segunda-feira, 17 de agosto de 2020

O valor das coisas perdidas


"Mas que postagem esquisita é essa, Dona Rosinha do Céu, começando justo com um besouro que rola cocô"

Eu também quero ver onde vai dar isso - já que a ideia brota e meio que a gente não se dá conta de prá onde o caminho leva...

Vamos ver...

É meio assim: tem coisas no mundo que muitas vezes passam batido à nossa percepção - estão lá como pano de fundo de tudo de espalhafatoso que acontece ao nosso redor, mesmo se a gente olhar prá elas logo desviamos os olhos atraídos por outra coisa e seguimos vivendo. Meu marido diz que a gente não perde calorias pensando nisso.

As pedrinhas que a gente encontra pelo caminho - pedrinhas mesmo, e não os estorvos que nos atormentam a jornada.

O morador de rua prá quem a gente lança um olhar de pena e segue a vida, às vezes se sentindo magnânimo por ceder-lhe uma moeda...

Os sacos plásticos de que a gente se desfaz quando chega do mercado, da feira e que não servem prá mais nada, por estarem rasgadinhos...

As embalagens de papel e papelão que um dia já foram uma árvore...

Os trapos que sobram de uma costura e que não nos inspiram a fazer nada...

Nós mesmos, perdidos neste mundo tão lindo e às vezes tão sem sentido, tão cruel...Numa existência que às vezes parece ter somente o propósito de ocupar espaço, fazer barulho, consumir e ser consumido, sem um propósito superior...

Eu mesma, por diversas vezes, já me senti perdida. Sem valor. Impotente. Coisa minha, derivada da falta de alguns hormônios no sangue ou de uma voltinha torta nos cordões do cérebro ou de uma alma titubeante na fé (talvez uma mistura de tudo isso...). Às vezes - vocês hão de concordar comigo - é muito difícil e complicado ser humano.

Eu presto atenção em tudo. Eu reparo em ovinhos que alguma aranha depositou na grade do meu portão, olho eles bem de perto, admirada de sua fragilidade e beleza. Admiro as plantinhas que nascem nas rachaduras da minha calçada, me perco nos desenhos intrincados dos meigos olhos das minhas cachorrinhas, ouço os cantos dos diversos passarinhos que visitam meu jardim, abstraindo os diversos sons que competem com eles, sejam pessoas conversando, carros passando, música tocando ao longe, o chiado da panela de pressão cozinhando o feijão.

Percebo tudo e tudo assimilo - sou uma esponja.

Mesmo em tempos de pandemia eu ainda continuo conectada ao mundo, ora catando uma alegria escondida numa fresta da vida, ora açoitada pelas notícias ruins que chegam e para as quais volto a pensar na minha impotência. Porque vejam: mesmo se eu não fosse uma velha, mesmo se eu não fosse doente, ainda assim praticamente tudo me escaparia ao controle. Nossos braços já nos mostram o limitado alcance do nosso ser.

Muitas vezes já me senti perdida, sem valor. Muitas vezes fui aquela ovelhinha perdida da parábola de Jesus - e sempre fui resgatada do barranco onde me encontrava caída. Muitas vezes fui carregada nas costas - sem que, naquela hora, me desse conta disso...

Todos nós precisamos do tempo prá aprender, prá crescer ou simplesmente prá avaliar as situações pelas quais passamos. Tempo prá construir nosso castelo com as grandes pedras que encontramos pelo caminho. E também prá acrescentar algo na nossa vida com as pedrinhas pequenas, sem nenhum valor aparente.

Chegamos então naquele besouro do começo da postagem. 

Besouro de Esterco, Besouro Rola Bosta, um besouro africano hoje espalhado sabiamente pelo homem ao redor do mundo todo. 

Esse inseto que nos causa repulsa à primeira vista é, prá mim, mais uma prova da sabedoria de Deus. 

Ele não come o esterco - como pensam algumas pessoas. Ao invés disso ele coloca no esterco seus ovinhos - como o fazem também as moscas (só que estas, ao eclodirem, empesteiam a natureza, adoecem os animais e as pessoas), se apodera daquele pedaço de esterco que contem sua descendência e segue rolando ele na terra, misturando tudo. Fica uma bolinha bonita, bem redondinha - e ele a empurra, sobe em cima dela como um palhaço equilibrista o faria num circo, movendo as perninhas com rapidez prá chegar ao seu destino. 

Daí ele cava um buraco na terra e enterra lá sua bolinha. Ali a bolinha aduba o solo pro plantio, enquanto a natureza se encarrega de trazer mais besourinhos ao mundo - e, de quebra, controla a população de moscas e outras pragas.

Tudo bem orquestrado por Deus prá nada se perder - afinal Deus é o maior dos recicladores, nas suas mãos nada se perde, nem mesmo as almas, acredito eu.

Eu assisti outro dia uns vídeos no youtube  onde pessoas estão fazendo tijolos de construção com garrafas pets derretidas - o homem tinha um fogão de lenha no fundo do quintal onde ele colocava uma panela bem funda e, no fogo alto, ele ia colocando garrafas pets e empurrando com um pedaço de madeira - elas derretiam como se fossem feitas de gelo. Ele ia jogando garrafas e mais garrafas até a panela ficar cheia daquela matéria derretida e então, com cuidado, ele derrubava o líquido fumegante em formas de madeira e as prensava. Quando esfriavam ele retirava tijolos lindos prontos prá fazer um muro, erguer uma casa - sem poluir o mundo com mais plástico que não é biodegradável.

Uma universidade no sul do Brasil faz diversas coisas com  tábuas produzidas a partir de saquinhos plásticos descartáveis usando um processo semelhante - bancos que já duram anos, que não são corroídos pelas intempéries, que não mofam como acontece com a madeira.

O tipo de coisa que me diz que a humanidade tem futuro.

Então eu reparo em mim mesma - já que, como eu disse, reparo em tudo - e nesses momentos em que me vejo por dentro eu enxergo além da mulher que envelheceu tão depressa, que adoeceu sem perceber porque achava normal sentir dores e tristezas: eu enxergo a criatura sonhadora e curiosa, pró-ativa e guerreira e vejo que não sou, de forma alguma, impotente.



Do papelão no qual veio a televisão da sala eu fiz um enorme quadro, medindo 0,80 por 1,5 m, pintado com tinta acrílica, tinta à óleo, tinta PVA e até esmalte de unha, que meus filhos amaram tanto que mandaram emoldurar. Inspirado nas obras de Tarsila do Amaral - que são bem simples e coloridas, com a ajuda da Fernanda prá criar uma mistura de vários quadros dela em um só.



Do papelão de uma caixa de ovos eu fiz papel maché e com ele fiz um presépio.

Numa viagem às cachoeiras de Capitólio/MG eu fui catando pedras e mais pedras - pobrezinho do meu filho, carregava todas numa mochila nas costas durante nossos passeios.

Fiz casinhas de fada pras floreiras e pros vasos:



Criei uma cidadezinha em cima de uma fatia grossa de árvore - meu filho fez da rachadura da madeira verde um laguinho no meio da minha cidade, que tem postes de luz feitos de palitos de dente, ponte de palitos de sorvete, casinhas, montanhas e até o sol dourado feito de pedra - e carros minúsculos feitos de pedrisquinhos perdidos na natureza (tem até ônibus escolar...).



As fotos não ficaram à altura da Cidade da Rosa.



Um bule velho virou um vaso onde também habitam fadas - está faltando só meu filho fazer furos no fundo, prá encher de terra e plantar talvez uma samambaia - ou petúnias, adoro petúnias.



De sementinhas caídas no chão na porta do convento onde a Irmã Dulce morou eu fiz este lindo colar - meu filho teve o maior trabalho prá me deixar feliz, furando uma a uma com uma broquinha minúscula!

Eu não paro de costurar. Fiz centenas de máscaras, algumas minha filha doou no hospital prá pacientes sem máscara no começo da pandemia, mas a maioria (como eu disse em uma postagem anterior) eu vendi, bem baratinho - mas ainda com lucro. Comprei chinelos em uma fábrica e uma pessoa amiga doou prá moradores de rua na praça João Mendes, no Parque D. Pedro e no Largo da Concórdia.

Fiz muitas bolsinhas porta-celular e as vendi como água, também no hospital onde minha filha trabalha. Muitas toucas cirúrgicas e necessaires, costurei tanta coisa que muitas vezes me espantei comigo mesma - como esta velha é poderosa, afinal de contas!

Comprei retalhos de diversos tamanhos de moletom grosso e fiz centenas de toucas, também distribuídas pros moradores de rua.

Com duzentos reais de retalhos comprados na mesma fábrica de malhas que fica aqui na Penha eu fiz 35 blusas de frio prá quem mais precisa e agora estou dando cabo daqueles retalhos que comumente vão pro lixo:




Não tá nada que se diga "Nossa! Que blusa mais linda maravilhosa!" mas, prá quem mora no relento, mais vale uma blusa toda feita de emendas do que tiritar de frio, não é mesmo? 

E prá amanhã minha família já vai buscar nessa fábrica mais trezentos reais de retalhos prá mesma finalidade: fazer do mundo um lugar melhor, um pouquinho por vez.

Eu acabei fazendo amizade com o encarregado da malharia, ligo prá ele e peço prá ir juntando os retalhos prá mim, das peças que saem das máquinas com algum fio puxado num pedaço, uma mancha de óleo, um defeitinho... (Até pensei assim: ele deve conhecer muita gente que fabrica agasalhos e que joga fora retalhinhos pequenos, eu bem que podia pedir prá ele falar com o dono de uma delas e ver se me davam os retalhos que vão pro lixo - mas escutei na minha cabeça minha família me chamando de lixarenta, que não tem espaço em casa prá esse tipo de tralha e que eu tenho que me satisfazer com o que a gente compra - e eles estão certos...).

Bom, tô "milionária". Ganhei um bom dinheirinho e ele será totalmente usado com quem tá precisando. Deus me dá forças, me dá minha Nana que percorre o hospital na sua pausa de almoço vendendo minhas peças e com isso posso ser feliz trabalhando, produzindo e ajudando. Me dá inspiração e propósito.

Imaginem vocês: uma pessoa que mora na rua, que não tem ninguém no mundo por ela - ou porque tem problemas mentais, ou é drogado, ou não tem mesmo prá onde ir. Faz suas necessidades na rua, sem privacidade nenhuma. Não tem onde tomar um banho quentinho, dorme no chão frio - às vezes, com sorte, em cima de um papelão. Se tiver uma dor não tem a quem recorrer, não tem alguém que se preocupe se ele vive ou morre. Come do que implora prá quem passa. Veste aquilo que ninguém mais quer.

Dá prá sentir a solidão? A tristeza? O abandono?

"Porque tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Estava nu e me vestistes. Estava doente ou no cárcere e fostes me visitar. Porque quando fizestes isto a um destes pequeninos, a mim o fizestes" 

Mas Jesus, Você está bem. O pouco que faço, na verdade, não sinto que faço por Você. Sinto que faço por eles e por mim, porque eu sou eles. Eu fecho meus olhos e sinto o frio e a fome, a solidão e a dor. 

Cada blusa de retalhos é uma pessoa a menos com frio no mundo. E o mundo, naquele momento, se torna um mundo melhor.

Então, se posso dar um conselho a vocês - não apenas prá esses tempos de pandemia, mas para a vida: auxiliem o próximo em necessidade. Façam o melhor que puderem sempre. Prestem atenção à sua volta, vejam no que podem ajudar, seja com um prato de comida, uma peça de roupa quentinha, um trocado acompanhado de um minuto de atenção prá quem se sente invisível, abandonado e só. 

Alguém muito sábio já disse: "Seja a mudança que quer ver no mundo".

E aqui sigo eu, rolando minha bolinha de retalhos e pedrinhas, coisas que ninguém quer e sementinhas, a fim de fazer eclodirem meus sonhos...





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4 comentários:

  1. Besourinho mais precioso a senhora. Sempre transformando tudo e tendo esse olhar de carinho com o mundo.
    A senhora tem o talento de escrever e tocar lá na parte mais escondidinha do nosso coração

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  2. Nossa eu choro eu rio, suas histórias são de mais e a Senhora veio a este mundo para marcar a diferença.
    Bem Haja!
    Beijinhos do outro lado do atlântico.
    Tina

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  3. Obrigada por mais essa história linda. Seus filhos e vc são um tesouro

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  4. Olá Rosa!

    Como está?
    Estive ausente, por motivo de férias. Agora, no regresso, estive a ver as novidades...
    Que texto lindo, comovente e profundo!
    A Rosa é de facto uma pessoa excecional!
    Que seja sempre abençoada e que Deus lhe dê força para continuar a sua bela missão!

    Fique bem!
    Beijinhos
    Liliana

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