quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A Moça de Vermelho

Hoje mais cedo tive que acompanhar meu filho em um compromisso de trabalho. Digo "tive" porque, como mãe, "tenho" (o mais certo talvez fosse dizer "preciso"...) que ajudar sempre que possível, mesmo que seja sendo co-piloto em um local estranho, quando o GPS do carro dele está com mal-funcionamento. Decorei o trajeto no Google Maps e hoje saímos às 6 da manhã, com destino a um bairro chique de São Paulo, bem distante da nossa amada e periférica Penha.


Levei água, crochê prá distrair as mãos e a cabeça, biscoitinho.

Os dois estacionamentos onde tentamos deixar o carro não permitiam que eu ficasse nele - política do local, para prevenir furtos...

Não havia um shopping por perto onde eu pudesse passar o tempo, então o jeito foi estacionar em uma enorme e linda praça que ficava um pouco antes, bem arborizada. 

Detalhe: haviam 3 garotas de programa desfilando pela praça - já naquele horário. Com vinte e poucos anos de idade, trajavam curtos vestidos vermelhos, um liso, os outros estampados de flor. Cabelos pintados de louro bem amarelo (acho que os homens devem mesmo preferir as louras...), com suas bolsas à tiracolo, fazendo charme para os motoristas que contornavam a praça.

O local era extremamente bonito, cercado de belas casas (mansões, na verdade!) - o último local que você imaginaria palco desse tipo de coisa.

Meu filho ficou receoso de me deixar ali, sozinha, em um ambiente daqueles. Pensou em remarcar o compromisso, voltar outro dia sozinho. Garanti a ele que estava tudo bem, que podia ir tranquilo, que elas só estavam cuidando de seus assuntos e que tudo ficaria bem comigo. 

Mas, no fundo - bem no fundo mesmo - aflorando sem ser chamado, estava o meu preconceito. Eu fazia meu crochê com os olhos vesgos, um na linha, outro rodando da janela ao retrovisor, ao espelho lateral e de volta prá janela, acompanhando todos os passos delas...

Realmente elas estavam a cuidar das próprias vidas, conversando, rindo, fazendo charme. 

Durante mais de duas horas, crochetei minha rendinha, bebi água, vigiei a rua...

Até que, aparentemente saída de lugar nenhum, a moça com o vestido vermelho liso me pegou desprevenida: num momento de distração de minha parte, eis que ela surge - 1,5 m de distância da minha janela, perto o suficiente para ser ouvida, longe o bastante para não invadir demais minha privacidade - e me diz, com uma doçura inesperada, que o local onde eu estava estacionada era proibido estacionar e que eu iria ser multada. Disse que, na semana passada, todos os carros em redor da praça haviam sido multados e que o DSV passava duas, três vezes por dia prá multar. Sorriu prá mim um sorriso meio envergonhado, meigo de doer o coração. Bebeu um gole de água da garrafinha pet que trazia na mão (que, com certeza devia estar morna) e, se queixando do sol e do calor, me disse tchau.

Senti tanta vergonha... Vergonha de mim. Ela ali, vivendo a vida dela (que, com certeza, não deve ser fácil, independente de ser escolha dela ou imposição das circunstâncias...) achou tempo, em meio ao calorão que fazia e gentileza, em meio às rudezas que ela deve receber do mundo, prá me alertar de um perigo bobo como uma multa... Eu, ali, aparentemente vivendo a minha vida, na verdade trabalhando gratuitamente como juíza do mundo, sem salário, 13º nem férias, sendo surpreendida por uma gentileza de onde menos eu esperava.

Ali sentada no carro, lembrei da primeira pessoa para quem Jesus apareceu quando ressuscitou  no 3º dia. Não foi visitar sua amada mãezinha, nem seus amigos e discípulos: mostrou-se, pleno de luz e de vida, a uma ex-prostituta!

Uma mulher mal vista pela sociedade, mas que (enquanto seus discípulos se escondiam, face ao medo de lhes acontecer o mesmo que acontecera ao seu mestre) se mostrou publicamente sua seguidora, indo preparar-lhe o corpo para o devido sepultamento, segundo os rituais da época. Mulher de coragem - acima de tudo - que, retirada do fundo do poço pela fé, "foi e não pecou mais"...

Envergonhada, pedi mais uma vez perdão e rezei por aquela meiga menina, que soube se preocupar e ser gentil com uma mera estranha: que Deus lhe desse um bom caminho pela frente.

E aproveitei a oportunidade e rezei também por mim: que Deus me dê ainda muitos anos de vida, pois ainda estou muito longe de quem eu quero ser e ainda tenho muito que aprender...

(Imagem da artista australiana Cindy Lane
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22 comentários:

  1. ...e vamos levando a vida... Deus abençoe...
    Vc e a moça de vermelho,
    Bjs, ninna

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    1. Abençoe a todos nós - eu sei bem o quanto preciso... Obrigada mais uma vez, querida Ninna. Um beijo.

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  2. São estes acontecimentos q levam os preconceitos serem revistos ! Oração sempre faz bem para todos . Abraços

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    1. Ainda bem que essas coisas acontecem, senão a gente não evoluía, não é mesmo? e parece que, conforme o tempo passa, mais e mais razões eu tenho prá rezar... Engraçado, né? Beijo e obrigada pelo comentário, querida Cloé.

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  3. A gentileza às vezes aflora onde menos a gente espera!
    dirmasilva@yahoo.com.br

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    1. E surpreende e desarma a gente. Bom demais essas surpresas da vida. Beijo e obrigada.

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  4. Oi Rosa. Que lindo post. Nos faz refletir sobre muitas atitudes que tomamos e muitas vezes nem percebemos. Que bom quando conseguimos perceber nossas fraquezas. Bom resto de semana. Bjs.

    Jussara
    http://caminhandonaarte.blogspot.com.br

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    1. Prá você também, querida Jussara. Obrigada pela gentileza de sempre passar aqui no meu cantinho e saiba que eu também sempre acho um tempinho de passar no teu. Beijo.

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  5. Rosa, quando li seu post, me imaginei fazendo diversos comentários (construtivos, claro). Na hora de digitá-los, eles simplismente sumiram de minha mente. Então me veio a clareza de que não deveria comentar nada, e sim agradecê-la, pois é em pequenos atos como o seu, de compartilhar conosco o seu dia-a-dia, as suas tristezas, alegrias e até mesmo seu pré-julgamento em relação à profissão dessas moças, você nos ensina a sermos mais paciente, amigos e compreensivos. Obrigada, simplismente... OBRIGADA!!!!!!!

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    1. Eu é que agradeço a oportunidade de aprender e de partilhar esse "tapa com luvas de pelica" que a vida me deu... Adorei você ter gostado de vivenciar um pouco dessa história comigo. Beijo.

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  6. Rosa, veja a coincidência: estava digitando um comentário em seu lindo post. Daí vi que chegou uma mensagem em meu e-mail. Minimizei o seu comentário para ler o e-mail e qual não foi a surpresa? o comentário era seu!!!! Ou seja, estamos compartilhando do mesmo momento, na mesma tela, você aí na "minha" cidade que amo de coração, falando das árvores da bela praça, das moças de vida "fácil", fiquei tentando imaginar que lugar era aquele, que praça, Jardim Europa, Alto de Lapa, Higienópolis, Indianópolis, Ibirapuera? Mas nada disso interessa, não é? Você falava da gentileza da moça de vestido vermelho...
    Beijos

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    1. Isso é que eu chamo conexão, Helena! Vira e mexe a gente tá caminhando juntas... Beijo!

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  7. Olá Rosa! vc já sabe que adoro passar por aqui, ver seus trabalhos e ler seus posts. Hoje eu tive a certeza da idéia que eu tenho de vc. Uma pessoa boa, de bem com a vida, dedicada a família, com humildade e coragem para avaliar seu modo de pensar e expô-los publicamente.Vc é D+, se morássemos mais perto seria um enorme prazer tê-la como amiga de corpo presente. Um grande bj amiga virtual.

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    1. Ô, Célia, o quanto eu ia gostar... Amigas de "corpo presente" tenho muito poucas, sou tão caseira, enclausurada mesmo... Mas vale mesmo é a conexão de pensamentos, a irmandade - essa é que é a coisa mais importante: às vezes quem está presente não nos entende... Beijo e fica com Deus. Obrigada mais uma vez.

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  8. Bom dia, isso é a bondade de Deus para conosco, mandando recadinhos onde a gente menos espera.
    Bj
    Sueli

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    1. Senti exatamente isso: Deus falando comigo através daquele acontecimento tão banal e me dando uma grande lição de vida! Beijão, Sueli e obrigada.

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  9. E quando, finalmente, nos colocarmos no lugar do outro, em vez de julgá-lo, seremos mais humanos.
    Denise

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    1. Isso mesmo: no final,a gente só sabe do caminho que o outro se calçarmos seus sapatos, andarmos pelas mesmas ruas, tropeçarmos nas mesmas pedras... Ou abrirmos o coração e, através da empatia, sentirmos um pouco da sua história... Beijão, Denise, e obrigada.

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  10. Lindo isso. E com certeza serve de alguma forma como carapuça para todos nós, que, míseros seres humanos, achamo-nos sempre no divino direito de estranhar e julgar atos de outros, contrários ao que consideramos correto.

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    1. E,infelizmente, a gente não escapa de fazer isso, de vez em quando... Por mais que a gente tente fazer o certo, caminhar reto, volta e meia a gente (falo principalmente por mim) tropeça num preconceito, num modo errado de enxergar a vida,o mundo, os outros. Que Deus nos inspire, nos ajude, não é mesmo? Beijão e obrigada.

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  11. É verdade, muitas vezes não sabemos nada sobre a vida da pessoa e julgamos os seus atos...pura covardia...somente cada qual sabe a dor e a beleza de ser o que é...Obrigada.

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    1. Isso mesmo, cara Astride... Até tem um ditado que é assim: "Cada um é que sabe onde lhe aperta o calo". Mas é prá isso que a gente nasce, acredito eu: prá aprender a lidar com nossos calos, respeitar a dor dos calos dos outros e continuar a caminhada... Beijos e obrigada.

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