quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Uma vida

Há muitos anos atrás eu saía de casa todo dia, pouco depois das seis horas da manhã, prá ajudar a por o pão de cada dia na mesa. Naquele tempo eu trabalhava prá Previdência Social, como agente administrativo - um tipo de faz tudo: atender público, datilografar documentos, arquivar fichas - essas coisas. Era um emprego ótimo, meio período - eu gostava. Vivi cada história ali - daria prá escrever livros e mais livros... Óbvio que eu preferia ficar em casa, olhando minha bambina, mas as contas prá pagar não queriam nem saber disso...


Deus é muito bom. Me arrumou uma colocação num dos melhores setores da Agência: eu trabalhava no Serviço Social. Minha Lola já tinha nascido e eu estava em vias de trazer minha Naninha ao mundo - parecia que eu carregava uma melancia na barriga (diga-se de passagem que eu sempre engordava muito em toda gravidez, mas emagrecia rapidinho por amamentar o máximo possível...).

Esta é uma das histórias. Na manhã em que ela se passa lá estava eu, sentada na minha confortável cadeira giratória, aguardando ser dez da manhã prá fazer meu lanchinho. Quem me conhece sabe o quanto são sagrados prá mim os meus horários de lanche: preparados com antecedência, esperados com ansiedade, bem aproveitados... Desta vez era sanduíche de berinjela: no jantar do dia anterior eu havia feito berinjela com molho e queijo e havia guardado umas fatias generosas da berinjela à milanesa prá levar com pão, no lanche... O pão, obviamente, era amanhecido, mas eu gosto assim mesmo - fica macio...

Bom, eram quase dez horas quando me chega às narinas o cheiro mais horrível que eu já tinha sentido - de virar o estômago! O banheiro dos segurados ficava à esquerda do meu guichê e achei melhor ir pedir a uma das faxineiras prá dar uma olhada lá, passar um cloro, creolina... O cheiro era de queimar os pelos das narinas - de tão forte... Quando eu começo a rearranjar meu barrigão prá me levantar e ir tomar providências, eis que aparece, bem na minha frente, o mendigo mais sujo e fedorento do planeta - falando alto, depressa, assustador! 

Fiquei ali, parada, sem ação e prendendo a respiração o mais que eu aguentei até que aquele ar podre entrou com tudo pelos meus pulmões ... 

Acho que Deus segurou meu estômago e me deu forças, porque eu pedi, com toda a minha calma, para que o homem falasse mais devagar - que eu não estava entendendo nada...

Ele era trabalhador de construção civil - um pedreiro. Estava em São Paulo sozinho, morando longe dos familiares pela primeira vez na vida, no alojamento da construtora - quando sofreu um grave acidente de trabalho (uma queda de um andaime). A perna estava quebrada em vários lugares, com aquele tipo de gesso que colocam uns pinos enfiados na carne, de dentro prá fora. Um dos braços também estava quebrado, a cabeça estava enfaixada - tudo extremamente sujo! A construtora havia pressionado ele para que não desse entrada no benefício por acidente (pois eles levariam uma multa) e como ele não fez o que eles queriam, o puseram prá fora do alojamento - e já que ele não conhecia ninguém, estava morando na rua! 

Tinha horas que ele falava e eu via as lágrimas escorrendo em meio a sujeira, a voz falhando na hora de dizer da vergonha que sentia por ter que fazer as necessidades na rua, dormir no chão igual um cachorro e por não ter o que comer, se não implorasse uma esmola...

Olhando em seus olhos vi desespero, dor e abandono. Aquele homem estava à beira de um precipício...

Prá piorar sua situação a empresa, do modo mais canalha possível, havia preenchido toda a documentação de forma errada, impedindo o recebimento do seu mísero salário. Ali estava ele pedindo ajuda pro preenchimento correto, um trocado prá comer alguma coisa, um jeito de voltar prá terra dele...

Eu não sabia o que fazer. Justamente naquela semana a verba do Serviço Social estava atrasada e quase nada podia ser feito por ele. O máximo que a Assistente Social de plantão fez foi telefonar prá empresa, intimando a entrega imediata do formulário preenchido corretamente ou iriam acionar a fiscalização - e mais nada. 

Depois disso tudo o que o coitado podia fazer era voltar prá rua...

Fui até o armário e, de dentro da minha bolsa, peguei meu sanduiche de berinjela. Enchi um copo de café e levei prá ele, pedi prá ele comer sentado num dos bancos e prá vir falar comigo quando acabasse de comer.

Peguei um papel, minha caneta e comecei a escrever:

"Caro Francisco;"...

Pouco mais de dois anos antes eu era voluntária num asilo de velhos, onde todo domingo eu ajudava a dar banho nas idosas, lhes penteava os cabelos, contava e ouvia histórias... Tempo maravilhoso no qual convivi com mulheres muito raras e queridas pro meu coração, das quais me lembro sempre com um aperto no peito. Costumo dizer aos meus filhos que ainda estou vivendo dos "juros e correção monetária"  das bençãos vividas naquela época... 

Francisco era o zelador do local naquele tempo. Fazia todo tipo de conserto, dirigia ambulância em caso de necessidade, tudo sempre com boa vontade, de bem com a vida. Sabe o ator que faz a voz e os movimentos do Gollum, nos filmes do "Senhor dos Anéis"? Este aqui:

Pois era muito parecido, mas com o cabelo curto, quase raspado e sem barba nem bigode, mas com grandes olhos bem claros e um sorriso que parecia estar sempre presente em seu rosto...

Escrevi uma carta prá ele pedindo que ajudasse o portador dela. Expliquei mais ou menos o problema dele e pedi que lhe desse uma muda limpa de roupa e que se predispusesse a dar café da manhã, almoço, jantar, sempre que ele aparecesse por ali. Naquele tempo o asilo distribuía na porta, a muitos moradores de rua, as sobras limpas das refeições dos idosos, intocadas nas panelas (as sobras dos pratos vinha um criador de porcos buscar com uma carroça...). 

Expliquei pro rapaz que ônibus ele deveria pegar, em que ponto devia descer (até desenhei um mapinha de como chegar). Disse a ele a quem devia procurar com a carta e que, dali em diante, ele não mais passaria fome se fosse ali. Disse que me procurasse se precisasse de mais alguma coisa e me despedi.

O resto do dia de trabalho remoí a fome, pensando no meu favorito sanduiche de berinjela... Nem pensei mais no homem, não comentei com o "Marildo" - primeiro porque ele era muito ciumento e segundo porque ele ainda era voluntário naquele asilo, na ala masculina...

Uns dois meses depois me aparece pela frente, no guichê, um rapaz limpo, de cabelo cortado, barba bem feita, usando uma camisa cor de goiaba, com uma mochila nas costas e um sorrisão no rosto.

"Tá lembrada de mim, moça?"

Quando eu estava dizendo "Me desculpe, mas eu atendo centenas de pessoas todos os dias..." eu reconheci os olhos! Acho que os olhos dizem muito de uma pessoa, não é mesmo? São mais ou menos uma marca registrada... Reconheci os olhos, mas não o sentimento por trás deles: era um misto de alegria, de esperança, sei lá do que mais!

"Você é aquele rapaz..."

"Eu mesmo. Tô indo embora, tô voltando prá minha mãe, lá na Paraíba. Só que antes eu quis dar uma passada aqui prá ver a senhora..."

"Então, deu tudo certo? Recebeu o teu benefício?"

"Mais que certo - recebi todos os atrasados. Mas eu passei aqui mesmo foi prá agradecer... Aquele lugar prá onde a senhora me mandou..."

"Você conseguiu se alimentar lá? Que bom, fico feliz!"

"Não! O Seu Francisco não me alimentou só não, senhora! Ele me acolheu! Colocou um colchão a mais no quartinho dele - e ele que dormiu no chão. Eu tive cama, roupa lavada, curativo, remédio - eu comi como não comia faz tempo! Tá vendo esta mochila? Seu Francisco quem me deu e tem muda de roupa limpa dentro! Até o sapato do meu pé ele quem deu... 

Moça, vou dizer prá senhora o que eu disse pro seu Francisco: vocês dois salvaram minha vida! Eu tava tão desesperado, a ponto de fazer uma loucura! Achava que São Paulo era uma terra do demônio, tudo de mal tinha acontecido comigo aqui, mas aí apareceu a senhora no meu caminho, a senhora me mandou pro seu Francisco e aqui tô eu, vivo e bem! 

Qual é o seu nome, moça?"

"Rosa"

"Pois, dona Rosa, saiba que eu não vou nunca me esquecer da senhora.... do outro lado do Brasil vai ter sempre alguém que vai rezar pelo teu bem toda noite, quando for dormir. Deus te pague!"

E eu, chorona como sou, esperei ele ir embora, saí do guichê e chorei quiném criança - como ainda choro até hoje quando conto essa história. Minhas colegas não entenderam nada, acharam que eu tava passando mal, mas era choro de alegria, uma alegria de explodir o coração de tão grande, de pura felicidade e agradecimento a Deus, por Ele ter me permitido participar dessa história...

Naquele filme "A Lista de Schindler" tem um ditado judeu que diz que quem salva uma vida, salva o mundo - pois, um dia, eu ajudei a salvar o mundo...

Seu Francisco, um tempo depois, parou de trabalhar ali e também voltou prá terra dele - acho que bateu saudade da mãe ou então Deus achou que ele já tinha feito o que de importante havia prá fazer em São Paulo - vá saber...

Sabe o que é incrível? Quem cortou o cabelo do moço foi Sua Majestade... 

Agora que a história está contada, saibam que eu relutei um pouco em contá-la. Eu a encarava como um tipo de "pé de meia" da minha alma, sabe como é? Sabe aquela coisa do Evangelho, quando Jesus diz que o que a mão direita faz a esquerda não deve ficar sabendo e que quem recebe elogios por uma boa ação já recebeu sua recompensa? Pois então: não me façam nenhum elogio, que eu quero ver se esse sanduíche de berinjela e o pedaço de papel ainda poderão ser levados em conta, a meu favor, no dia que eu voltar prá casa - vai que São Pedro reluta um pouco em me abrir as portas...

Se bem que eu tenho um plano infalível prá ir pro céu - quem sabe um dia eu conto (hi, hi, hi...).

Essa história foi contada especialmente pros meus filhos - que se queixam que minhas histórias são geralmente tristes... Essa foi muito feliz, não foi?
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34 comentários:

  1. Ahhh Rosa, sua danadinha!!! Não vou elogiar então, se assim for melhor prá ti. Mas quantas histórias dessas você ainda deve ter prá nos contar? Tomara que muitas, e que sempre nos sirvam de inspiração para ajudarmos o próximo! Marido cimento, hein... e ele tem razão, você é muito especial!!
    beijos

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    1. Obrigada, Luci querida!

      Beijos e um lindo final de semana.

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  2. Deus te abençoe.....Elaine

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  3. Mãezinha,sempre meu orgulho! Acho que as boas ações não devem ser feitas esperando reconhecimento e elogios, mas se foram feitas por caridade e amor, não tem problema elogiar! O que fazemos com bondade serve de exemplo para que mais pessoas reflitam sobre o poder que uma ação pode ter na vida de alguém, como defender uma pessoa e se esforçar pra ajudar nunca é pouco, e dão forças pra mais gente se inspirar e fazer o bem. Se existe algo (entre as milhões de coisas que você me ensinou)que se aplica agora é que as palavras tem poder, nesse caso é o poder de fazer a gente acordar, mesmo que por um segundo e ver que cada um de nós pode fazer a diferença no mundo - mesmo que com um sanduíche de berinjela e uma carta. Te amo.

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  4. oi d rosa apareci kkkkkkkk tive muito ocupada nesses últimos dias levando o sogro em médicos e minha filha ficou muito resfriada faltou uma semana na escola,o meu marido caiu no emprego bateu as costas e o braço ficou inchado pensei ate que tinha quebrado mas não ainda bem, e meu pc já era tive que comprar outro nossa quanta coisa né kkkkkkkkk mas agora vou tentar tomar o ritmo das coisas, já vi que tem um montão de novidades inclusive na maquia de trico fiz uma blusa pra mim mas ainda apanho nas golas mas vamos indo, obrigada pelo carinho bjs.

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    1. Que bom que você voltou, Elisabete querida. Tudo vai se ajeitar e ficar bem, tenho certeza. Beijos!

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  5. Ai Rosinha querida do meu coração, pelo amor de Deus, se São Pedro não quiser abrir a porta para você e para o Francisco, não vai abrir para ninguém!
    Mais uma vez você me fez chorar de montão lendo o post, e depois de ler o comentário da sua Lola, aí é que não parei mais...
    Você é uma luz brilhando no mundo.
    Bjs

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    1. Espero que tenha chorado de alegria, como eu...

      Beijos, Doutora querida!

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  6. Comadre, que linda história! Você, o Francisco e o marildo agiram numa sintonia que vem do coração. Linda história. Vou contar prá D. Ruth quando estiver com ela. :)
    Agora tô trabalhando um bocadinho mais e o blog tá largado, mas a máquina de costura tá a todo vapor nas altas horas, me preparando para o outono aqui.
    bom te visitar, que seu dia seja maravilhoso. Bjos

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    1. Obrigada, Elisana querida - fico feliz em saber que, mesmo com tudo tão corrido, ainda teve o carinho de lembrar de mim...

      Beijão!

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  7. Chorei também!!!!
    Amei a história!!!

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  8. Só posso dizer que amo suas histórias e com essa chorei demaisssss.BJussss

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  9. Olá,

    Leitora assidua do seu blog, grande admiradora,nao tenho palavras, Abençoada seja bem como sua familia:bjs do outro lado do atlântico. Tina

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  10. Foi uma história feliz e inspiradora! Obrigada!

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    1. Eu é que agradeço por você ter gostado, minha querida. Beijo.

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  11. Querida Rosa é Por Essas E Outras Histórias Da Vida Real Que Mesmo Criticada Por Muitos Resolvi Fazer Faculdade De Serviço Social .Sei Que Não é Fácil Mas O Retorno Que Temos Em Direcionar Para O Bem Não Tem Dinhiro Que Pague..Parabéns

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    1. É realmente uma profissão abençoada, Zeth querida. Boa sorte no teu curso!

      Beijos.

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  12. Sem palavras, Rosa querida, sem palavras!!!

    Sabe, sempre achei que algumas pessoas, são assim, como você...MARAVILHOSAS!!

    Obrigada pelo carinho, pela amizade!!

    beijinhos,

    Lígia e =ˆˆ=

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  13. Rosa que amor ao próximo tu demonstrastes e isto me fazer eu , ter o desejo de te mostrar uma profecia que há de se cumprir porque Deus não mente e tudo o que ele promete ele cumpre. Gostaria muito que lestes se tens uma Bíblia este promessa que Deus faz , não vou te dizer gostaria que pesquisastes pois é realmente uma promessa maravilhosa e como ele vê os corações tu estarás incluída. Salmos cap.37 e versículos 10 e 11 espero que gostes desta promessa maravilosa. Beijos querida e tu realmente és maravilhosa.

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    1. Obrigada pela dica, Rose Mary querida. Realmente é uma promessa maravilhosa...

      Beijos!

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    2. Comentei e não sei o que aconteceu, ele sumiu...
      Mas vamos lá novamente.
      Também chorei quinem criança... de felicidade sim, pela linda história e por ser amiga de uma moça tão linda como você.
      Ah! E chorei novamente lendo o lindo comentário da Lola.
      Dizem que os filhos são reflexos dos pais...
      DEUS abençoe vc e sua linda família.
      Fiquem com ELE.
      Beijo.

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    3. Obrigada, Rosangela querida. Fico feliz que você se emocionou com a história, mas que o choro foi de felicidade. Deus abençoe você e a tua família também. Beijos!

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  14. Rosa não vou elogiar-te mas desejo que você tenha muitos sanduíches de berinjela na sua vida.

    Bjs
    Fatinha

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  15. Olha, Rosa, se essa é sua ideia de história pra rir, não quero nem ver quando você resolver contar uma história pra chorar...rsrs
    Coração bom muitas de nós temos, mas coragem pra abrir mão do que temos e compartilhar com o próximo são outros quinhentos. Não tenho palavras pra suas ações, são sempre além do meu minúsculo mundo. Você me fez lembrar de uma falecida tia minha, de coração maior que o mundo, o que dizia dela, compartilho com a Cristiane por você, se pessoas assim não entram no ceu... ai de nós pobres mortais...
    Muitas bênçãos, muita luz, muita paz em sua vida minha querida.
    Bjs
    P.S.: Rir mesmo foi com a história do café e da aranha... também sou fã. Quando volto de alguma viagem a primeira coisa a se fazer é um café e sentir o aroma se espalhando pra poder dizer “como é bom estar em casa!”.

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    1. Exato! Você definiu de maneira excelente a questão do café: ele tem cheirinho de lar, de aconchego, de começo do dia com o pé direito, de boas vindas prás visitas! Sempre que eu vejo alguém segurando uma xícara num filme já imagino que é café e que tá delicioso...

      Beijos e muitas felicidades prá você também, Mara querida!

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