terça-feira, 6 de maio de 2014

Sopinha de mãe


A primeira vez que eu o vi ele estava assim: deitado em sua caminha no canto da parede, com um livro na mão boa, óculos pendurados na ponta do nariz e um semblante muito bondoso. 


Vocês já viram pessoas que tem uma cara carrancuda, as sobrancelhas juntas, os cantos da boca despencados prá baixo? Parece que as contrariedades da vida imprimiram no rosto delas toda a dor e sofrimento que sentiram na vida - eu sempre dou uma checada no espelho do banheiro prá ver se não estou ficando assim... 

E tem pessoas que parece que sempre estão com um leve sorriso nos lábios - minha avó tinha um desses mesmo quando estava deitada, rodeada de flores, no último dia em que eu a vi...

E o Cantídio era desse segundo tipo de gente - os de sorriso calmo esculpido nos lábios. Não que a vida tivesse sido fácil prá ele (também tinha sido dura a vida da minha avó...) mas algumas pessoas conseguem filtrar a dor, transmutar o sofrimento e fazer brotar na face a natureza de seus corações - e assim era ele.

Quando eu e o Marildo (que naquele tempo ainda era meu "Namoraldo" - hi, hi, hi...) entrávamos no quarto ele abria um sorrisão enorme, meio sem dentes e dizia: "Eu sabia que você tinha chegado, "Barbudinho"! Escutei o barulho do teu carro... Dona Rosa, está linda hoje, uma pintura!!"

O Marildo dava banho nele, como dava banho em outros idosos acamados, enquanto eu fazia a mesma coisa na ala feminina do asilo. Um local abençoado, onde os velhinhos ainda hoje são tratados com respeito, são alimentados, agasalhados e mantidos com saúde enquanto Deus permite. Ali nos conhecemos e trabalhamos como voluntários durante muitos anos...

E um belo domingo, Dia das Mães, no qual eu havia terminado antes que o Marildo o meu trabalho, fui até a ala masculina prá ficar juntinho e encontrei o Cantídio triste, calado, pensativo...

O Marildo, atarefado com as últimas barbas a fazer do dia, mal tinha reparado... Fui chamá-lo, pensando que talvez o velhinho estivesse adoecendo...

Sentados ali, um nos pés da sua cama, outro numa cadeira próxima, começamos a conversar, tentando animá-lo - e foi quando ele nos contou uma história incrível. Tão incrível que, se eu não conhecesse a seriedade daquele senhor, talvez não acreditasse...

Cantídio havia sido um homem muito rico - riquíssimo mesmo, até para os padrões de hoje. Possuía muitos imóveis, fazendas, era dono de uma rede de farmácias - isso uns cinquenta anos atrás, no nordeste do Brasil (eu sei o estado, mas não vou falar em respeito a seus familiares, que ainda vivem lá...).

Um político muito famoso da região era amigo pessoal dele e o convenceu a entrar prá política - começar como vereador, depois deputado e ir subindo. 

Ambição é algo duro, não é mesmo? A pessoa nunca acha que tem o suficiente... Eu me lembro de uma parte do evangelho (não sei qual deles, se João, Lucas...) onde um homem muito rico diz assim prá própria alma: "Tens muitos bens guardados! Descansa, Aproveita!" e Deus diz prá ele: "Tolo! Hoje mesmo terás que entregar tua alma - e o que ajuntaste, prá quem ficará?"... Acho que o Cantídio queria ajuntar mais e mais prá deixar pros filhos, prá mulher, sei lá...

Foi vendendo o que tinha, empenhando, tentou vereador, não deu certo. Vendeu mais e mais coisas, patrocinou o amigo, patrocinou mais outro, se candidatou novamente e de novo - e nessas viradas que a vida dá, perdeu tudo! 

Semi analfabeto, só sabendo ler e escrever, na verdade foi ludibriado, espoliado de tudo o que tinha pelo tal amigo político e sua corja, que então lhe deram as costas...

Envergonhado, Cantídio fugiu prá São Paulo - abandonou mulher e filhos com pouco mais que o básico prá sobreviver, uma casinha, um pequeno pé de meia e só.

Em São Paulo virou trabalhador de construção civil - nunca mais deu notícias (então a mulher e os filhos devem pensar que ele desapareceu do mundo...).

Muitos anos depois, já na década de 80, ele já velho, teve um derrame - não morreu por milagre. No entanto, como morava sozinho num quartinho alugado nos fundos de um quintal, não teve quem lhe prestasse socorro. Ninguém se deu conta que o pobre velho estava entrevado na cama, se sujando todo, morrendo de fome... Nem prá gemer ele tinha forças.

Lá estava Cantídio, entregando a alma a Deus, lembrando de todos os arrependimentos que teve na vida, de todos os amores que teve, dos ódios que não tinha mais - quando se lembrou da sua mãezinha, tão doce, há muito tempo no céu...

E começou a chorar, caladinho, o peito doendo de saudade - quando sentiu um cheirinho tão bom, tão gostoso! Cheirinho de infância, de cuidado...

Nos olhos cheios de água, que mal distinguiam direito as imagens, apareceu a figura da sua velhinha mais amada, trazendo nas mãos um prato saindo fumacinha, transformando em perfume de comida o cheiro ruim da cama suja... 

Ela se sentou numa cadeira do seu lado e o alimentou com uma sopinha rala - mas deliciosa - às colheradas, como fazia quando ele era menino. Não falou nada - e ele nos contou que também não falou, por medo de estar sonhando e espantar o sonho com palavras, acordar de sopetão pro pesadelo que estava vivendo...

Ela ainda voltou outras vezes, trazendo-lhe o mesmo caldinho, olhando com o mesmo carinho - até que ele se sentiu forte e gritou por socorro, quando ouviu gente passando do lado de fora da porta...

As pessoas que o encontraram é que entraram em contato com o asilo, que veio buscá-lo. Teve atendimento médico, alguma fisioterapia, ficou acamado mas de mente lúcida - e assim foi levando a vida, sempre esperando o retorno da mãe amada com sua tigelinha de sopa.

Ele contando e chorando como criança - porque quando o assunto é nossa mãe, somos todos criancinhas...

Cantídio já faleceu há mais de vinte anos, era evangélico fervoroso e explicava o que lhe havia acontecido da seguinte forma: dizia que sua mãe tinha retornado da morte com a permissão de Deus,  prá lhe salvar a vida, porque amor de mãe não acaba nunca...

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18 comentários:

  1. Que linda história! Quanta sensibilidade e carinho! Beijos, querida amiga.

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  2. Nossa Rosa, que história incrível!
    A ambição é um veneno…se ele tivesse ficado no canto dele contente com o que tinha, nada disso teria acontecido…
    Mas a história da mãe aparecer e dar sopa é comovente!
    Bjs querida

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    1. É, até hoje acho muito linda. Beijos, Doutora querida!

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  3. Que triste história do Cantídio, mas que extraordinária é a bondade de Deus, ele nunca nos desampara!bjs
    Nina

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    1. Verdade, Nina querida. Deus está sempre cuidando de nós, mesmo que a gente não se dê conta.

      Beijos e obrigada.

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  4. Essas sopinhas de carinho são milagrosas mesmo! Linda história, Rosa! Amei! Felicidades pra vc, neste e em todos os outros dias comuns que tb são dias das mães. bjs

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    1. Obrigada, Ildete querida. Realmente, tudo que é temperado com a mor, mesmo quando é simples, é de primeira qualidade. Beijos!

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  5. Rosa, que linda historia!...realmente amor de mãe cura tudo, dá forças, é milagroso. Aproveito para desejar um Feliz Dia das Mães para vc, querida.
    Bjs,
    Cris

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    1. Realmente, amor de mãe é remédio, eu vivo pedindo colinho prá minha...

      Beijos e obrigada, Cris querida.

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  6. Que lindo Rosa... que bom ele ter sobrevivido nem que seja só para sentir o amor de sua mãezinha cuidando dele nessa hora tão sofrida. Com certeza esse momento fez o restante dos seus dias muito melhores e mais felizes.
    beijos

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    1. Nossa, você disse tudo, Luci querida: parece até que ele sobreviveu só prá testemunhas esse amor capaz de transpor até mesmo a morte.

      Beijos!

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  7. Olá querida Rosa!
    Comovente a história do Cantídio!Prova que Deus não nos desampara
    nunca!E nada é por acaso estava escrito que ele encontraria Rosa e seu marido para cuidá-lo!!
    Que Jesus os abençoe sempre,lhes dê saúde e felicidade para todo o sempre....além da eternidade!!
    Beijos doces.......Cristina Peres RJ

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    1. Muito obrigada, Cristina querida, e que Deus dê prá você em dobro todas essas coisas lindas que você deseja sempre prá mim.

      Beijos!

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  8. Que linda história Rosa.
    Deus é maravilhoso,e para ELE nada é impossível...
    Beijo no coração seu e do marildo pelo belo trabalho voluntário.
    Durma com os anjos.
    Beijo.

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    1. Eu sempre penso que Deus pode tudo, que nada é mesmo impossível prá Quem é o criador de tudo e de todos, não é mesmo?

      Beijos, minha querida Rosangela e obrigada!

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