quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A Outra Face



Quando minha cunhada Madalena nasceu sua mãe morreu no parto. Seu pai, como era extremamente pobre e já tinha outros filhos com os quais se preocupar, a abandonou no hospital - mais de cinquenta anos atrás, no interiorzão de Maceió.


Naquele tempo minha outra cunhada, de nome Marilda (cujo nome eu pego emprestado prá fazer brincadeira com meu marido, irmão dela - que não se chama "Marildo", mas tem nome de um jogador de futebol da velha guarda...) vivia enfiada no berçário do hospital, pois adorava espiar os recém nascidos... 

Sabendo do abandono da menina, foi correndo em casa e, de tanto implorar, conseguiu que minha sogra fosse lá no hospital buscar a criança. Era bem mais fácil naquele tempo, meus sogros registraram a menina como filha legítima - apesar de serem branquelos de olhos claros e a menina ter a pele bem escurinha, quase negra...

Dois anos depois vieram minha sogra e todos os filhos prá ficar de vez em São Paulo, pois ela havia descoberto que meu sogro mantinha outra mulher, em outra casa... Minha cunhada Madalena era apenas um bebezinho, tinha apenas 2 anos de idade. De Alagoas ela não se lembraria nada, nem tampouco do pai que teve por tão pouco tempo...

Cresceu muito amada pela mãe e pelos irmãos, mimada por ser a caçula. Nenhum deles jamais contou à menina que ela era adotada (quando ela perguntava o porquê da diferença de cor da pele entre ela e os irmãos minha sogra respondia que era porque somente ela havia saído ao pai...).

Os anos foram se passando entre muita dificuldade - minha sogra, que tinha fartura e vida boa em Alagoas veio prá São Paulo fazer faxina em prédios de escritórios (saía de casa às 3 e meia da madrugada prá trabalhar e só retornava às 4 ou 5 horas da tarde...). Vida dura, vida sofrida... Um dos meus cunhados começou a trabalhar com apenas 11 anos!

Meu marido era quem cuidava da irmãzinha pequena - aprendeu a cozinhar o arroz, a fritar linguiça, ovo, apresuntado, o que o dinheiro dava prá comer.

O segundo irmão mais velho, trabalhando na polícia, foi quem deu entrada prá comprar a casa...

Então, quando minha cunhada Madalena já estava ficando mocinha, lá pelos seus 13, 14 anos, a namorada desse segundo irmão resolveu (por inveja da beleza da menina...) contar prá ela que ela não era legítima, que não passava de uma criança abandonada em hospital... Inveja é uma m* mesmo...

Daí prá diante minha cunhada Madalena mudou de uma menina séria, estudiosa, com boas notas na escola e que se dava muito bem com a mãe e os irmãos prá uma garota revoltada, respondona, que só cabulava aula e andava com más companhias.

Dizia coisas duras de se ouvir tais como "Você não é minha mãe, você não é nada minha, eu não te devo respeito!" - mas (engraçado...) continuava comendo da comida que minha sogra suava prá trazer prá casa, dormia na cama comprada por ela, usava a luz e a água que era minha sogra que pagava...

Foi por esse tempo mesmo que eu comecei a namorar o "Marildo". De cara - gratuitamente mesmo... - essa garota não gostou de mim: me chamava de "branquela azeda". Quando ela sabia que o irmão tava na minha casa lá aparecia ela, prá apresentar alguma garota nova, tentando fazer ele parar de namorar comigo prá namorar a sua mais recente melhor amiga... Um dia eu até perguntei prá ela: "Madalena, você sabe que eu e seu irmão estamos namorando faz um tempo, eu não acho certo você viver trazendo meninas prá apresentar prá ele...". E ela me respondeu: "É que eu não gosto de você mesmo, não vejo a hora que esse seu namoro acabe..."...

Até que um dia ela não voltou mais prá casa...

Minha sogra e as irmãs começaram a percorrer uma via sacra atrás dessa moça: todos os amigos de que tinham conhecimento foram visitados, todos os barzinhos que ela andava frequentando (pois deu prá começar a beber...), salões de rock - todo canto minha sogra percorria, com a foto dela nas mãos, perguntando se tinham visto a filha... A pobre batia de porta em porta, sem resultado.

Até eu e o "Marildo" acabamos percorrendo nossos caminhos atrás dela - e viemos a descobrir que ela havia se juntado com um rapaz, mas que a família dele era contra e que ela estava dormindo na varanda, pois os pais dele nem dentro da casa os deixavam entrar.

Bom - encurtando a história... - meu marido os achou, obrigou o rapaz a se casar com ela, ajudou os dois a se ajeitarem num apartamentinho em Cubatão (pois eles queriam começar a vida bem longe de tudo e de todos). Por sorte meu marido, naquele tempo, tinha recebido uma pequena indenização na justiça, de um antigo emprego, e com esse dinheirinho pode socorrer a irmã...

O casamento deles sempre foi tumultuado: ela, que sempre gostou de sombra e água fresca, teve que aprender a trabalhar na marra - como doméstica, pois como tinha abandonado os estudos, só lhe restava essa opção de emprego... O tal marido, um homem muito simpático, nunca valeu muita coisa: sempre adorou ter muitas mulheres, sempre trabalhou de caminhoneiro e sempre a deixou por conta própria (prá não dizer abandonada) a maior parte dos anos que estão juntos...

Tiveram 3 filhos - que eu e o Marildo apadrinhamos, por nunca termos nos esquecido de como é duro ter uma infância pobre...

Durante todos esses anos, sempre que pôde, minha cunhada me fez ver que nunca-jamais irá com a minha cara. Nunca-jamais vai gostar de mim e isso é fato, como o sol vai nascer amanhã de manhã. Eu sempre vou ser uma "branquela azeda" prá ela...

Apesar disso eu sempre tive pena dela - um pouco por compará-la com minha mãe, que também se casou com um homem que deixou muito a desejar e que sempre teve que trabalhar muito prá alimentar os filhos...

Alguns anos atrás (o marido dela estando a mais de UM ANO sem dar notícias, sem mandar dinheiro; ela fazendo faxina em algumas casas, trabalhando como manicure por pura marra nos pés e mãos das mulheres da própria família em troca do dinheiro do leite e do pão das crianças) eu obriguei o "Marildo" a pagar prá ela a escola de cabeleireiras  - que assim ela ia ter uma profissão prá se virar melhor na vida. Quando ela se formou eu o obriguei também a comprar todos os materiais prá ela montar um salãozinho na garagem: cadeiras prás freguesas se sentarem, estoque de shampus, cremes, tinturas, secadores de cabelos, chapinhas e - mais importante - aquela pia de lavar o cabelo...

Não pensem que foi fácil - apesar do "Marildo" amar a irmã. Nós não somos ricos, ele pagou esses materiais em prestações, naquele tempo... Acima de tudo, ele e os irmãos ficaram bronqueados com o comportamento dela naquele tempo (um deles nunca mais falou com ela, até hoje...). Mas, com jeitinho, o "Marildo" fez o que eu pedi.

Melhor: nunca contou prá ela que foi ideia minha. Já pensou? Ela me detesta e eu faço todas essas coisas por ela? 

Eu não ia ganhar nada fazendo-a se sentir mal: que vantagem eu teria em dizer: "Olha só, você nunca gostou de mim e, no entanto, eu te ajudei!"? Eu sei que eu não preciso disso...

A ajuda vindo do irmão ela aceitou de bom grado, como deveria ser e nunca vai saber do meu papel nisso - se Deus quiser e se depender de mim.

Os filhos dela agora estão criados e - a vida é uma coisa muito estranha, às vezes... - não tem por ela o menor apreço... 

O caçula - agora com 18 anos completos - não gosta nem de estudar nem de trabalhar. Vive na rua, entre maloqueiros e drogados, o dia todo jogando bola, andando de bicicleta, correndo atrás de pipa, sem pensar no futuro. Só vem prá casa prá comer e prá dormir...

A menina do meio - menina dos olhos da minha cunhada... - arrumou um namoradinho carioca pela internet, levou ele prá dentro de casa, engravidou, largou os estudos e agora vive atrás do pai da criança lá no Rio - outra criança, igual ela. Não pensa em voltar a estudar, não pensa em arrumar um emprego prá sustentar o próprio filho...Quando tá na casa da mãe não faz absolutamente nada, pois se considera visita!

O mais velho - o único que fez faculdade - vive na casa de uma namorada que arrumou. Se formou e não convidou nem a mãe e nem o pai prá formatura - e ainda disse que tem vergonha deles, tem vergonha do lugar onde mora...

Eu sou testemunha de que ela foi uma boa mãe. Pode não ter sido uma boa cunhada prá mim, mas prá eles foi uma mãe de primeira. Eles sempre em primeiro lugar, ela trabalhando feito um burro de carga...

Como diz o dito popular: filhos criados, trabalhos dobrados: mas, no caso dela, dobrados mesmos foram os desgostos... Depois de anos de dedicação e sacrifício, relegada a segundo plano na vida daqueles a quem ela mais amou na vida, ela anda agora dizendo pros irmãos e irmãs que só aguenta até o final do ano naquela casa (construída com tanto sacrifício...) e que em janeiro vai abandonar o marido sempre ausente e os filhos ingratos... Arrumou emprego de cuidadora de um rapaz com problemas mentais e, com a mudança dessa família pro Nordeste em 2016, ela resolveu que vai-se embora com eles, prá nunca mais voltar...

Agora meu trabalho é este: azucrinar o "Marildo" prá ele "fazer a cabeça" dela, demovê-la dessa ideia absurda de abandonar a casa que o trabalho dela construiu. Fazê-la pensar friamente numa saída prá essa situação sofrida (mas não irremediável) em que ela se encontra.

Tenho sorte. Apesar da linda imagem do Gandhi no início desta postagem e da frase maravilhosa e plena de significado que é sua legenda, na minha vida eu não me lembro de ter perdoado a ninguém - nem mesmo a meu pai, que cometeu tantos erros... 

Aliás, falando de meu pai, ontem foi desenterrado o que restou dele no Cemitério da Vila Formosa - meu irmão caçula não me avisou, quis a companhia apenas de meus outros irmãos - que no último minuto deram prá trás, por medo e ele acabou indo só... Eu somente vim a saber no final da tarde, por um telefonema de minha mãezinha, às lágrimas... 

A isso se reduz toda beleza e toda feiúra, toda a força e violência e também toda fragilidade humana: alguns ossos espalhados a esmo entre roupas que um dia foram novas, testemunhas do destino que espera toda existência física... 

Aquele homem me inspirou tanto medo na infância, tanta revolta na adolescência e, no final, tanta piedade e, no entanto... Nossa vida, por mais longa que pareça enquanto a estamos vivendo, passa num piscar de olhos...

Dos passos nervosos de meu pai pela casa, que durante tanto tempo nos aterrorizaram a todos, sobraram apenas pequenos ossinhos soltos dentro de suas meias... 

É triste o amor não correspondido, a oportunidade perdida mas, mais triste que tudo, seria viver preso no passado... A gente só chega onde se propõe a chegar andando prá frente, não é mesmo?...

Acho que jamais achei necessário realmente perdoar alguém porque, como alguém disse na Bíblia (não me recordo quem, infelizmente...) "o amor cobre a multidão dos pecados" e meu pai foi e é muito amado, apesar de tudo... 

Quanto à minha cunhada - real foco desta postagem - tenho a dizer que gosto muito dela; a admiro pela pessoa corajosa e batalhadora que ela se tornou e lhe desejo todo o bem e felicidade do mundo - e, se eu puder ajudar de alguma forma esse bem e felicidade acontecerem, ela pode contar comigo.

Talvez já há um bom tempo Deus esteja exercitando meu coração ... As coisas que eu vivi na vida, o caminho por onde eu passei, as pessoas com as quais eu convivi - tudo acrescentou algo e tirou algo de mim, fazendo de mim não uma pessoa boa (pois não contei a vocês esta história com o intuito de receber elogios, mas partilhar uma vivência e um modo de pensar...) e nem uma pessoa má, mas uma pessoa que se esforça prá dar certo.

Espero não falhar na empreitada de me construir... 

Talvez fazer o bem a quem nos odeie não seja tão difícil, afinal...

E - inspirada também por Gandhi... - eu quero muito ser forte.



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7 comentários:

  1. "Aquele homem me inspirou tanto medo na infância, tanta revolta na adolescência e, no final, tanta piedade e, no entanto... Nossa vida, por mais longa que pareça enquanto a estamos vivendo, passa num piscar de olhos..."
    Essa frase poderia ser minha...
    E eu também minha querida amiga, espero não falhar na empreitada de me construir...
    Beijo grande.

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  2. Rosinha, cunhada mázinha, depois de tanta ajuda, ainda não gosta
    de você amiga? isso é ingratidão, beijos amiga

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  3. Nossa Rosa, que história hein....essa sua cunhada se perdeu coitada...
    às vezes a gente se perde tanto que não encontra o caminho de volta.
    Ela pode trancar a casa ou alugar e a casa não vai sair do lugar.
    Quem sabe no Nordeste ela se encontra? A gente nunca sabe...
    Bjs

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  4. Rosa querida
    Que texto!!

    Sou a favor de sempre dizer a verdade por mais difícil que seja. É uma pena que ela soube tão tarde quando poderia ter sabido quando criança enqto o espírito é mais maleável. Mas enfim, os responsáveis fizeram a escolha de esconder e na vida tudo é plantar e colher sejam os frutos bons quanto os maus.

    Sua cunhada tem o direito de escolher o caminho que deseja percorrer afinal é adulta, vivida e não tem muitas esperanças onde ela está. Eu, no seu lugar, tb teria ajudado de forma anônima mas nessa parte de pedir ao irmão dela dissuadí-la de ir embora, eu não faria. Ficaria quieta porém na torcida para que ela encontre algo melhor para onde quer ir. E depois ela sabe como e onde poderá encontrar os irmãos depois de partir. Ela levará nºs de telefone e endereços dos familiares. E talvez, qualquer problema mais grave ela entrará em contato se assim desejar, se deixar o orgulho de lado. O importante é ela saber que aqui ela tem uma família que deseja o bem dela.

    Sobre seu pai, é difícil julgar os outros e principalmente quem nos gera, não? reconhecemos os erros que fizeram mas é melhor que Deus cuide disso. Com certeza, o espírito dele continua na trajetória da evolução assim como cada um de nós.

    Se desvincule das cargas energeticas de pessoas problematicas, isso afeta a saúde, os relacionamentos interpessoais, a própria paz interior. Entrega tudo a Deus, segue teu caminho ao lado de quem te ama e te quer por perto.

    Ninguém consegue agradar a todos. Sua cunhada tem as limitações dela a superar qto a afetos e desafetos. Fazer o que, né? não se pode forçar ninguém a gostar de alguém e muito menos pedir afeto de pessoas com tais sentimentos contrários ao amor.

    Não tenha dó dela, tenha compaixão.
    Saiba que eu adoraria ter você como minha cunhada e até como irmã.

    Bjs

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  5. Minha linda, eis uma narrativa surpreendente! Esse é um mundo novo para mim, apenas porque nasci noutro país, noutro meio e o meio condicona as atitudes. Acho que és um ser superior. E que esse facto é fruto do trabalho de toda uma vida. Seguramente eu não teria essa grandeza de espírito. Para ti o meu respeito, a minha admiração, a mimha amizade.
    Nina

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  6. Querida Rosa!
    Que lindo exemplo a ser seguido!
    Na verdade amar a quem nos ama é muito fácil,difícil (mas não impossível)é fazer o caminho contrário!!
    Estou aprendendo a perdoar, a doutrina espírita tem me ensinado muito!Vou chegar lá..........
    Que Deus te abençoe sempre e continue a iluminar seus caminhos....
    Com carinho,
    Cristina Peres RJ

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  7. Eis aí um grande exemplo de ser humano. Quando crescer quero ser igualzinha a você, que passou por cima da maldade e fez o bem a essa ingrata malvada. Parabéns! Deus te abençoe!

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