sexta-feira, 23 de agosto de 2013

As feridas que o tempo cura...

Eu me lembro quando ela chegou: era Natal e o dono da padaria perto de casa, "seu" Alcides, deu ela prá gente. Era bem assim... As fotos que eu tinha, num vazamento que teve antes da gente trocar todo o telhado de casa, se perderam numa infiltração, junto com a cômoda onde ficavam guardadas...


Se chamava Quel - de Raquel Welch, nome que o "Marildo" resolveu dar (porque ela era mais linda que todas as Bond Girls juntas...). A gente chamava de Quel mesmo, porque assim ninguém ia achar ruim dela ter nome de gente...

Ficou enorme - seu latido parecia um trovão, ninguém chegava nem perto da nossa porta. Mas era um doce... 

Um dia o gato da vizinha, pirraçando as minhas três cachorras no quintal (como só os gatos sabem pirraçar...) se desequilibrou e caiu no meu jardim... Eu tinha uma cocker que era feroz - teria estraçalhado o bichinho - mas a Quel tocou o gato prá dentro da casa dela (que era enorme, feita de tijolos e telhas de verdade... )- e ficou na frente, protegendo, defendendo ela das outras duas. A vizinha, tendo testemunhado a queda do gato e escutando a barulheira, veio até meu portão, correndo, apavorada e ficou de boca aberta ao ver a atitude da minha linda Quel... 

Era uma mãezona prás outras cachorras, nunca brigando por nada - mesmo sendo maior e podendo ficar com tudo prá ela, sempre era a última a comer, calma e sossegada com seu tamanhão todo...

Uma vez eu adotei uma viralatinha doente, que achei quando fui visitar minha sogra no cemitério: uma coisinha raquítica, cheia de feridas, urinando pus, os olhos fechados cheios de crostas, semi-morta. Foi tratada, mas nunca foi muito sadia. Ficou cega e tinha convulsões de tempos em tempos... Quando uma crise se aproximava ela ficava inquieta, andando a esmo pelo quintal e a Quel sabia - e me chamava, de um jeito que eu não sei explicar como era, pois o latido parecia ter o meu nome embutido no som... Quando eu ia ver lá estava a Quel, debruçada sobre a pobrezinha, segurando firme com as patas até a convulsão acabar - pois, se fosse deixada solta, começava a correr sem enxergar e batia a cabeça no muro!

Quando eu estava triste - a Quel sabia! Me chamava e lá ia eu, quase chorando com as ideias tristes na cabeça, pensando que ela estava com fome ou algo assim, levava algo na mão prá dar prá ela e ela empurrava com o focinho, deixava cair no chão, pousava a cabeça na minha mão e me olhava, com aqueles olhos de âmbar - que pareciam ler a minha alma e dizer que tudo ia ficar bem...

Jamais no mundo vai existir um animal assim, igual à minha Quel... 

Quase nove anos atrás teve câncer de mama, que se desenvolveu de modo assustador e não respondeu a tratamento. Durante o pior período ela roía com os dentes a tinta e a argamassa de uma das paredes do quintal - nenhum veterinário soube me explicar porquê... Devia sofrer tanto... Não gemia, não incomodava ninguém, só definhou em silêncio com seus lindos e enormes olhos tristes...

Até hoje a parede, naquele canto, está do mesmo jeito - eu não deixo cobrir, nem pintar. Eu gosto de lembrar e chorar, de vez em quando, a saudades da minha querida - acho que sofrer também faz parte de amar.

Foi enterrada no meu jardim, debaixo de um hibisco vermelho cor-de-sangue que eu tinha - e que também morreu, talvez de tristeza...

Eu adoeci. Um pedaço do coração da gente fica faltando, nada mais é do mesmo jeito...

Prometi prá mim mesma que nunca mais ia me apegar daquele jeito, que nunca mais ia ter um bichinho do meu lado, prá amar e perder daquela maneira absurda.

Uma noite, sonhei que meu marido me trazia um rato - já que eu me negava a ter outro cachorro. De repente ele me acorda - era domingo, ele acorda bem cedo porque faz serviço voluntário, e sai sozinho de casa - e me mostra, na palma de sua mão, a cachorrinha mais pequenininha que eu já tinha visto! Parecia um camundongo, zoiuda e orelhuda... As crianças já estavam todas alvoroçadas, malucas com a bichinha, mas eu - rabugenta e escaldada - falei que não queria, que levasse de volta (malvada toda vida...).

Mas, vivemos numa democracia e meu voto foi vencido pelo da maioria - e Bendito Seja Deus que fez acontecer assim!

Me olha bem nos olhos - dizem que cachorros não gostam de fazer isso... - e também, como minha Quel, os tem lindos e cor de âmbar...

Precisa de mim, como uma filhinha querida...

Presta atenção em tudo o que se fala...

Está sempre pronta a fazer companhia...

Sorri...

Não tem tempo ruim...

Quando brinca de morder, só faz cosquinha...

É dengosa como um gato...

Se esparrama no chão, quando tá sol, como "batatinha quando nasce"...

É também uma chantagista emocional - quando apronta, sabe fazer as poses mais sedutoras do mundo!

Adora roupa nova - pensa que é gente...

É minha bebê caçula...

Tem uma mania: adora ficar dentro da roupa da gente... Essa barriga onde ela tá deitada é minha: ela sobe no colo e dá patadinhas na roupa da gente e só sossega quando a gente levanta a blusa e ela entra dentro (acho que ela pensa que é filhote de canguru...). E nessas horas, às vezes, ela faz pum e eu me pergunto "Como é que um bichinho desse tamanhinho consegue produzir uma nuvem tóxica dessa magnitude?!"!!!

É amorosa, viciada em beijos... Prá dormir precisa de uma pessoa prá ela se aconchegar...

O tempo curou a saudade da minha Quel? Claro que não... Curou a ferida, mas sobrou a cicatriz, que ainda dói na mudança de tempo, na mudança da lua, do virar da folhinha... Mesmo agora, tantos anos depois, eu ainda choro quando lembro - chorei enquanto escrevi esta postagem.

Mas sempre me lembro de agradecer a Deus a oportunidade de ter tido essa companheira maravilhosa, cujo lugar em meu coração nunca será preenchido.

E eu acho que o coração da gente é feito prá ser assim: um território sem cerca nem delimitação de espécie alguma, que aumenta de tamanho a cada acréscimo da misericórdia divina em nossa vida, se ampliando ao infinito.

É por isso que vale a pena viver - por mais que a dor aconteça, por pior que uma situação fique, nada dura prá sempre e sempre tem o dia de amanhã, e a semana que vem, e o passar dos anos... Vale a pena esperar o que vai vir e se surpreender.

E eu tenho uma teoria: os anjos do céu estavam precisando de um cão guia, prá quando forem no purgatório resgatar algumas almas - Deus jamais ia desperdiçar uma criaturinha tão boa quanto minha Quel...

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17 comentários:

  1. que lindo....chorei de emoção.....que lindo. Também tenho um cão...Piloto ....cujos olhos dizem que me ama......e eu a ele...
    obrigada por esta linda mensagem de amor....de um cão para o seu dono...e de um dono para o seu cão...

    abraços de MF

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    1. Obrigada, querida Filomena, você tem uma alma muito doce, minha amiga.

      Beijos.

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  2. Emocionante história! Também estou chorando, porque tenho um amor em casa, um amor de quatro patinhas....

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    1. Então, Edivana querida, ama de paixão essa criaturinha linda que Deus colocou na tua vida, prá te fazer ainda mais feliz.

      Beijos!

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  3. Oi Rosa, que história linda! Eu também amo todos os meus bichinhos assim, e a sua pequetita é linda...
    Tem dois sabiás que moram no meu consultório, eles não saem do meu jardim de inverno por nada ( ponho comidinha e bacia para banho todo o dia)... Às vezes voam um pouco até o telhado da vizinha mas voltam logo batendo no vidro da sala para que eu saiba que voltaram... Meus pacientes adoram!
    Amo minha cachorrinha Brisa, de paixão, mas a ligação de alma que tenho com a minha gata Bianca (que veio da rua toda ferida e doente) é demais, me senti no seu lugar em relação à Quel. A Bianca também lê meus pensamentos. E adora um colo...
    Rosa querida, a separação dos seres que amamos é inevitável, pois tudo aqui é transitório, mas que privilégio é poder amar e ser amada dessa maneira!
    Bjs querida e ótimo final de semana

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    1. Sabiás! Adoro a forma como eles cantarolam - no meu pé de manga tinha uma fazendo ninho, um tempo atrás, cantava o tempo todo (uma benção!).

      Esses amiguinhos que nos chegam encomendados por Deus, precisando tanto dos nossos cuidados, conseguem fazer aflorar o melhor de nós, não é mesmo?

      Aproveite muito a companhia de todos eles, Doutora querida, porque são presentes da vida!

      Beijos e uma linda semana!

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  4. Ahhh Rosa, quando vi a 1ª foto logo pensei: eu acho que vou chorar...e claro que chorei, de tristeza, de emoção, de amor. Já perdi alguns filhinhos também, nenhum tão inteligente como a sua Quel, mas todos eles únicos, em suas qualidades e defeitos, que eu amava mesmo assim. As lágrimas ainda vêem quando me lembro da última, há 4 anos atrás, uma poodle branquiiiinha, braviiinha, que me dava beijinhos quando eu pedia. Mas eu falo que a melhor maneira de diminuir um pouco essa tristeza é pegando outro, não é mesmo?! A gente não esquece, mas que ajuda, ajuda!
    E essa Pequena é a coisa mais fofa do mundo, hein! Olha só que poses ela faz prás fotos, uma linda!!
    beijos

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    1. Cada um de nós tem, pelo menos, um companheirinho trazido à nossa vida pela bondade de Deus, prá nos fazer feliz, não é mesmo? Tenho pena das pessoas que enxerga neles apenas animais, sem sentimentos - eles tem personalidade, tem sensibilidade prá nos dar conforto quando mais precisamos, nos dar amor em troca de nada...

      E a minha Pequena é assim: uma coisinha pequena, de perninhas finas, que me faz feliz só por estar do meu lado.

      Sei que com você é exatamente assim...

      Beijos e uma linda semana, querida Luci.

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  5. Olá Rosa, eu também já perdi muitos cães na vida,e eu os amava como filhos mesmo...de carregar no colo e dormir abraçada com eles. Quem acha que eles não entendem e não falam com os olhos nunca foi tão próxima deles pra observar. Mantenha suas lembranças mas abra os braços e o coração para os novos filhos que chegam precisando dos nossos cuidados e amor. Essa coisinha que Deus colocou no seu colo agora é linda...Dá vontade de abraçar e beijar.E com esses olhos, quem não se apaixona??

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    1. Ah, Celia querida - minha pequena é abraçada e beijada quase 24 horas por dia! Acho até que ela é viciada em beijos e chamegos, dorme sempre enroscada em alguém da família...

      Nossa vida é muito mais longa que a deles - assim Deus quis, prá que a gente aproveitasse a companhia deles ao máximo, enquanto dura.

      Beijos e uma linda semana!

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  6. Fui lá ler a tua homenagem à Greta Garbo (também uma artista "de cinema", como a minha Raquel Welch...). Me emocionei por saber exatamente o que o teu coração sente, minha amiga...

    Que Deus dê uma longa vida aos teus companheirinhos de hoje, com muita saúde prá eles e prá você também, para que possam seguir juntos, sendo felizes com as bençãos Dele.

    Beijos!

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  7. Que delícia de lembrança. Isso é viver Rosa. É amar e sentir a dor da perda. Quanto mais encantador e bom for um ser mais ele trará saudades. Se assim for quando um dia partimos será a confirmação de que nossa existência valeu à pena, fez jus ao seu propósito.
    Tenho um gatinho em casa (“zoiodinho da mamãe”) que também é assim. Consegue se conectar à minha alma. Foi escolhido por minha filha que queria uma fêmea e “ele”, da ninhada toda, de gatos pretos, era o mais cheio de “tetas”. Pode? Rsrs
    Bjs

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    1. Há, há, há! Cheio de "tetas"! Que demais o jeito que a natureza achou prá empurrar ele prá vocês!!!

      Também amo gatinhos - eu tinha um que dormia na cama comigo, quando eu era menina... Adorava comer batata cruz...

      Beijos!

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  8. Rosa, que história linda, sensível e emocionante para quem lê.

    Bjs

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    1. Obrigada, Fatinha querida. Fico feliz que você gostou.

      Beijos!

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  9. Que linda história Rosa! Eu não sei bem o que é ter um relacionamento assim com animais, nunca tive nenhum de estimação. Mas ontem vi no jornal uma matéria sobre cães de companhia que estavam sendo treinados para pessoas deficientes - muito interessante e emocionante como a tua experiência.
    Mas vc precisava ver a gabi e o tuca aqui imitando as poses da sua bebê caçula...

    bjo bem grande

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    1. Isso eu queria ver - teus bebês imitando minha cachorrinha...

      Beijos e obrigada, Elisana querida!

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