Nossas casas ficavam bem perto uma da outra: tinha a minha casa, a da minha avó, um terreno que pertencia ao meu tio e a casa em que ele morava - casinha pequena, de aluguel.
Nem uma casa, na verdade, era: dois cômodos no porão da casa de cima, na mesma quadra que ficava a minha, e era um barranco só...
Seu nome era Joel: era ruivo e tão sardento como se alguém lhe tivesse dado banho e esquecido de enxugar - daí ele enferrujara todinho.
O engraçado era que tanto seu pai, quanto sua mãe e suas duas irmãs não eram claros como ele: todos de pele bem morena, cabelos negros, olhos castanhos-escuros - mas não havia como se negar que ele era da família, pois tinha a cara do pai - uma imagem dele, ao mesmo tempo descolorida e avermelhada. Era magrelo, engraçado, mas muito burro prás coisas da escola - dizia que escola não prestava prá nada, porque ele ia trabalhar em fábrica, como o pai...
Falava cuspindo e por isso os outros meninos pegavam no pé dele - naquele tempo não chamavam de bullying, esse "bicho" não tinha nome. Na verdade, eram só crianças más, com falta do que fazer... Implicavam comigo também - e talvez daí saiu nossa amizade. Ou isso ou o fato de nossas mães serem ambas costureiras por profissão e necessidade e amigas de desabafos...
Todo mundo naquela casa fumava: a mãe era uma chaminé, o pai outra; a irmã mais nova, Marinês, era um ano mais velha do que eu e já fumava escondido atrás do pátio da escola e a irmã mais velha, Sueli, o fazia de um jeito lindo, que deixava até mesmo esse horroroso hábito charmoso - mas tudo o que ela fazia ficava mais bonito mesmo. Nunca vi uma mulher assim na vida: o jeito como ela andava parecia ensaiado: era suave, delicado, parecia deslizar por qualquer superfície. Tinha longos cabelos negros trançados e presos num coque, falava baixo, sorria discreto, se vestia com extrema modéstia... Era uma moça lindíssima, que passaria por uma princesa se estivesse melhor vestida, num lugar diferente - e não numa periferia tão pobre...
Era apaixonada por um moço mais bem de vida e dele tinha um filho, sem se casar.
Sofria muito, era triste.
Ele parava na porta dela com o carro, ela entrava e não se via a que horas voltava - devia ser alta madrugada, sem testemunhas... Ele chegou a se casar com outra, mas continuou vindo, fez-lhe outro filho e mais outro...
Se fosse hoje em dia, com testes de DNA, ela procuraria a Justiça, registraria os filhos com o nome do pai, obteria uma pensão - mas eram outros os tempos: ele ajudava pouco ou quase nada e ela trabalhava numa oficina de costura prá sobreviver...
Tanto o pai dela quanto o irmãozinho, Joel, eram - volta e meia - chamados de chifrudos nos seus círculos de amizade (prova de que tanto as crianças malcriadas quanto os bêbados são notoriamente conhecidos por sua falta de compaixão...).
Por isso o Joel ficava tanto comigo - eu não xingava, não via motivo. Achava a irmã dele tão linda! Queria crescer e ser suave e linda como ela, discreta como ela...
A gente jogava bolinha de gude, rodava pião, empinava pipa, queimada, vôlei, peteca - cada brincadeira na sua temporada. E nos fins de tarde quente a gente deitava em pleno asfalto morno de sol adivinhando as formas das nuvens, compartilhando sonhos, fazendo planos... Às vezes a chuva de verão nos surpreendia assim, deitados de cara prá cima e a gente escancarava a boca e apostava quem ia engolir mais gotas de chuva antes dela virar temporal - e depois corríamos, cada um prá sua casa, recepcionados com broncas por estarmos ensopados...
Ele me chamava de "Magra Patalógica" - uma brincadeira com uma personagem do gibi do Tio Patinhas, uma bruxa branquela parecida com a Margarida, só que de cabelos escorridos pretos, divididos ao meio... Me chamava de "Magra" porque... bem... eu era mesmo um esqueletinho de menina...
Estudávamos em anos diferentes - ele havia repetido de ano duas vezes... - na mesma escola. Volta e meia alguma empresa usava nossa escola de "campo de testes": foi ali que comi meu primeiro Choquito, que bebi pela primeira vez Fanta Uva, que me deliciei pela primeira vez com Danone de Morango...
Depois da aula a gente se encontrava, jogava conversa fora, empinava pipa e apostava quem ia ser mais rico quando crescesse...
- " 'Magra', eu vou ser muito mais rico que você! Na minha casa vai até ter uma torneira que sai Soda Limonada gelada - eu nunca mais vou beber água na vida, só Soda..." - dizia ele.
- "E eu, então?! Das minhas torneiras vai sair também Guaraná... Fanta Uva!!!"
- "Pois na pia da minha cozinha vai ter uma torneira de onde vai sair Danone - de morango e de pêssego!"...
E assim o danado ganhava a discussão - sempre mais esperto do que eu, que só tinha nota alta na escola... A casa dele sempre acabava sendo maior, com piscina, tobogã, quadra prá jogar futebol...
Então, um dia, o dono do porão em que ele morava pediu a casa pros inquilinos, prá reformar e alugar mais caro - e lá se foi a família dele, prá bem longe e eu nunca mais o vi...
Alguns anos atrás a mãe dele veio visitar minha mãe - doente, fazendo tratamento de câncer de pulmão. Estava viúva - o marido tinha morrido de câncer, já há algum tempo. A filha mais velha, Sueli, havia se cansado e dado um basta naquele relacionamento sem sentido. Criava sozinha três filhos e nunca quis se casar com ninguém. Marinês vivia com ela, nunca havia se casado também.
Quando minha mãe perguntou como estava o Joel ela, muito triste, respondeu que estava morto.
"A polícia matou meu filho... Disseram que ele era ladrão, que foi pego carregando coisas de uma casa...".
Assim eu soube que aquele menino, tão engraçado e doce, que partilhou tantos sonhos comigo na infância, havia abandonado esses sonhos e planos e partido desta vida assim, em meio a tanta tristeza e dor...
Quando minha mãe me contou fiquei tão triste, como se parte dos meus sonhos também tivessem sido mortos - porque, na minha cabeça, o tempo havia parado e ele ainda era aquele menino que falava cuspindo, jamais havia crescido prá se tornar ladrão...
Nós, seres humanos, somos tão frágeis, não somos? Setenta por cento de água com sonhos que se evaporam nas dificuldades, planos mirabolantes que nunca viram realidade.
Corações de vidro...
E também somos tão fortes - sobrevivemos a dramas secretos e traumas inimagináveis, gotejando nosso suor e lágrimas em cima das pedras do caminho até quebrá-las e forjando corações de ferro em brasa, ferozes e inabaláveis na perseguição do que quer que seja que nos move a alma...
Sei que Deus tem amor e perdão suficientes para receber, em Seus misericordiosos braços, aquele pequeno ladrão ruivo, que falava cuspindo - afinal de contas, Jesus foi crucificado em meio a dois deles e a um prometeu "Hoje mesmo, estarás comigo no Paraíso"...
Me conforta pensar assim...
E eu, de minha parte, ainda não desisti das minhas torneiras de Guaraná, Cola-Cola, Soda Limonada e Danone de Morango...
Ai Rosa, que triste...eu também ficaria desolada se soubesse que um amigo de infância tivesse escolhido um caminho torto assim, e tido um final destes! Mas é prova de que muito da violência que a gente vê por aí tem como uma das causas a pobreza, principalmente a desigualdade social. É preciso muito amor e bom exemplo dos pais, e uma boa dose de vontade própria, prá não se deixar levar por essa " vida fácil', de se querer o que é do outro a qualquer custo.
ResponderExcluirbeijos
É, Luci, é mesmo muito triste. A gente nunca sabe o que vai acontecer no futuro, só podemos fazer o nosso melhor e confiar em Deus.
ExcluirBeijos, minha querida, e um lindo final de semana.
Ai Rosinha do meu coração, que tristeza…por toda a família desse menino, o que devem ter passado….E por você também que perdeu essa imagem que carregava dentro de si.
ResponderExcluirAdorei um trecho do seu post, quando você fala da nossa fragilidade e de nossa força, posso publicar lá?
Bjs querida
Pode sim, Doutora querida, fico feliz que tenha gostado.
ExcluirBeijos e um ótimo final de semana!
Há histórias de vida bem amargas, e algumas ficam bem no fundo de
ResponderExcluircada um de nós e vêm ao de cima em qualquer altura, beijos Rosinha
Obrigada, Mira querida! Bom final de semana prá você e o esposo. Beijos!
ExcluirQue lindo!
ResponderExcluirPor isso queres que os meus sofás sejam diferentes de todos os sofás do mundo, sofás de renda! Necessário apenas ousar/sonhar e, (quem sabe?), ao abrir a torneira também eu me surpreenda com gelado de morango.
Muitos beijos
Isso mesmo, Nina querida! Bom final de semana, com muitas e muitas rendas lindas! Beijo!
ExcluirQue triste essa história! é uma pena ele ter escolhido esse caminho que só leva à morte precoce.
ResponderExcluirBjs. Bom fds.
Sim, muito triste mesmo, Fatinha querida.
ExcluirUm ótimo final de semana prá você. Beijos.
Sabe que tenho a impressão que as crianças de hoje não sonham mais como antigamente... É tanta TV, vídeo game, celular, internet, face... vivem a ver a vida de outros e não sobra tempo pra sonhos mirabolantes como a gente fazia...
ResponderExcluirQuando era criança a gente ria muito quando alguém soltava um pum, então eu pensava, quando tiver minha casa vou ter um sofá com um caninho camuflado pra quando alguém soltar pum ele sair lá fora no alto da casa como uma chaminé e ninguém nem perceber... kkk Veja que ideia? Até hoje lembrar dessa bobagem me faz rir...
Sem contar o sonho de ter uma árvore no meio da sala. Quando vou no Páteo do Colégio, na São Bento, tem uma árvore que fica no meio do telhado, olhar pra ela me faz até suspirar...
Realmente não é fácil achar uma maneira honesta de alcançar os sonhos... Também ficaria triste com a notícia de uma pessoa tão cheia de inspirações perder a vida assim...
Bjs
Amei esse seu sofá, Mara querida! Conheço um montão de gente que faria bom uso dele... E o sonho de uma árvore no meio da sala? Já pensou uma cerejeira japonesa? Demais...
ExcluirBeijos e um lindo final de semana, cheio de sonhos.
Olá Rosa, fiquei emocionada em ler essa história, realmente somos muito frágeis e não entendemos quando ou como em algum momento da vida nosso caminho pode nos levar para longe dos nossos sonhos...
ResponderExcluirEu também penso como você, Deus é misericordioso e sempre nos entende e reserva um lugar perto dele...
Quero agradecer pela sua visita ló no meu bloguito, adorei seu comentário sobre o açúcar mascavo, me enriqueceu muito viu!
Beijão pra você e boa sexta!
Cris...
Obrigada, Cristiane querida, muito gentil e lindo o teu comentário. é sempre uma alegria ter você aqui.
ExcluirBeijos e um lindo final de semana!
Olá Rosa,
ResponderExcluirQue história mais triste.
Mas temos que sempre fazer escolhas nessa vida e nem sempre os nossos queridos escolhem o certo.
Meu marido tem um amigo de infância que se corrompeu a pouco tempo, ficou preso, foi jurado de morte... mas ele escolheu o suborno e não a honestidade, fazer o que? Temos livre arbítrio amiga.
Não deixe seus sonhos morrerem, tome sua coca cola, amei sobre o choquito...
Aproveito para lhe desejar um maravilhosos final de semana.
Beijos
Um maravilhoso final de semana prá você também, Carla querida, e pode deixar que eu sou uma sonhadora nata. Beijão!
ExcluirOi Rosa, o livro é leve, bem gostoso de ler, e tudo acaba bem!
ResponderExcluirBjs
Que bom! Obrigada pelo retorno, Doutora querida. Beijos!
ExcluirÉ um realidade , mas triste, .
ResponderExcluirbjs
http://eueminhasplantinhas.blogspot.com.br/
É mesmo, minha querida, muito triste. Beijos e um ótimo final de semana.
ExcluirA fragilidade de alguns fazem com que a nossa força seja reforçada!
ResponderExcluirTal como digo...venha daí um belo livro de contos variados e com o título:
"Uma Rosa à Janela"!!
Adoro a forma como escreve!
Você é um amor, Maria da Graça... Quem dera eu tivesse esse talento todo...
ExcluirBeijão!
Estou eu aqui, emocionada com a história do Joel. É tão frustrante saber que ele não teve sua torneira de danone e soda limonada, na vida...
ResponderExcluirbjs
A maioria de nós não consegue nunca sua torneira de Danone ou de Soda Limonada - mas a gente não desiste, mesmo que tenha que comprar de pouquinho o sonho, de potinho em potinho, uma garrafinha por vez... Triste mesmo que tem gente que não enxerga isso e vai atrás do sonho com pressa - e acaba perdendo tudo...
ExcluirBeijos.