sexta-feira, 7 de março de 2014

A Corintiana


Parecia mais um furacão de alegria entrando pela porta... Vestida com um vestido branco bem rodado, daqueles que as baianas vendedoras de acarajé e as mães-de-santo umbandistas usam ela chegou falando alto, cumprimentando todo mundo - o segurança na porta, os segurados que passavam entrando e saindo do prédio, funcionárias da limpeza... 


-"E aí, filha? Tá boa? Tá tudo em cima? Lembranças prá família..."

-"Vixe, muié! Tá comendo muito churrasco, tá com ele todinho parado aí nessa pança! Da próxima vez me convida, divide comigo essa fartura toda..."

-"Tá gostando do que tá vendo, moço? Eu também dou uma animada em qualquer festa, me chama que eu vou..."

Turbante branco na cabeça, dezenas de colares no pescoço e outros tantos enrolados nos braços. Nestes, um montão de flores - rosas e margaridas - que ia dando, ora prá uma pessoa, ora prá outra e dizendo "Paz de Deus na tua vida"...

Eu a vi quando passou pela porta. Os outros guichês ficavam mais prá dentro, dando espaço prás suas respectivas filas, mas o meu - ao lado dos sanitários dos segurados (o que era um verdadeiro pesadelo em épocas de calor - ninguém deveria trabalhar ao lado de banheiros...) - tinha uma ampla visão da porta. 

E porque eu a estava olhando, ela veio direto prá mim. Se a Woopi Goldberg teve uma irmã gêmea perdida, que nasceu no Brasil e viveu na periferia, era ela... Idêntica, sem tirar nem por nada - só talvez uns centímetros a mais na altura, pois a Edite era uma mulher de menos de um metro e meio...

Minha chefe, escutando a barulheira, veio até o balcão e me perguntou se eu queria que chamasse os seguranças. 

-"Não, tá tudo bem..." - e assim, iniciei meu atendimento.

Aquela efusão de alegria espalhando-se prá todo lado como faz o sol escondia um drama de proporções épicas; olhando assim, pela primeira vez, todo mundo pensava tratar-se de uma maluca. 

Os dois únicos filhos que teve, não tinha mais. O mais velho havia se metido em uma briga e sido morto, quase cinco anos atrás. As más companhias eram as culpadas, dizia ela...

O caçula virou usuário de drogas desde a morte do irmão. Trouxe prá morar na casa dela uma moça, que também usava e ali ficaram, até ambos morrerem de Aids. Deixaram três filhos prá ela criar... 

Já falei que ela tinha 63 anos? Pois tinha - mas olha, não parecia: eu não daria nem 40 anos prá ela. Nenhum fio de cabelo branco, nenhuma ruga. Trabalhava de faxina, sem registro - dizia que nunca ia se aposentar pois não achava quem lhe ajudasse a pagar o "NPS" - que é como ela falava.

-"Vim pegar o 'NPS' do meu filho prá criar os filhos dele. Sabe, nos últimos tempos ele tava tentando se endireitar, tinha começado a trabalhar de frentista num posto, o homem registrou ele, mas aquela doença maldita o levou... E me disseram que as crianças tem direito..."

Nem mandei ela prá fila. Analisei a documentação, peguei os formulários, preenchi o que podia, coloquei o restante num envelope prá ela levar no emprego do filho, pro patrão preencher. Pedi a uma das assistentes sociais prá encaminhar a mulher pro Fórum, prá obter a tutela dos netos.

Sabe aquela coisa que quando tem que dar errado não dá certo mesmo? Primeiro a certidão de nascimento do filho foi rejeitada por ter uma rasura, depois o patrão preencheu errado um formulário. Daí a funcionária que tinha que comandar o pagamento do benefício esqueceu ele numa gaveta...

A pobre mulher ficava indo e voltando, igual barata tonta... Ela não se queixava, dizia que tava se virando, entre as faxinas e a ajuda do padre da Igreja católica perto da casa dela "Gente boa, aquele padre. Me ajuda mesmo eu sendo macumbeira...".

Às vezes ela trazia os netos - crianças lindas, tão boazinhas, bem comportadas. Ela falava prá ficarem sentados, eles ficavam direitinho... Dava até prá se pensar como é que crianças podiam ser tão quietinhas tendo uma avó tão espivetada...

Um dia a corintiana estrapolou. Tava ela sentada no banco do lado do meu guichê quando um funcionário da Perícia Médica veio trazer uns documentos prá Assistente Social. Esse funcionário era alto, forte, muito bonito mesmo, parecia modelo ou artista de cinema. Junto dele veio uma funcionária da Aposentadoria - que não desistia de tentar conquistá-lo, apesar dele ser muito bem casado... - e a Edite, olhando prá eles dois, disse assim:

-"Ô, minha filha... Tá faltando óculos na tua cara, muié? O homem é casado, pode ser um monumento, mas já tem dona... Meu querido, fala prá tua mulher que ela tá de parabéns, que fartura de vida ela leva. Eu me contentava com metade de você, uma perna só já bastava. Coisa linda! Ocê não tem um irmão, um tio, um parente seu prá me emprestar? Lá onde eu moro não tem esse tipo de mercadoria..."

O funcionário começou a rir, a garota virou as costas e voltou pro seu setor, emburrada e eu quase chorei de tanto rir.

Ela era assim - nem bem o pensamento aparecia na cabeça escorregava pela língua, sempre inteligente, sempre bem humorado.

Mas se via que ela passava necessidade, mesmo sem se queixar.

Um dia eu contei a história dela pro Marildo. Ele é assim - não posso falar nada que ele toma atitude. Que Deus me perdoe a comparação, mas me lembra o primeiro milagre que Jesus fez - aquele do vinho, sabe? Jesus estava no casamento e, numa certa altura, a mãezinha dele aparece e diz baixinho que acabou o vinho - que vergonha pros pobres noivos, darem uma festa sem vinho que bastasse pros convidados! Jesus diz que ainda não estava na hora dele fazer seus milagres mas, por causa dela, vai e transforma a água em um vinho de primeira, super delicioso. Com o Marildo é assim: se eu contar uma coisa, ele faz uma carinha de contragosto, mastiga a notícia (enquanto meio que mastiga a língua...) e daí a pouco diz que precisamos fazer algo a respeito... Por várias e várias vezes foi assim - por que vocês acham que eu amo tanto esse homem?

Pois ele me fez pegar o endereço da corintiana, descobrir como se chegava lá (naquele tempo não tinha GPS nem mapas na Internet, a gente pegava o Guia de Ruas e se virava...), fez uma compra no mercado e a gente se aventurou até Itaim Paulista - que naquele tempo tinha quase nenhuma rua asfaltada e iluminada, onde parecia que cada pessoa punha na porta de casa o seu número da sorte, onde o 17 ficava do lado do 242... Mas chegamos, sem nunca ter ido prá aqueles lados...

Um quarto, cozinha e banheiro, com vidros faltando nas janelas, chão de cimento, colchões pelo chão... Roupas em sacolas, comida pouca arranjada em caixas de papelão... Fogão de quatro bocas todo arrebentado e, num altar improvisado, uma imagem azul de Iemanjá - linda, de braços abertos espalhando a espuma do mar com as mãos...

Ela nos recebeu com a mesma costumeira alegria e eu menti que era da minha Igreja que eu estava trazendo aquelas coisas - não queria que ela pensasse que era esmola... 

A ajudamos ainda uma vez e o pagamento saiu, graças a Deus. Paramos de visitá-la, outras pessoas se sobrepuseram a ela, com suas necessidades prementes - pro meu Marildo se virar e "tirar das goelas" o nosso "óbulo de recém casados". Naquele tempo meu salário era menor que o mínimo - eu trabalhava só meio período... - e o dele só um pouquinho maior, mas o dinheiro rendia (só Deus prá fazer esse tipo de multiplicação...).

Uns quatro anos depois veio me procurar a menina mais velha, tava com quatorze prá quinze anos, pedir prá eu ajudar a passar o benefício dela e dos irmãos pro nome dela, pois a avó tinha morrido. Infarto, daqueles fulminantes, nem tempo de ficar internada sofrendo ela teve. 

Fiquei muito triste, mas entendi que ela já tinha cumprido o que tinha vindo fazer neste mundo. Encaminhou o quanto pode os netos, deixou prá eles a casinha e o exemplo de vida e trabalho.

O mundo ficou um pouco menos luminoso naquele dia - um astronauta poderia confirmar o que eu digo. Tenho certeza que nosso planeta, uma bola de vidro azul brilhante vista do espaço deu uma leve tremeluzida naquela hora - mas Deus é bom, sempre faz nascer uma luz nova, em algum lugar, quando uma delas se apaga.

Por quê eu a chamava de corintiana? Lembra aquele vestido de baiana que ela usava, na primeira vez em que eu a vi? Pois ela tinha recortado o bordado do Corinthians de uma camiseta velha e o tinha costurado, delicadamente à mão, do lado esquerdo do peito - era seu time do coração. Inclusive, algumas vezes, vinha no meu prédio com camiseta e shorts de jogador, quando era dia de partida. Mais uma paixão que cabia naquele coração tão grande.

Essa história eu contei - e me emocionei lembrando, prá variar... - em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. A todas aquelas que não tem tempo ruim, que nunca enfrentam as dificuldades sozinhas porque Deus está com elas, que conseguem rir mesmo com o coração apertado de dor e que deixam prá trás um rastro de luz, igual vagalume - independente prá que time torçam.
Share:

24 comentários:

  1. Uma bela e emocionante história de vida...relatada porque quem percebe que para se escrever...temos de deixar transparecer emoções! Adorei Rosa! Bom fim de semana!

    ResponderExcluir
  2. Oi Rosa!
    Linda mensagem essa senhora nos deixa.
    Obrigada por compartilhar essa história, amiga!
    Bjus e um bom fim de semana

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu é que agradeço por você ter gostado de ler e se emocionado, Márcia querida. Beijos!

      Excluir
  3. Guerreiras e felizes! Estas dão exemplo que todos deveriamos escrever para eternizar.
    Agradeço por ter compartilhado.
    Espero que sua casa já esteja tranquila e bem protegida por Deus.
    beijo, bom final de semana.
    Claudia

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Claudia querida. Protegida por Deus eu acredito que esteja - tranquila já é outro departamento. Leva um tempo prá superar - cada vez que as cachorrinhas latem, o coração pula no peito. Mas vai passar...

      Beijos e obrigada pela preocupação.

      Excluir
  4. Rosinha querida, compra trapilho, agulha nº 10 (muito grossa) e enche a tua alma de espanto.
    Muitos beijinhos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Já comprei - tô esperando chegar...

      Beijos, minha querida!

      Excluir
  5. Obrigada Rosa, com essa história você soprou em mim uma lufada de ânimo e vontade de continuar a luta.
    Deus está em tudo e se ELE nunca desistiu, porque eu haveria de desanimar?!?!?!
    Muito obrigada, estou sacudindo a poeira e indo à luta.
    Muitos beijos. Fiquem, você e seus amores, sempre com Deus.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Isso mesmo, Marili querida. Os vitoriosos não são os que ganham sempre, mas os que não desistem, apesar das dificuldades. Seguir lutando é imperioso. Que Deus te abençoe sempre.

      Beijos!

      Excluir
  6. Rosa minha querida que lição de vida e fé, amei e fiquei emocionada. Obrigada por trazer essa história para que a gente pense melhor sobre os valores da vida.
    Bjos e fique com Deus,
    Marlene

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Marlene querida. É muito importante prá mim saber que minhas historinhas emocionam as pessoas, que toca os corações delas.

      Beijos.

      Excluir
  7. Realmente vc tira das suas memórias casos como esse que nos lembram que nunca estamos sós e que devemos ser sempre gratos pelo dom da vida, e fazer da nossa jornada o que de melhor pudermos. Obrigada, bjs

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Penso que é assim mesmo, Deus está sempre conosco, nos guiando os passos, iluminando nossas ideias - mas prá isso a gente tem que entrar em sintonia com ele, escutar nosso coração e fazer o nosso melhor, sempre.

      Beijos, Celia querida.

      Excluir
  8. pessoas assim fazem realmente parte de nossas vidas, independente de religião, pois tem preconceito quem não conhece a fundo a religião principalmente o candomblé ou a umbanda, rotulam todos como macumbeiros, mas eles estão aqui pra ajudar, a senhora foi ate a casa dela e viu a realidade dela, deus tocou seu coração e a senhora e seu esposo fizeram o bem , e a historia dela serve de exemplo ate hoje nao é mesmo, que bom que a senhora compartilhou conosco bjs.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É como eu costumo dizer, Elisabete querida: religião é a forma como a gente se comunica com Deus. Se dá certo, se nos torna pessoas melhores, se fazemos o bem através dela, ela é boa. Preconceito é o mal de quem não conhece e rotula. Tem que conhecer primeiro prá poder emitir um juízo - e julgar é sempre complicado, acho que nunca dá prá conhecer totalmente prá poder julgar sem erro.

      Beijos, minha querida!

      Excluir
  9. Bom Dia e Boa Tarde..
    Hoje tão somente hoje quero deixar de alguma forma meu
    carinho a todos que sempre dedicou um dia de carinho para mim .
    Meu desejo seria retribuir de alguma forma tudo que aprendi na vida e nos últimos anos
    como um grito de amor nesse dia Internacional da Mulher.
    Rogo a Deus por todos as mulheres que ainda sofre em todo o Mundo.
    Pela falta de compreensão , discriminação pela raça , pela cor , pela classe social
    pela mutilação .
    Que nesse Dia você possa olhar para dentro de si mesmo e dar
    graças a Deus pela vida ter sido generosa ,
    pois a mim você sempre deu carinho afeto e companheirismo .
    Quando estava prestes a desistir, lembrei-me.
    Tinha a maior riqueza do mundo sua (Amizade)
    Hoje deixo essa mensagem independente de ser amiga ou amigo.
    Eu preciso muito da sua amizade e capacidade
    de aceitar - me como sou quero sim
    sua amizade esse sim é o presente que peço nesse Dia Internacional Da Mulher .
    Com todo carinho saberei recompensar sua amizade com o mais puro amor
    que existe dentro do meu coração.
    Deixo nesse dia beijos no coração e afagos na Alma.
    Deixei na postagem um mimo encontre o que você gostar é minha gratidão
    por tudo que representa na minha vida.
    Carinhosamente.Evanir.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito lindo e carinhoso, Evanir querida! Você é mesmo uma alma repleta de poesia. Muito obrigada pelo carinho. Beijos!

      Excluir
  10. Querida Rosa!
    Feliz dia da Mulher!
    É uma linda história de vida!
    Com certeza,Rosa,cada um que passou ou vai passar por aqui,sentiu seu coração tocado pela comovente e bela história!
    Que sirva de reflexão para um mundo melhor!
    Beijo,querida! Meu carinho de sempre!
    Cristina Peres RJ.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom, Cristina querida. Fico feliz com isso. Muito obrigada por palavras tão carinhosas.

      Beijos!

      Excluir
  11. Parabéns prá vc comadre!
    Filha, neta, esposa, mãe, amiga e blogueira de primeira!

    Adorei a história, e vou me lembrar dela quando o bico quiser crescer... hehehe! a vida é mais doce com bom humor

    bjo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ai, essa do bico crescer eu nunca tinha ouvido... Será que o meu já tá crescendo?...

      Beijos, Elisana querida!

      Excluir
  12. Oi Rosa querida!
    Linda história.
    Desejo a vc uma linda semana.
    Beijos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Carla querida! Desejo a você uma linda semana também. Beijos!

      Excluir

Todos comentários são moderados pelo meu filho para evitar spam. Se você postou um comentário e ele ainda não apareceu, aguarde mais 24 horas. Obrigada!