oportunidade de vigiar, de mudar e melhorar sempre. A palavra RESPEITO é uma das minhas preferidas!! Saudade das balas Banda, paçoquinhas e gibis!!
    beijão

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    1. As balas banda eram as minhas favoritas! cheguei a ter desejo delas numa das gestações - eram ótimas, não tem comparação, não é, Luci querida?

      Beijos!

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  8. Maravilhoso seu post.
    Vc é uma grande jornalista.
    Meu lema é... não fazer ao próximo o que não queremos que façam para nós.
    Linda semana.
    Beijo.

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    1. Só dona-de-casa, Rosangela querida - mas gosto de contar histórias. Fico feliz que você gostou. Beijão!

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    2. Rosa querida, suas história são sempre maravilhosas, o olhar que vc tem perante os acontecimentos e a maneira como vc os descreve... por que não dizer és também uma grande jornalista?
      Ah! E como é que fui me esquecer de dizer da sua vovózinha linda e com uma alma iluminada.
      Que DEUS a abençoe e a ilumine imensamente.
      Beijo grande.

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  9. Rosa

    Quem de nós não tem, pelo menos, uma história assim para contar da infância onde se fez algo e depois sentiu remorso!?! Faz parte da aprendizagem e esta a lição que fica para sempre marcada na nossa vida.

    Também tenho uma história que me deixou com remorso mas que depois virou uma das grandes lições de vida!!

    E nada acontece por acaso!

    Bjs

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    1. É assim mesmo, Fatinha querida: a gente aprende mais com os erros do que com os acertos...

      Beijos!

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  10. Rosa, tuas memórias são belas... acho que sempre observaste o mundo com o coração. Amo te ler. Me transporto para as tuas memórias.
    Doces de abóbora e de batata-doce em formato de coração, nunca vi. Queria conhecer...
    A tua traquinagem foi punida por ti mesma, pela tua boa consciência. Eu também cometi transgressões quando criança. Desse tipo rs. Nada que ferisse alguém profundamente. Mas o remorso era impiedoso.

    Temos muita atenção com as atitudes dos nossos filhos. Semeamos amor o tempo inteiro. Cultivamos o hábito de colocá-los em situações de escolhas, orientando sempre no sentido do que é justo. Mas nunca estaremos seguros. Damos a liberdade e não sabemos exatamente como são os amigos, as famílias dos amigos. Aflige.

    Verdade amiga, o pertencimento a um grupo é necessário ao ser social. Sabemos quem somos e nos firmamos como 'gente', em contraste com o outro. É através do outro que relativizamos nossas atitudes e conceitos.
    Adoroooo teus textos! Deverias escrever crônicas. Escreve, vai!

    bjs

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    1. É verdade, é através do convívio em grupo que nós nos transformamos - prá melhor ou prá pior... Cabe a nós orientar os filhos e permanecer de braços abertos prá eles. Cada um tem seu caminho, não é mesmo - e eu acredito que Deus está tomando conta, principalmente se ensinarmos direitinho. Beijos e muito obrigada - e as minhas crônicas... Acho que são as postagens...

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