A sacola antes tão pesada de costuras vinha agora vazia, numa das mãos de minha mãe. Na outra mão ela segurava a minha - como sempre foi e ainda é, de mãos dadas quando andamos juntas, desde que deixei de andar no colo...
No peito de ambas aquele aperto da esperança morta, que não deu em nada, desfeita com simples palavras:
"Ah, hoje eu não tenho dinheiro aqui prá te pagar pelas costuras, mas não se preocupe. Semana que vem eu arrumo um tempinho e passo lá, na tua casa, prá te pagar...".
Na hora de encomendar as costuras, de ir pedir pressa, todo mundo arrumava fácil "um tempinho" mas, na hora de pagar, quão poucos se lembravam de quantas bocas esperavam famintas pelo arroz e o feijão que viriam daquele suado dinheirinho!
Minha mãe cobrava baratinho - apesar de costurar como poucas no mundo, com diploma da Singer tirado - com louvor - aos 12 anos de idade (a mascote da turma...). Tem até uma foto, com a classe toda reunida e em seus melhores vestidos, no dia da formatura, e minha mãe na frente, sentada ao lado da professora - uma criança ainda! Aos 14 quase morreu de tuberculose - meu avô vendeu muitas das terras que possuía prá tratá-la. Casou-se aos 21 anos e teve 13 filhos - eu sou a número 8, a primeira a vingar...
Mesmo tendo vendido tantas propriedades, meu avô ainda podia ser considerado rico. Naquele tempo se ganhavam fortunas mais facilmente, pois se compravam terras pelo preço de uma simples vaca leiteira - e o crescimento das cidades faziam essas grandes extensões de terra compradas tão barato valorizarem-se vertiginosamente...
Quando meu avô estava prestes a morrer, meus tios se reuniram e decidiram que todas as propriedades deveriam ser divididas por ele ainda em vida - prá evitar os transtornos de inventário. E assim, reunidos, decidiram que minha avó (que havia ajudado a comprar tudo o que tinham, trabalhando muito) não ficaria com nada, pois era apenas uma mulher e analfabeta (e que, afinal, poderia escolher morar com quaisquer dos filhos...) e que minha mãe, por ter escolhido mal o marido, ficaria apenas com uma casa. Espertos como eram, deram à minha mãe a menor de todas as casas: quarto, sala e cozinha, com um banheirinho do lado de fora e um pedacinho de quintal. Quando meu avô disse que não achava certo, que ela era filha igual, eles disseram que meu pai "torraria" tudo, que sendo apenas uma casa isso não aconteceria, pois jamais ele se livraria da única casa que tinha prá morar e que eles se encarregariam de tomar conta da irmã e dos sobrinhos, aos quais nunca nada faltaria.
Meu avô morreu e as promessas que lhe foram feitas às portas do túmulo se mostraram tão duradouras quanto a coroa de flores...
Dois desses meus tios tinham um grande armazém a poucas quadras da minha casa - e não nos vendiam nada fiado, pois diziam que não iríamos pagar por sermos parentes. Todo mundo na vizinhança comprava "na caderneta", mas não nós...
Outro deles tinha uma quitanda - e agia da mesma forma. O único que se lembrava de nós era meu tio Antonio - o qual, por ser somente filho de minha avó, não recebeu herança nenhuma. Esse tinha uma padaria e nos mandava, todo dia, uma bengala de pão e um litro de leite - bendito seja!
Naquele dia - me lembro bem - fomos entregar as costuras, esperançosas de voltar com comida prá casa (por isso eu estava junto, prá poder ajudar a carregar...).
Desacorçoadas passamos na porta do armazém dos meus tios, espiando tristes os sacos de feijão, arroz e farinha de milho expostos próximos da porta...
Começamos a subir a rua e então passamos na porta da quitanda onde, arrumados na bancada de madeira, estavam legumes já a meio caminho do lixo. Cenouras murchas, mandioquinhas machucadas, abobrinhas cheias de mosquitinhos. Entrando na quitanda do meu padrinho, minha mãe - depois de acostumar os olhos com a diferença de luz - disse a ele, com a voz fraca e cansada da caminhada:
"Zé, aquelas cenouras e mandioquinhas já estão tão feinhas... Ninguém vai comprar. Vende elas prá mim, que depois eu te pago - tô sem nada prá dar prás crianças, a freguesa não me pagou... Dá prá fazer uma sopa..."
Ele nos olhou de cima, como se fôssemos estranhas recém chegadas de algum lugar horrível e disse:
"Não mandei ninguém ficar tendo filhos igual rato. Os meus filhos estão bem alimentados e isso é o que me importa. Prefiro jogar no lixo do que vender o que quer que seja prá você!"
Uns dias antes disso, minha madrinha havia estado em casa, juntamente com minhas outras tias, decididas a "ajudar" minha mãe.
Disseram que ela devia se separar do meu pai, dar uma das filhas prá cada cunhada e se virar com os meninos - que eram os mais pequenos. Assim ela ia dar um jeito melhor na vida dela, com menos crianças dependendo dela. Nem sequer mencionaram que - com isso - elas iam ter, cada uma, uma empregada vitalícia, treinada desde pequena, sem hora prá começar e muito menos prá acabar o serviço e que iria trabalhar por apenas um prato de comida...
O tempo seguiu seu curso, curando algumas feridas, escondendo outras, deixando inúmeras cicatrizes...
Engraçado: a mais pobre da família, a que não herdou quase nada, foi a que melhor soube criar os filhos. Fizeram faculdade (coisa que os bem-afortunados não davam valor...), ninguém de nós bebe, ninguém fuma, ninguém nunca usou droga...
Um dia, já casada, fui visitar minha mãe e, chegando lá, ela não estava em casa. "Ela já, já chega. Foi levar almoço pro tio Zé".
É que ele estava de volta, morando de novo na casa nos fundos da quitanda, agora viúvo, doente, desalojado da mansão onde vivia por um dos filhos ("Prá que um velho sozinho morar numa casona dessas?! A casa velha tá de bom tamanho!").
Eu fiquei chocada! No meu coração ainda havia mágoa - por aquele dia das cenouras e por muitos outros dias perdidos na memória, espetados no meu coração como farpas, doendo a cada batida. Como minha mãe podia estar indo lá!!! E pior: não era só levar o almoço - era ela quem fazia faxina na casa, quem lhe cortava o cabelo, fazia a barba e, por fim, até lhe dava banho!
Esperei ela chegar - eu brava, com pedras na mão, ela ofegante, cansada da subida. Depois que eu "soltei meus cachorros" ela me disse: "Ele é meu irmão, filha! Os filhos nem vem visitar, ele fica tão triste, sozinho, sujo. Me dói ver ele assim..."
"Mas, mãe!..."
"E os setenta vezes sete, filha?"
Pronto. Frente a esse argumento, o que dizer, não é mesmo?
O "Marildo", que estava junto de mim o tempo todo, calado, quando saímos dali me disse que íamos passar a visitar esse meu tio, prá oferecer companhia, conversa, seguindo o exemplo da minha mãe.
E assim fizemos - pois eu assumo quando fui derrotada em uma luta justa e me rendo.
Por incrível que possa parecer, apesar da minha resistência inicial nas visitas, todas foram extremamente prazerosas e gratificantes. A alegria com que ele nos recebia era só a porta de entrada dessa nova morada espiritual na minha vida: aprender a perdoar não por obrigação religiosa, mas pelo prazer de seguir vivendo livre de um fardo, renovada na fé de que a alma humana tem conserto e que aqueles que a remendam andam do nosso lado e vivem as suas vidas, aprendendo e ensinando.
Como minha mãe, com quem aprendi que dar a outra face, quando nos feriram, é muito difícil - mas que é o certo a se fazer, não tanto pelos outros, mas principalmente por nós mesmos... Perdoar e seguir em frente é lindo - mas perdoar e estender a mão é sublime. É ser capaz de se sobrepor ao mundano e tocar um pedacinho do céu - se isso é possível.
Ressentimento é uma bagagem muito pesada prá se carregar pela vida. É igual a uma mala, sem alça, de papelão molhado e cheia de lixo - não serve prá nada, nem se deve fazer o esforço de pegá-la, quanto mais de carregá-la...
E, pensando bem, se Jesus nos recomendava perdoar setenta vezes sete, quantas vezes será que Deus perdoa?
É bem provável que, assim como Seu Amor, também Seu Perdão seja infinito, não é mesmo?
Que lindo ... me tocou, bem hj que sofremos uma grande ingratidão, me faz refletir, bjs e um ótimo final de semana!
ResponderExcluirViver é assim mesmo: a gente vai enfrentando um montão de obstáculos no caminho... Mas, da mesma forma que tem gente que nos atrapalha, tem também aquelas que nos ajudam e nos fazem crescer. E - muitas vezes - aquelas que mais nos atrapalham e nos fazem sofrer são justamente aquelas com as quais aprendemos mais, não é mesmo? Então pense com calma, reflita, reze prá Deus te ajudar a perdoar e seguir em frente, que com o tempo tudo se acerta.
ExcluirBeijo.
Rosa, quanto sofrimento você já passou. E ainda assim tem esse coração tão generoso. Mas não poderia ser diferente, com a mãe que você tem!! Ela mudou o curso de parte da família, transformou os filhos em pessoas honestas e boas. Tem aquele ditado -perdoar é esquecer- mas eu nunca concordei muito com ele não. Nunca se esquece tanta maldade assim, e deve sempre ser lembrado para agir diferente!! Sua mãe perdoou seu tio, e o ajudou sem ressentimentos. Isso é perdoar!! Obrigada por dividir com a gente sua história, faz nossos problemas ficarem tão menores...
ResponderExcluirbeijos
É, Luci querida, minha mãe é nossa âncora. Todas as vezes que a vida nos deu tempestades, lá estava ela, nos segurando... E olha que ela é um espirrinho de mulher, tão pequenininha!
ExcluirBeijos e obrigada por sempre traer palavras tão bonitas prá mim...
Sua mãe é uma pessoa especial, que teve que passar um bocado de coisa nessa vida, daquelas que faz a gente ficar pensando “qual o sentido do que passamos?”.
ResponderExcluirAinda acredito que colhemos o que plantamos. E, se plantamos cactos e nascem margaridas, me parece que as coisas ficam sem sentido... Será que seu tio entendeu as margaridas que surgiram no jardim dele?
Admiro tanta grandeza. História pra se pensar e refletir... Obrigada por compartilhar.
Bjs
É, eu também acho estranho, às vezes... Mas, se você parar prá pensar, meu tio recebeu na carne o que ele exemplificou: da mesma forma que ele não ligava pro que acontecia com a irmã e os sobrinhos pequenos, no final da vida, quando ele mais precisava, os filhos não se preocupavam nada com ele... E minha mãe acabou ensinando a ele uma preciosa lição, de amor e de perdão - nunca é tarde prá se aprender...
ExcluirBeijos, Mara querida.
Oi Rosa
ResponderExcluirEsse Testemunho de vida é muito importante, nos ensina muito.Esse tempo de Deus, só nos mostram que devemos sempre esperar o crescimento do ser humano.
Menina é por isso que gosto tanto de te visitar.
Amém,amém...
bjs
Mary Nilva
É por isso que eu acho estar vivo o máximo: observar o que acontece à minha volta, ver as pessoas mudarem, evoluírem, participar de alguma forma do processo, aprender e evoluir eu mesma. Deus sabe o que faz, não é mesmo? A gente erra e, com o passar do tempo, Ele conserta.
ExcluirEu também adoro quando você me visita, Mary querida. Beijão!
Rosa, que relato... tem coisas que não dá para entender, atitudes tão desumanas... Mas graças a Deus que existe gente como nós e que de alguma forma podemos melhor esse mundo, é um trabalho de andorinha, mas vale a pena. Que Deus esteja contigo e com sua família sempre. Obrigada por compartilhar suas histórias de vida, tenha certeza que você tem plantado muitas sementes boas no coração de muita gente!! bjssssss
ResponderExcluirObrigada, Débora querida, você é muito gentil. Concordo com você que, mesmo de pouquinho, boas atitudes tem repercussão positiva em todos à nossa volta e não devemos desistir.
ExcluirBeijos!
A história que você dividiu conosco tem um porquê. Ela ensina mais que qualquer sermão. Muitos acham que é impossível seguir os passos de Deus, e a história de sua mãe mostra o contrário. Nessas horas vemos que sempre existirão pessoas de alma boa, caridosa, que sofrem sim, mas que ensinam e tiram de maus caminhos outras tantas almas.
ResponderExcluirParabéns! beijos
Verdade, Lu querida. Nesta vida nós sempre temos que estar atentos às pessoas boas que Deus coloca no nosso caminho, pois elas acabam nos direcionando e fazendo aflorar o nosso melhor.
ExcluirBeijos e obrigada!
Rosa
ResponderExcluirNada acontece por acaso e essa história da vida de vocês ensina muito.
Nada como o tempo para mostrar a verdade, para mudar conceitos, para diminuir a arrogância. Tempo é rei!! nos ensina tantas coisas!!
Bjs, ótimo dia pra vocês.
Exatamente, Fatinha querida. O tempo é um grande mestre em todas as questões da vida, colocando tudo nos seus devidos lugares, ensinando preciosas lições.
ExcluirBeijos e obrigada!
Oi Rosa, adoro suas estórias! Te admiro muito e quando eu crescer quero ser igual a você rs
ResponderExcluirSó não entendi uma parte, quem morreu aos 14? a professora?
Beijos!
Érica
Desculpe pela falta de atenção rs agora que li direito...quase morreu...rs
ExcluirErica
Tudo bem, Érica querida, é assim mesmo: eu escrevo tanto, geralmente a postagem é tão grande que até eu me perco um pouco no ritmo de ler...
ExcluirBeijo.