quinta-feira, 4 de julho de 2013

A casa mais rica da rua


Quando eu era pequena todo meu bairro ainda estava se formando - as lâmpadas nos postes eram iguaizinhas as que a gente usava dentro de casa, iluminavam bem pouquinho. A rua não tinha asfalto, o quintal também era de terra - uma lameira em dia de chuva.... 


Me lembro quando o asfalto chegou - achei tão lindo o piche úmido, queria pegar um tantinho, modelar uma bolinha e guardar prá mim e até queimei minha mão... E, depois de seco, perdeu todo o brilho...

Lembro quando chegou a água encanada e todo mundo desativou seu poço - menos nós. Minha avó, sabendo da nossa dificuldade financeira, disse que a gente devia manter o poço funcionando, só pro caso de não ter como pagar a conta da água encanada... E ela tava certa: como o bairro todo estava mudando, expandindo a rede de distribuição da Sabesp, era comum não ter água na torneira - e aí era fila na minha porta, pedindo um pouco da água do nosso poço (aquela mesma gente que nos desprezava, por sermos os mais pobres de todos...). Eu ficava no portão, encarando um a um todo mundo da fila, com suas panelas, latas e baldes nas mãos - aquela água não saía de graça prá eles, tinham que me encarar nos olhos...

Em especial havia um vizinho que se achava a nata do copo de leite: pairava acima da pobreza do lugar, com sua casa enorme coberta de granito. Realmente era uma casa muito bonita (hoje já obscurecida pela beleza da casa da minha mãe, que foi desmanchada e refeita aos pouquinhos, com amor e capricho...). Esse homem tinha, no porão de sua enorme casa, uma oficina de costura. Nela trabalhavam dezenas de mulheres, todas sem nenhum tipo de garantia legal - ele não registrava, não respeitava horário de trabalho, não dava férias (e as pobrezinhas se sujeitavam, pois tinham que ganhar o pão de cada dia...).

A televisão era preto e branco (mas eu juro que assistia Zé Colméia, Pepe Legal, Fantomas, Speed Racer e Pernalonga tudo colorido! Meus olhos viam assim e acho que os olhos de todas as crianças da minha geração viam assim também - imaginação é uma ferramenta que não se compra, pois não tem prá vender e, se tivesse, não dava prá por preço nela...).

Quando esse tipo de televisão chegou nas lojas da rua da Penha (como chamávamos a Av. Penha de França...) custava os olhos da cara, só ricos podiam ter. Como meus tios, que eram muito ricos mesmo. 

E aquele vizinho da casa coberta de granito escuro, que tinha a oficina de costura, dizia prá todo mundo que também tinha uma. Eu e as outras crianças, brincando na rua o dia todo, até depois de anoitecer, sabíamos que ele tava falando a verdade: passávamos na porta dele e víamos as luzes coloridas do aparelho ligado prá hora da novela, transparecendo através da cortina de dois panos (uma de renda e outro de voal). Cortina com forro - coisa de gente chique, né?

Bom, um dia a filha caçula deles ficou com o bucho virado - era o jeito que chamavam quando a criança ficava doente, meio ruim do intestino, às vezes vomitando, às vezes com diarréia. E minha avó sabia colocar o bucho no lugar - ela segurava a criança pelas costas, cruzava os braços dela no peitinho, dava uma sacudidinha, descruzava os bracinhos e cruzava de outro jeito, dava outra sacudidinha e dava água prá criança beber. Logo ficava boa. Então, com a menina doente, chamaram minha avó - pela entrada lateral, da cozinha, eu junto dela prá fazer companhia.

Quando todo mundo tava distraído, adivinha quem se pinicou prá sala, prá espiar? Eu mesma. Vergonhoso, eu sei, mas eu era muito xereta, não parava quieta, queria saber tudo, falar com todo mundo... Ainda bem que eu fui aquietando com o passar do tempo...

Bom, fui até a sala prá ver a tal televisão à cores, ora! Ver como eram os botões (porque as televisões tinham montes de botões, a maioria deles muito lindos - não existia controle remoto) que ligavam, mudavam os canais, mexiam na sintonia... E, quando parei prá olhar a tela...

Colados nela havia um mosaico de pedaços de papel celofane, de várias cores - amarelo, azul sobre amarelo prá fazer verde, vermelho sobre amarelo prá fazer laranja... Essas eram as cores que se viam brilhando através da cortina, quando eles assistiam a novela - como é que a gente não percebia?

Coitados. Queriam tanto ser melhores que todos que nem percebiam que já eram - pelo menos muito mais ricos... Queriam ser mais e mais...

Hoje eu tenho pena, mas naquele tempo falei na cara deles: televisão colorida dessas não custa caro, não! Qualquer um pode ter! E contei prá todo mundo - coisa-feia-eu...

Bom, eles removeram o papel celofane (de que adiantava agora, não é?) - a luz que voltou a transparecer da cortina era a luz normal de uma TV preto e branco, até eles comprarem uma colorida de verdade (eles tinham dinheiro prá isso, afinal de contas...). Daí passaram a assistir, durante um tempinho, a TV colorida com a cortina puxada, bem aberta, que era prá esfregar na cara das pobrezas que eram melhores mesmo que todos nós. 

É verdade que foi apenas durante um tempo muito curto, pois a molecada toda (incluindo eu) ficávamos nos espremendo na janela, rindo e conversando alto, assistindo a TV junto com eles, sem um pingo de vergonha na cara de sermos pobres...

Daí tirei mais uma lição de vida: ninguém é melhor do que ninguém pelo que possui. Você pode ser rico e nunca estar feliz nem satisfeito, pode não ser mais do que um mentiroso...

Todo mundo pode trabalhar e comprar coisas boas prá sua vida - se não for uma Ferrari, pode ser um Gol usado, uma moto, uma bicicleta, um par de sapatos - e vai poder ir de um lado pro outro do mesmo jeito, seguir com a vida, de uma forma ou de outra. Mas, independente da maneira como você vive sua vida, como se locomove, da roupa que você usa, da comida que tem na sua despensa, todo mundo, um dia, deixa tudo isso prá trás e vai pra  debaixo da terra. Fato. E, enquanto você está aqui, melhor mesmo é ser verdadeiro, ser quem você é - vai que você dá azar e uma intrometida entra pela porta adentro da tua vida e te desmascara, não é mesmo? Daí, não adianta morar na casa mais rica da rua - a vergonha é a mesma...
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24 comentários:

  1. Oi Rosa! Como já te falei, não guardo muitas lembranças da infância, acho que nunca fui de ficar 'matutando' muito sobre as coisas, então elas vão passando por mim...uma pena, adoro quando alguém me faz lembrar de algo. Lembrei das TVs com papel celofane colorido, das cores saindo pelas janelas de quem tinha TV a cores, e das casas 'dos ricos', sempre com lindas pedras nas fachadas. Ainda bem que a felicidade não está em nada disso, e quando se é criança então, o que importa mesmo é até que horas vão poder brincar!!
    beijos

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    1. É mesmo, quando a gente cresce acaba se preocupando com coisas que, na verdade, não tem nenhum valor - mas quando se é criança, brincar é tudo o que importa.

      Ah, mas você mudou o seu ícone... Tava tão linda no outro... Vou sentir saudades...

      Beijos!

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    2. Linda é você, que vê beleza em tudo, e ainda ensina a gente a ver também!! E logo-logo eu mudo o ícone de novo. beijoss

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  2. Rosa muitas lições a gente nunca esquece. Eu era doida pra ter uma bicicleta e nunca tive uma, mas acho que isso nunca foi algo que me deixasse traumatizada!rsrsrs! Brincadeira!
    Mas eu lembro que aceitava as coisas do jeito que eram, serenamente, engraçado isso.
    Tenha uma boa tarde, bjs Nina

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    1. Eu também nunca tive uma bicicleta... Aliás, acho que Deus fez bem em não me dar uma, eu não tenho muito equilíbrio, nunca aprendi a andar em uma, mesmo quando anos mais tarde, meus irmãos caçulas ganharam. Mas é bom ser assim, não é, Nina querida? Aceitar o que a vida nos dá, procurar o melhor sem desespero e seguir vivendo a vida, sendo feliz como Deus permite...

      Beijos e um lindo final de semana!

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  3. Sabe aquela expressão da Tv Cultura?
    Senta que lá vem história? ...rsrsrs.. me lembrei dela agora... e é sempre um prazer imenso vim te visitar e ser recebida assim, pela sua alma... pois vc é transparente e carrega muito amor no coração.
    Te admiro e te gosto cada vez mais.
    Que DEUS te abençoe imensamente.
    Um abraço forte,
    Rosangela.

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    1. Obrigada, Rosangela querida! Eu assistia esse programa da cultura com meus filhos - a atriz que fazia os personagens com penas e caixas de fósforos hoje é a voz do canal Max Prime, dá uma saudade...

      Eu gosto de contar histórias - gosto mais ainda de ouví-las. Acho que tem um lado meu que nunca deixou de ser criança, por mais que a artrite já esteja me atormentando.

      Que Deus te abençoe mais ainda, minha querida, por toda essa gentileza que você tem para comigo.

      Beijos!

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  4. Rosa querida, você tem cada história....dava para escrever um livro!
    Não sei se você já viu, estou fazendo um sorteio lá no blog.
    Bjs

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    1. Já fui lá arriscar a sorte, Cris querida! Quem sabe não vou ser eu a contemplada...

      Quanto a histórias - você não faz ideia... Dava prá mais de um livro, se eu tivesse talento prá escrever um...

      Beijos e obrigada!

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  5. Recuerdos hermosos que se transforman en relatos, preciosas letras, un placer pasar a leerte!
    Te dejo un fuerte abrazo.


    http://perfumederosas-cristina.blogspot.com/

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    1. Obrigada, Cristina querida! Fico feliz que você goste de ler. Beijos!

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  6. Quando vejo a chamada da sua postagem já até me preparo pra viajar nas lembranças... e, felizmente, nunca falha... As luzes na rua, o asfalto (aqui a briga era pra escrever no cimento das guias, todo mundo queria gravar o nome...), o poço... a gente tinha que ajudar a puxar água (acho que eu não tinha nem 10 anos), hoje as crianças e adolescentes resmungam até se a mãe pedir um copo de água do filtro...
    Dias atrás assisti um filme do Jerry Lewis que havia assistido muitas vezes quando criança em preto e branco (o original do filme é colorido), foi o máximo! Ele era muito mais encantador do que minha memória lembrava... Ah, e também andei assistindo o Manda Chuva pelo youtube... amo a tecnologia...
    Obrigada pelas lembranças...
    Beijos.

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    1. Ai, eu adoro os filmes do Jerry Lewis! Você também acha que o Professor aloprado dele é incomparável? Adoro também aquele em que ele tem pavor de garotas e acaba trabalhando num pensionato cheio delas - é meio maluco, mas muito engraçado...

      E eu também procuro e assisto no Youtube muitos desenhos antigos... Fazendo eco: amo tecnologia. Essa época que estamos vivendo é ótima.

      Beijos e obrigada pelo carinho!

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    2. Sim, lembro do pensionato. Da moça que tinha um quarto inteiramente branco... eu sonhava em ter um igual pra mim (nunca, é claro, tive um quarto só meu...). E aquele que ele era enfermeiro... esses filmes repetiam tantas e tantas vezes...
      Eu que agradeço, por me carregar em suas viagens...
      Muitas lágrimas na história do pastel, viu?
      Um grande beijo em seu coração

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  7. Oi rosa.
    Essa sua narrativa deu lágrima no olho viu?
    Eta mulher, você mexe com o sentimento da gente.
    Beijos grandes do fundo do coração

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    1. Obrigada, Alice querida, muitos beijos prá você também!

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  8. nossa adorei as histórias e a receita de paltel ...obrigada por compatilhar.

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    1. Eu que agradeço por você aparecer no blog e ter gostado (e comentar prá me fazer feliz...). Beijos!

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  9. Rosa vc me fez lembrar da minha infância, não tínhamos tv, eu e minha mãezinha íamos na casa do vizinho assistir novelas a primeira versão de Selva de Pedra lembra??? antes de acabar essa novela meu pai comprou uma tv, eu e minha mãezinha pulávamos de alegria.... que saudade daquele tempo.... obrigada por me fazer lembrar foi muito bom, e que Deus a abençoe!
    Beijos Vera.

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    1. Acho que foi minha novela favorita - eu estava na 4ª série primária (e você?). Lembra da trilha sonora? Saudade.

      Beijos e obrigada pelo comentário - me fez lembrar também...

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  10. com todo respeito as outras tricotadeiras mas pra mim o se blog é o melhor vc é 10 ! beijinhos

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    1. Nossa, é muita responsabilidade prá mim, querida Andréa... Obrigada pelo seu bom coração.

      Beijos!

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  11. Rosa, já havia lido esse sreu texto antes. Li novamente. Ele é lindo e verdadeiro! Na década de 70 era comum colocar esses plásticos coloridos na TV. Na minha rua também só tinha uma casa com tv colorida. À noite toda a "gentalha" da rua se espremia na varanda para ver um poquinho de cor.
    Beijos

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    1. Como a gente queria uma tv colorida naquele tempo, não era? E hoje a gente tem e ela passa o dia todo desligada - eu só ligo prá ver meus desenhos favoritos...

      Beijos e obrigada, Helena querida!

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