quarta-feira, 22 de junho de 2016

Tentação


Como da vez passada eu falei do meu quarto novo, desta vez resolvi contar uma história que já há tempos ando ensaiando compartilhar - uma história mais densa, repleta de amor e dificuldades.


Já contei que, quando me casei, eu e o "Marildo" (cujo nome não me é permitido contar, então eu o chamo desse jeito na brincadeira...) nem nos importávamos em morar debaixo da ponte - contanto que estivéssemos juntos. 

Loucuras de gente jovem, cheios de sonhos e nenhum bom senso - ainda bem que nossos filhos tem mais juízo, graças a Deus...

Morávamos num quarto cedido por bondade de minha sogra - aquele quarto era nosso mundinho. Uma cama, um guarda roupas e só. Como era aconchegante aquele quarto!!! O que faltava em espaço e mobília tinha de sobra em carinho e cumplicidade. Meses depois tiramos da cartola um espaço prá um bercinho, prá nossa linda Lolinha...

Com o passar do tempo e a chegada da Naninha e, logo em seguida, a "encomenda" da barriga do meu Herkinho, resolvemos arranjar um lugar só nosso e alugamos uma casinha, bem perto da minha mãe. Foi muito bom, eu adorava aquela casa, adorava a vizinhança - tinha umas crianças muito boas que vinham brincar com meus filhos, tinha a vizinha de frente que era muito boazinha comigo, a saudosa Dona Gemma... 

Mas era aquela coisa: a gente não podia pregar um prego na parede sem pedir permissão prá dona. Todos os consertos da casa saíam por nossa conta, "fazendo filhos na mulher dos outros", como se diz por aí. E o dinheiro do aluguel vai e não volta mais, nada fica sendo nosso...

Então, depois de muito batalhar, muito economizar, ajuntamos um dinheirinho prá dar de entrada num telhadinho que fosse nosso - e fomos à procura do tal telhadinho...

Só que nosso dinheiro era tão pequeno, na verdade tão miserável, que todo lugar que a gente ia não dava certo. 

Visitei uma casa na rua Comendador Cantinho que era um sonho - só um portãozinho dando prá rua, a casa em si ficava bem retirada, escondidinha no meio da quadra, toda cercada de árvores, com banquinho de madeira no quintal prá eu sentar com as crianças (até hoje recordo dela com saudade, sonhando acordada...)... 

Visitei outras casas, mais no nosso poder aquisitivo, que só estavam em pé por descuido da mãe natureza - assoalhos em petição de miséria, roídos de ratos... Meus olhos ficavam cheios de estrelinhas, o tic tac dentro da minha cabeça querendo dar partida em como eu ia resolver os problemas, tapar os buracos, remendar os rachos...

Uma vez fomos num apartamento minúsculo próximo de um córrego sujo e fedorento, menor que uma caixa de fósforos...

Quando já tínhamos desanimado, julgando que havíamos de morar de aluguel por muito tempo ainda, surgiu a oferta da casa em que moramos hoje: os donos, um casal de velhinhos que morava bem pertinho da minha mãe, queriam ir embora pro interior morar perto dos filhos e estavam vendendo a casa pessoalmente, sem a intervenção de imobiliária!

Melhor ainda: o preço estava muito mais barato do que as outras casas da região - cerca de 1/3 mais em conta. Tipo: se uma casa daquele tamanho custava 12 mil, naquela eles estavam pedindo apenas 8...

Minha mãe foi conversar com eles e ambos, muito bondosos e já moradores do Reino dos Céus atualmente, aceitaram nossa poupancinha como entrada e parcelaram o restante em dez vezes sem juros.

Demos o passo maior do que a perna - novamente. A primeira vez foi casando sem nenhum preparo e agora pulando de cabeça numa dívida daquele tamanho! Nem fizemos as contas direito, somando nossos salários e gastos - simplesmente assumimos o risco e pronto!

E passado o encanto da mudança, de ajeitar tudo com a nossa cara, veio o frio na barriga e o aperto no cinto: tinha mês que só sobravam cem cruzeiros prá comprar comida! Tava um sufôco - pior não podia estar (eu pensava...).

Então, uma bela tarde, o "Marildo" não chegou em casa. Não existia celular (ou, se existia, eram aqueles tijolões que só rico podia bancar...). Eu desesperada escondendo das crianças o desespero, respondendo que tava tudo bem quando elas perguntavam pelo pai... Anoiteceu, dei a jantinha delas, assistimos TV, sentiram soninho...

Coloquei os três na cama, contei histórias - sempre com o pensamento longe, o coração apertado no peito, uma nuvem negra de tempestade sobre a minha cabeça...

As crianças adormeceram e eu peguei a lista telefônica e comecei a fazer ligações: pros hospitais da região, prá delegacia - até pro IML eu liguei...

Posicionei uma cadeira em frente à janela da copa, apaguei a luz prá não chamar a atenção de quem passasse pela rua e ali fiquei, hora após hora, rezando e chorando, chorando e rezando...

Cinco e pouco da madrugada o homem me chegou com seu chevetinho bege todo capenga, parou na entrada da garagem e desceu prá abrir o portão...

Eu abri a porta como num passe de mágica, duzentas mãos girando a chave, corri feito uma lebre até o abraço dele, repleta de saudade, de amor, de perguntas! Ele me acalmou, disse que quando entrasse me contava tudo e eu ajudei a fechar o portão.

Lá dentro reparei como ele estava abatido - e nessa hora me bateu uma raiva e, mesmo face os olhos fundos dele, por falta de dormir, eu pensei: "Filho da mãe, custava ter ligado prá casa?" quando ele pareceu ter lido meus pensamentos e começou:

-"Desculpa, benzão, que eu não liguei... Não tive oportunidade..." e foi me contando tudo.

Não sei se eu já comentei, mas o "Marildo" trabalha pro Ministério da Fazenda, mais especificamente na Receita Federal. Naquele dia anterior ele havia sido procurado pelo advogado de um figurão da política paulista, a fim de tirar algumas dúvidas do Imposto de Renda de seu cliente. O advogado disse que era apenas um de uma equipe e que, devido aos esclarecimentos que meu marido prestasse, seria bem remunerado - e meu patrãozinho, sem desconfiar de nada, foi junto do tal advogado no final do expediente...

O homem o levou até a mansão do político (uma delas) que ficava no interior do Estado de São Paulo. Lá chegando o advogado fez questão de frisar que tudo o que era dourado na casa - as maçanetas das portas, as torneiras e todos os metais do banheiro, não eram apenas dourados: eram banhados a ouro. Chão de mármore rosa... Um espetáculo hollywoodiano de primeira.

Bom, a equipe de advogados foi que conversou com meu marido - o figurão nem deu as caras. O trabalho do meu marido seria apenas um: "limpar" o imposto de renda do tal milionário, prá ele parecer honesto e menos rico. Maquiar a posse de tantos imóveis, de tantos carros, de tantas contas bancárias... E para isso meu marido seria muito bem remunerado...

-"Benzão" - ele me disse - "o advogado me falou que se eu topar é só dar uma ligada prá ele, que antes do sol nascer um motoboy vai estar na nossa porta com uma maleta de dinheiro. Limpinho. Dinheiro que vai dar prá gente quitar esta casa e ainda comprar mais três, uma prá cada filho..."

Em seus olhos fundos e ardendo de sono e cansaço eu enxerguei a tentação de um bom homem - porque os homens bons também são tentados pela vida, volta e meia. 

Lá estávamos nós passando maus bocados, em vias de não poder pagar a casa e perder tudo o que já havíamos pago, sem dinheiro nem prá fazer uma feira direito e eu senti, pela voz dele, que a tentação era muito grande...

-"O que a gente faz, benzão? Eu aceito?

Eu não tive a menor sombra de dúvida, a resposta estava o tempo todo ali, no meu coração:

-"Você não vai ligar prá ninguém, nunca na vida!!! Fazer isso é igual vender a alma pro diabo, ela nunca mais vai ser sua... 

Olha, se a gente conseguir pagar a casa passando fome (contanto que a gente consiga alimentar as crianças) a gente segue em frente. Se a gente não conseguir pagar a casa, a gente perde ela, fazer o quê, não era prá ser nossa. A gente volta a morar na casa da tua mãe, vai morar na casa da minha, vai morar onde Deus permitir que a gente more.

Sabe, eu adoro que você deita a cabeça no travesseiro e dorme pesado a noite toda, aquele sono de gente que trabalha e não tem o rabo preso com a vida. Mesmo sem dinheiro, você dorme de consciência tranquila e eu quero que continue assim."

E ele - não sei se pelo cansaço, se pela pressão que a tentação estava exercendo nele, desmoronou no choro - coisa que só vi ele fazer muito raramente, uma vez numa briga feia que a gente teve (por causa dos ciúmes dele...) e outra vez quando a mãe dele morreu...

Me abraçou e chorou e agradeceu:

-"Obrigada, benzão, por pensar assim!!! Eu fiz bem de dizer pros advogados que precisava conversar com a minha mulher... Se eu tivesse decidido por mim mesmo, pensando no teu bem e no bem estar das crianças, eu era capaz de ter aceitado!!! Obrigada, meu amor...".

E ali estava um homem capaz de tudo por amor - capaz de cair, sim... mas principalmente capaz de renunciar a uma tentação tão grande em nome desse amor...

Aquele político conseguiu resolver seus "pepinos" com a ajuda de outro alguém que não meu marido - alguém que deve ter noites de sono atormentadas, com certeza, pois fazer coisa errada sempre cobra seu preço. Ainda vive da política (eu até poderia dizer o nome dele, mas o "disgranhento" está cada vez mais poderoso no cenário político do Brasil - então, para o bem da minha família, acho melhor ficar de boca fechada... além do mais, o que se planta, se colhe - e ele não vai viver prá sempre, o Pai do Céu tá esperando todos nós no fim da estrada...).

Ainda naquela semana um professor que deu aula prá mim (e pro meu "Marildo") na faculdade encontrou com meu marido casualmente e disse que a faculdade estava precisando de professores - perguntou se eu e ele não queríamos ir dar aula lá (modéstia à parte eu fui a melhor aluna da minha turma - mas deixei isso por conta do meu marido, que aceitou e acabou virando mestre). 

Começou a entrar uma graninha boa e abençoada na nossa vida.

Mais um tempinho e abriu-se a possibilidade de se fazer hora-extra na Previdência Social e com a ajuda da minha chefe, ao invés de ficar lá horas a mais trabalhando, longe das crianças, eu pude trazer caixas e mais caixas de processos prá analisar, calcular valores de benefícios, comandar pagamentos e despachar - em casa. Depois das 6 horas corridas de trabalho, de todo o serviço doméstico e do cuidado com a família, enquanto todos dormiam eu me sentava na mesa da cozinha, trabalhando madrugada adentro.

Quitamos a casa, com a graça de Deus.

E com a graça Dele atravessamos a tempestade e sobrevivemos à tentação.

Prá mim, neste caso, confesso que foi fácil - dinheiro não me tenta. Acho que foi Paulo de Tarso quem disse que "Cada um é tentado quando atraído e enganado pela própria concupiscência" e isso nada mais é do que dizer que a tentação surge sob inúmeras roupagens, dependendo de cada alma...

Espero que nunca me apareça uma mesa repleta de comida farta de graça - sou tentada por comida boa e grátis...

Acho que é por isso que Deus nos dá companheiros de jornada - sejam eles nossos pais, nossos irmãos, amigos, cônjuges ou filhos: onde um tende ser tentado e talvez vir a falhar, o outro vem e dá forças, não é mesmo? 

Jesus, quando tentado, saiu vitorioso sozinho - mas ele era Jesus, afinal de contas... 

Nós, pequenos seres humanos, às vezes nos escoramos uns nos outros prá não cairmos no precipício.

E seguimos caminhando.

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8 comentários:

  1. Rosinha, todos somos tentados, todos os dias, que bom o Marildo ter do seu lado uma mulher como você, bjs amiga

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  2. Rosa passei aqui pra lhe ver e dar uma dica que você vai gostar : A Marlene Mukai publicou moldes de pantufas. Sei que vc vai gostar. Encontrei esta história linda e cheia de ensinamentos. Que Deus lhe abençoe grandemente. É por isto e por outras mais que há muita prosperidade em sua vida e pode crer que haverá na vida dos seus filhos. Beijos, Suzy Mendonça

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Querida Rosa, hoje li mais uma prova de que Deus sempre acompanha nossos passos e também nos abençoa de acordo com a nossa concupiscência, pois, sabendo o quanto vocês são esforçados, os abençoou com mais trabalho para que tudo fosse quitado. Por isso não canso de repetir que Deus é bom e que ele nunca nos desampara. Também já passei por muita dificuldade, mas Ele sempre demonstrou estar comigo e sempre apareceu de um jeito especial na minha vida. Quando li sua postagem, relembrei de muitas vezes que Ele me socorreu. Um abraço no seu coração e felicidades. Silvana.

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    1. Rosinha, minha querida Rosinha, diz-se que todo o homem tem o seu preço. Eu sabia, sempre soube, que o vosso, como casal, era elevadíssimo, praticamente inatingível. Que bom não ter cedido apesar da situação angustiante, com 3 filhos pequeninos.
      A sensação de liberdade é única, bem como estar de bem com a sua consciência.
      A tentação foi compreensivelmente grande, num mundo onde grassa a corrupção.
      Depois, tudo acabou por se ajeitar - justiça divina, lei das probabilidades, que sei eu?
      Como sempre, adorei a tua prosa viva,lógica, bem encadeada e,acima de tudo, sincera.
      És uma linda!
      Beijinhos da Nina

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  5. Nossa Rosa, quanta honestidade! Isso é artigo de luxo hoje em dia! Não exitse nada igual à paz de deitar a cabeça no travesseiro sabendo que não fez nada contra seus valores...
    E a vida nunca nos deixa na mão, não é?
    Espero que esteja melhor.
    Bjs

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  6. Rosa

    Estou numa correria (trabalho, casa, família, casamento da filha)mas vim aqui rapidinho para ver as novidades no seu blog.
    Bela história, importante exemplo. Apesar que considero a honestidade como uma atitude obrigatória e nem tanto como virtude porém nos dias de hoje onde pessoas se deixam vender pela corrupção, ganância, egoísmo e tais afins que ser honesto passou a ser considerado uma virtude, não é mesmo?

    Volto quando puder.
    Bjs e ótima semana.

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  7. A liberdade é sempre o melhor caminho e para sempre! A vida tem mostrado isso, todos os dias, principalmente no nosso Brasil.
    Assim é, tudo correndo em perfeita harmonia, quando um casal, sócios, pares, amigos, andam juntos, de maneira compartilhada.
    Um bela história Rosa, fiquei feliz de te ver por lá, no meu canto, sempre bem-vinda.
    Beijos querida Rosinha!

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