quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Mãos ocupadas


Meu avô veio para o Brasil sem planejar nada - ele nem mesmo sonhava em cruzar o oceano. 


Vivia em paz com a mãe viúva e com as irmãs e, apesar da pobreza, ele era muito feliz. Diga-se de passagem que meu avô sempre foi um homem em paz e sorridente, o que lhe granjeava simpatia por parte de todos os que o conheciam - ou quase todos...

Trabalhando na roça durante a semana toda, do amanhecer até o sol se por, meu avô cruzava de vez em quando a fronteira entre Portugal e a Espanha prá ir bailar - era um dançarino de primeira. 

E num desses bailes ele arranjou um inimigo mortal - o seu jeito simpático havia cativado o coração da noiva do outro rapaz durante uma dança. Daí foi um Deus-nos-acuda: jurado de morte, meu avô (sem dinheiro...) enfiou-se de clandestino em um navio que vinha pro Brasil e, aqui chegando, nem passou pela Imigração. Arranjou-se com os tomadores de empregados e se foi pro interior de São Paulo, prá trabalhar nas lavouras de café - mas isso é uma outra história, prá uma outra hora... 

Desse tempo até minha avó entrar na vida dele aconteceu uma pá de coisas, mas o que importa é que ele acabou juntando um pé de meia e achou uma mulher prá constituir uma família...

Minha avó estava morando com ele (sem se casarem...) havia bem pouco tempo, quando esta história aconteceu...

Antes morando em um cômodo alugado, meu avô rapidamente se apressou a construir uma casinha prá que ele, minha avó e o filhinho pequeno dela pudessem viver como uma família de verdade - e isso foi feito relativamente rápido, face o tamanho monstruoso dos tijolos daquele tempo:  eram maiores que caixas grandes de sapato masculino e, de argamassa prá fazer a liga e erguer as paredes, usava-se barro mesmo... As portas se faziam com tábuas de madeira...

Não sei como minha avó não engravidou de imediato, mesmo sendo católica fervorosa - talvez tenha sido Deus quem segurou os bebês no céu, enquanto eles arrumavam a vida. O fato é que meu Tio Antonio já estava com quase quatro anos de idade...

Por essa época meu avô trabalhava prá FEPASA construindo os trilhos dos trens - era forte como um touro e ajudava a instalar os dormentes de madeira no chão. Prá isso ele chegava a passar um tempo longe dela, que entre os afazeres da casa e os cuidados com o menino arranjou, por si mesma, um jeito de também ganhar dinheiro: plantar e vender verduras. Passava o dia a remexer a terra, semear, regar, enxertar mudas e logo tinha uma horta bem variada, repleta de couves, espinafres, abóboras, tomates e repolhos, entre outras...

Ela mesma construiu um carrinho de madeira com divisórias nas quais arrumava as verduras e hortaliças já limpas e lustrosas (pois sabia que tudo que se come começa pelos olhos...), usando rodas de carroça e percorria as ruas do bairro junto do menino, a gritar "Verdureira!" todo santo dia, pouco depois do dia amanhecer. Meu tio Antonio ia com ela - e acho que daí pegou o jeito pros negócios...

Bom, meu avô voltava, meu avô ia, sempre que o dinheiro sobrava ele lhe trazia um presente bonito, um tecido, uma jóia, um par de sapatos - ela calçava 39, igual minha Naninha, era muito alta e bonita (também como ela...). Podiam ser o casal mais feliz da terra, se não fosse...

É incrível o ser humano: tanta coisa prá se ocupar na própria vida, tanta coisa prá fazer, prá construir, conquistar - mas ele prefere cuidar da vida alheia. Faço ideia hoje em dia: eu tenho máquina de lavar, ferro elétrico, fogão à gás, forno de microondas - e mesmo assim o tempo me escapa, nunca consigo fazer tudo aquilo a que me proponho. Tanta coisa bacana passa na televisão, tanto seriado, filme... Tanto livro que eu quero ler... Me espanta quanta gente fica parada na porta de casa, jogando conversa fora (porque existe "conversar" e existe "jogar conversa fora", coisas bem diferentes...). 

Outro dia uma mulher da minha rua se queixou (em alto e bom tom) pro homem que aparece uma vez por semana e pára bem na minha porta, prá vender produtos de limpeza, que eu não varria minha calçada todo dia e que, com a chuva, as folhas da minha árvore iam parar na porta dela. Disse bem assim: "a vagabunda desta casa deixa a calçada sem varrer": eu estava lavando roupa e escutei, da área de serviço; fiquei olhando, sem saber o que dizer... Naquela semana eu estava tão ruim da coluna que estava me movimentando dentro de casa usando bengala...

Assim como hoje, também era naquele tempo. Acho que ainda era pior, imagina só: sem televisão, nem internet prá distrair a cabeça. a maioria do povo sendo analfabeto... Distração era falar da vida alheia - e meus avós não serem casados eram um prato cheio praquele povo faminto...

Um belo dia, lá estava minha avó de joelhos remexendo a horta e escuta umas palmas no portão: era um guarda da delegacia, dizendo que tinham feito uma queixa contra ela e que ela tinha que comparecer prá prestar esclarecimentos pro delegado de polícia...

Meu avô estava viajando a trabalho e, sem poder contar com a mãe ou os irmãos lá se foi minha avó, levando pela mão o filho pequeno, depois de um banho tomado - nada de aparecer perante a autoridade sem estar vestida de acordo...

Ao chegar na delegacia minha avó deu de cara com uma das vizinhas - uma mulher desocupada da pior espécie, que passava os dias indo de uma cozinha à outra, levando e trazendo fofocas - mas que não tinha entrada livre na cozinha dela.

A mulher estava com a barriga toda molhada - como se tivesse acabado de sair do tanque de lavar roupa... O cabelo desgrenhado, como se tivesse passado a maior parte da manhã a correr de um lado pro outro, toda atarefada... Minha avó bem sabia que a tal mulher era uma preguiçosa, avessa a qualquer esforço, que sempre andava de roupa encardida e cujo único músculo do corpo que era exercitado era o da língua e, por isso, nem a cumprimentou.

Furiosa, a mulher disse pro delegado:

-"É essa mulher mesmo, seu delegado! Essa puta (me desculpem o uso dessa palavra...)! Mora lá perto da minha casa, a virar a cabeça de todos os homens de bem! Veja bem o senhor como ela se veste toda arrumada - certamente às custas do dinheiro que tira deles, até mesmo do meu marido, vá se saber! Eu não, seu delegado... Nem tempo de arrumar os cabelos eu tenho, aqui estou eu toda molhada de lavar roupas e trabalhar como um burro de carga, enquanto essa aí vive no bem-bom! Prenda essa mulher da vida, seu delegado! Essa vagabunda!!!"

Minha avó escutou tudo com o coração na mão - lhe doía muito não ser casada com meu avô (até o fim de seus dias ela estava crente que iria pro inferno por "viver em pecado"; não podiam se casar, pois ela era largada do marido...). 

Ali estava ela, vestindo um bonito taiêr (não sei bem como se escreve, mas é aquele conjunto de saia e paletó feminino, bem acinturado...), uma mulher muito bonita, com grandes e doces olhos castanhos muito tristes, mais uma vez enfrentando a vida sozinha...

Mas pensando no menino - que ali estava com ela - e pensando em meu avô, a quem ela amava tanto, minha avó respirou fundo e disse:

-"Se eu me visto bem, senhor delegado, é porque sei costurar. O tecido desta minha roupa, acredite o senhor, não é linho: é saco de farinha, que eu lavo e tinjo numa bacia. Assim faço todas as peças de roupa minhas e do meu companheiro e também as do menino: usando sacos de farinha tingidos..."

Aproximando-se da mesa do delegado, minha avó, com toda a coragem que tinha, largou por um momento da mão do filhinho e, estendendo suas duas mãos de palmas prá cima, à frente dele, assim lhe disse:

-"Quanto a ser uma mulher da vida, senhor delegado, olhe bem prá estas minhas mãos: são as mãos de uma vagabunda?"

O delegado olhou bem os calos duros de lidar com enxada e rastelo, olhou os olhos tristes da minha avó e lhe pediu desculpas.

-"A senhora pode ir embora que não vai ser mais incomodada e nos desculpe pelo transtorno. Realmente se vê que a senhora é uma mulher trabalhadora....".

Olhando prá queixosa de barriga molhada o delegado disse:

-"Dê-me cá as tuas mãos prá eu ver os calos!"

E como a mulher as tinha lisinhas como as de um bebê, o delegado a condenou a passar a noite na cadeia, prá aprender a cuidar da própria vida e dar uma descansada nos calos da língua. Não demorou nada prá ela se mudar da vizinhança, morta de vergonha pela noite passada na prisão...

Acho que foi Paulo de Tarso quem disse: "Miserável homem sou, que não faço o bem que desejo, mas o mal que não quero"... Isso quando a pessoa é boa, mesmo sem querer acaba errando - imagina gente ruim, que parece nascer no mundo só prá atrapalhar os outros. Mas cedo ou tarde, no caminho deles mesmos, aparecem as pedras que eles atiraram nos outros, prá lhe ferir os pés na caminhada...

Minha avó contava essa história com carinho e também como lição de vida. Com carinho porque foram poucas as vezes que alguém a tratou com cortesia e justiça, sendo ela o alvo de tanto preconceito na época, até mesmo da própria família. Como lição de vida prá nos lembrar de sempre nos ocuparmos com o trabalho, pois ele é a maior testemunha do nosso caráter e a prova de que somos filhos de Deus, que trabalha até hoje, mesmo sendo o Rei e o Dono de tudo...

Lembrei desta história esta semana, voltando de carro de algum lugar com a família - nem me recordo o que foi que a fez reaparecer assim, tão de repente, de volta à minha mente... 

Contei aos meus filhos com orgulho, mas um tipo de orgulho bom, de ter correndo nas minhas veias um pouquinho que seja do sangue dessa valente mulher que foi minha avó - a mais inteligente das pessoas que conheci, a mais bondosa, a mais linda, aquela que me espera de braços abertos e olhos cheios de amor no fim da minha jornada.
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8 comentários:

  1. No puedo traducirlo, no funciona el traductor o no lo veo.
    Bonito día para ti.
    Un beso.

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  2. Que história, que exemplo de vida! É muito triste admitir que tem muita gente que sente prazer em fazer o mau aos outros, que bom que sua avó foi sábia e Deus esteve com ela o tempo todo! bjssss

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  3. É Rosa, cada história, uma lição de vida, um aprendizado que recebo com gratidão e carinho. Um grande beijo.

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  4. Rosa

    Que exemplo sua avó deixou para vocês.
    A história vivida por ela nos ensina,nos faz refletir que, quando se tem honra, vivemos de cabeça erguida, seguindo a vida em frente, sem dar importância para o que outros dizem, deixando que mexericos fiquem para trás, lá no passado.

    Belo exemplo, ela foi (é) uma pessoa admirável.
    Adorei a história e da atitude do delegado com ambas as mulheres. Justo e correto.

    Tenha ótima semana.
    Bjs :-D

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  5. Rosa...obrigada pela visita!
    Nossos avós pertemcem a uma geração em que a vida não era nada fácil!
    Histórias de vida que dariam um belo filme!
    Bj

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  6. Rosa...obrigada pela visita!
    Nossos avós pertemcem a uma geração em que a vida não era nada fácil!
    Histórias de vida que dariam um belo filme!
    Bj

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  7. Que linda história de amor e coragem

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