terça-feira, 9 de junho de 2020

Necessidades



Os anos passam, a gente esquece um tanto de coisas, relembra outras. Queria me lembrar do som da voz da minha avó, cantando um fado enquanto lavava a roupa no grande tanque de cimento do quintal; do cheiro das alheiras sendo fritas na banha de porco, enchendo minha boca de água e o coração de tristeza, porque éramos tantos e a comida era tão pouca...

Às vezes eu me pergunto se não seria bom esquecer totalmente as coisas que nos fazem saudade - mas aí, sem a tristeza desses momentos, as pequenas felicidades perderiam totalmente o sentido. Com as tristezas na memória as pequenas felicidades se tornam preciosas, infinitas...

Necessitamos das alegrias e não podemos viver sem nossas tristezas, pois na verdade são elas que nos guiam em busca da felicidade.

Se fôssemos todos totalmente felizes o tempo todo, sem nenhuma tristeza, nenhum desapontamento, nenhuma contrariedade, perderíamos o motor que nos impulsiona a seguir vivendo - buscaríamos o quê, afinal de contas, se já teríamos tudo? 

Eu não quero ir para um paraíso de eterna contemplação - prefiro a eterna busca pela "Melhor Rosa" que posso ser, o eterno aprimoramento de mim, a luta sem fim pela melhoria do mundo, mesmo de forma tão limitada pelas doenças e pelas dores. Uma simples touca que eu faço já é uma pessoa com menos frio na cabeça...

No fim, tudo na vida são necessidades: alguns querem um paraíso estático como sentem falta dos anos dourados sem preocupação nenhuma, com suas necessidades totalmente supridas pelos outros. Outros desejam aprender mais, viajar mais, produzir mais, batalhar mais - como eu.

A historinha de hoje aconteceu há bem uns dez anos atrás. Meu filhinho tava recém formado, dirigia carro há não muito tempo e tinha marcado diversas entrevistas de emprego. O GPS do carro estava quebrado, então eu - me sentindo útil e importante - entrei no Google, coloquei os endereços dos locais prá onde ele tinha que ir, imprimi todos os trajetos, os mapas e lá ia eu junto dele - Aventura! balançando as orelhas e rindo com a língua pendurada prá fora (minha parte canina feliz de passear com meu amorzinho).

Acho que já contei como que era: eu guiava meu filho o caminho todo (entra à direita na terceira rua, faz o retorno em tal praça e, quando a gente chegava, ele saía prá entrevista e eu ficava dentro do carro, no estacionamento, alinhavando umas costuras, tricotando, lendo, bebendo uma aguinha, ouvindo música no rádio do carro. Era bom quando a gente estacionava o carro num shopping: assim eu tinha banheiro, lugar prá comer, esticar as pernas. Levava um caderninho e copiava roupas das vitrines prá fazer prás filhinhas...

Mas teve uma vez que não tinha nenhum shopping por perto: a empresa ficava numa travessa da Pedroso de Morais e meu Ike deixou o carro num estacionamento mais próximo do local - um estacionamento que era só um terreno cercado por uma daquelas telas de quadra de esportes, uma guaritinha onde ficava o funcionário e num canto um banheiro de 1m², com uma janelinha minúscula e que eu previ devia ser sujo como o próprio inferno.

Lá estava eu, passadas umas duas horas (muitas vezes as entrevistas duravam até o final da tarde, com dinâmicas de grupo, conversa em inglês com a matriz em outro país...), me segurando de beber água prá não precisar ir no banheiro quando, de repente, a natureza me nocauteou - me jogou no chão e pisou na minha cara, me chutou nas costelas e dançou sapateado no meu baixo ventre: um piriri.

Um tempo depois fiz minha primeira colonoscopia, tirei uns pólipos - talvez fossem eles os culpados dos meus desarranjos. Na hora eu pensei que era alguma praga que alguém tinha me rogado.

Fiquei segurando, pensando que ia passar, que logo meu filho podia chegar, que Deus ia ter piedade de mim, que se piorasse eu podia arriscar pegar gonorréia naquele banheiro - mas que isso era melhor que ter que queimar o carro...

Nessas horas a gente se lembra como era feliz meia hora atrás, quando teu corpo era teu - e não você era dele. Quando ele não mandava em você, gritando e cuspindo na tua cara: - "Acha logo um banheiro, Rosa sua besta!" (meu corpo às vezes é muito mau prá mim, volta e meia ele me xinga, especialmente quando eu como demais - é Rosa besta prá cá, sua anta prá lá, eu e ele às vezes somos unha e carne e outras vezes nos estranhamos muito...).

Bom, o sofrimento vinha e voltava, como ondas alternadas de alívio e desespero, até que um determinado momento eu percebi que não tinha jeito: eu tinha que me livrar daquilo ou nunca mais seria feliz de novo. Tava suando gelado, tava tremendo, um verdadeiro caco de mulher.

Peguei o mapa que eu tinha imprimido prá chegar ali e dei uma olhada nos arredores: paralela à rua do estacionamento tinha a av. Liberdade e bem na esquina dessa avenida com a Pedroso de Morais tinha UM MC'DONALDS. Glória a Deus nas alturas! Paz na terra prá tadinha da Rosa!

Peguei um lenço, enxuguei o rosto, ajeitei um pouco o cabelo, tentei disfarçar minha cara de transtornada e com coragem desci do carro, passei a chave - sempre tremendo e me espremendo (quem já teve um piriri sabe do que eu tô falando...) e caminhei como uma dama prá saída do estacionamento. Sim, como uma dama, mas também como uma mártir - até porque não dava prá correr mesmo, era andar devagarinho medindo todos os passos, rezando e implorando misericórdia aos céus.

Duas quadras. Apenas duas quadras e como foram sofridos aqueles metros. Mesmo assim, no caminho, passei por um morador de rua, fedendo a sujeira, bebida e urina e tive tempo de sentir compaixão enquanto seguia meu desesperado caminho...

Cheguei ao Mc'Donalds o que me pareceram horas depois, subi seus degraus devagarinho, dizendo prá mim mesma:"Vai, Rosa! Você consegue! Tá quase lá!" e então - finalmente!!!!!

Passado o momento de segurar nas paredes, de sentir as tripas puxadas com um anzol pro lado de fora veio aquele momento aleluia, aquela gratidão infinita a Deus, à vida, ao Universo e principalmente ao Mc'Donalds - abençoado seja por seu banheiro limpinho.

Eu necessitava tanto de um banheiro e encontrei um limpinho e cheio de papel, com pia, sabonete, guardanapo prá secar as mãos - infinito meu amor por Deus por ter sobrevivido a mais uma batalha. E deixei o banheiro como o encontrei, limpinho  pois não sou do tipo mal agradecido que só porque o banheiro não é meu que se dane quem vier depois: prá isso a bolsa é grande e sempre carrego muitas coisas úteis nela - incluindo lenços umedecidos com fartura.

Saí dali bendita entre as mulheres, leve no corpo e na alma, enxergando o mundo com outros olhos - tudo me pareceu mais bonito até.

Sabe, eu já comentei com vocês que adquiri alguma sabedoria com o passar do tempo: as necessidades mais básicas da gente são as que nos deixam mais felizes ao satisfazer. Comer um prato de arroz com feijão fresquinho quando tá com fome, tirar dos pés um sapato que machuca e poder comprar outro que seja macio e confortável, vestir um agasalho que espante o frio, achar um banheiro limpo e com papel quando bate o chamado da natureza. Que se danem os perfumes caros, os carrões, as cirurgias plásticas! Que sonhem em ser ricas e famosas as outras pessoas - eu só quero viver em paz com as minhas necessidades.

No caminho da volta, de longe já vi o morador de rua deitado na calçada e, agradecendo a Deus pelo fim do meu tormento eu pensei assim: "Deus me ajudou a suprir minha necessidade, me enviando inspiração prá resolvê-la. Agora é minha vez de suprir a necessidade de outro alguém!" e entrei num pequeno carrefour que tinha no caminho. Comprei uma manga coração de boi, madura e cheirosa, um cacho de bananas, um refrigerante, um Toddy, um pacote de biscoito recheado, uns pães frescos bem macios e um tanto de mortadela e outro tanto de queijo - aquele morador de rua ia ter uma gostosa refeição, graças a Deus.

Só quando já estava de volta no carro foi que eu me lembrei que tinha esquecido de comprar algo prá mim - "Droga!", mas depois ponderei, pois podia acabar tendo outro piriri - já pensou? Fiquei lá, tricotando com meus pensamentos, esperando meu amorzinho voltar.

Ele não passou nessa entrevista, como não passou em nenhuma outra. Tristinho ele tava, cortava meu coração. A Lolô também não conseguia se encaixar, a vida parecia estar fazendo brincadeira de mau gosto com meus anjinhos... Mas Deus sempre nos dá coisas boas se aguardamos a hora certa - e essa hora é ele quem sabe.

Primeiro o Ike passou num concurso, depois foi a minha Lola.
 
Sabem qual a minha maior necessidade? Ver meus filhos felizes, vê-los amados, protegidos, alimentados, bem cuidados. Não me importa quem vai fazer meus amores felizes, contanto que eles o sejam. Que suas necessidades básicas estejam sempre satisfeitas. Que eles não sintam solidão, que eles tenham sempre um abraço gostoso os esperando quando chegarem em casa, que eles tenham alguém prá rir e chorar junto, alguém com quem conversar abobrinhas e as grandes questões filosóficas da humanidade e com quem desabafar.

Sabem, o mundo ia ser um lugar ainda mais maravilhoso se as pessoas fossem mais felizes e principalmente se cada um cuidasse da própria vida - que já dá um trabalhão danado...

Eu vejo gente nas redes sociais apregoando que querem fazer voltar os "valores tradicionais" da família, que o mundo tá sendo destruído, que não existe mais família como era antes.

"Família como era antes"? Quando uma menina de 12 anos casava com um velho de cinquenta, dava prá ele quinze filhos, um atrás do outro e pegava doença venérea dele por causa das amantes com quem ele andava? Isso era família tradicional.

No tempo de Jesus era tradicional uma mulher viúva sem filhos ter por obrigação se casar com o cunhado prá gerar descendentes pro finado marido - se isso acontecesse comigo eu me matava, sem a menor sombra de dúvida.

O que era tradicional fica ultrapassado - graças a Deus. 

Minha mãe comentou comigo outro dia que minha prima Carla (que é aeromoça) é"lebisca" (minha mãe fala errado mesmo), vive com uma mulher há muitos anos e é motivo de vergonha prá família. Além disso, a irmã mais velha dela, Agnes, é "casada com um negro!". "Por isso o pai e a mãe não visitam ninguém, não querem ter que explicar as filhas pros outros"...

E eu pensei que aposto que elas duas estão melhores que muita gente por aí, que posam prá fotografias no Instagram ou no face, com suas famílias de comercial de margarina que, ao deitar na cama à noite, viram cada um prá um lado.

Homofobia? 

Pelo amor de Deus, gente! Que valor isso tem no final das contas? 

Sexo - assim como comer, beber, dormir, respirar - é apenas mais uma das nossas necessidades. 

"Ah, mas a gente precisa comer prá viver, sem respirar a gente morre, não compara as coisas, dona Rosa!". 

E por acaso você compreende todos os mecanismos das nossas necessidades? Porque eu não compreendo. Por exemplo: porque eu gosto de jiló frito com pão e meu marido odeia? Por que ele se apaixonou por mim e não pela minha irmã, que era muito mais bonita do que eu, ou por alguma dentre todas as dezenas de namoradas que ele teve?  A gente ama quem o coração da gente quer amar, ninguém manda no próprio coração.

"Ah, mas é um pecado se relacionar homem com homem e mulher com mulher. Tá na Bíblia". 

Também tá na Bíblia que o amor apaga a multidão dos pecados e eu garanto que é mais pecado ser infeliz e fazer os outros sofrerem por causa da própria infelicidade, como muitos pais fazem com os filhos.

Se por acaso for mesmo pecado, garanto prá vocês que Deus não vai perdoar, porque não precisa: Deus ama e amor de verdade já vem com perdão embutido.

Então vivam suas vidas plenamente, sejam felizes e deixem os outros serem felizes também. Um dia, como Jesus mesmo disse, já não seremos mais esposas nem maridos, pois no céu todos seremos anjos. Exceto os que preferirem ser demônios uns dos outros...

Quando passar pela cabeça de vocês a simples ideia de cuidar da vida alheia, peguem um pedaço de pão, façam um gostoso sanduíche e levem aonde vocês sabem que tem alguém faminto. Pega um novelo de lã que seja e façam uma touca, um par de meias prá aquecer quem vive no relento. Isso é que deixa Deus feliz com vocês, não ficar prestando atenção na vida dos outros.

Que todos vocês tenham motivos prá rir - mas também prá chorar... - que não lhes falte alimento, agasalho, um teto sobre suas cabeças, um cachorrinho ou um gato prá vocês acariciarem vendo TV, pessoas boas com quem conversar, pessoas prá bloquear no Whatsapp porque apregoam o retorno da Ditadura e da família tradicional e muito, muito tempo de vida prá pensar de um jeito e mudar de ideia no decorrer do caminho, crescendo sempre.

E banheiros limpinhos quando der aquele piriri. Amém.


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4 comentários:

  1. Uau! Que texto!

    Necessidades e a complexidade das realidades individuais...

    Adorei!!!

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  2. Parabéns, Rosa, você falou tudo.😘

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  3. Amém.
    Dar valor aquilo que realmente é valioso. É nada nos é mais valioso do que nossa família. Muito bem escrito (como sempre)Bjs

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  4. Ai, ai...vc é maravilhosa!!! Cada um que cuide da própria vida que já está de bom tamanho. É isso.

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