quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O Canto da Sereia - Parte 2


Não tinha nada de muito especial no João - mais perto dos 30 do que dos 40 anos, moreno, olhos castanhos bem clarinhos, luminosos, baixo em estatura (mais baixinho do que eu...). Casado, quatro filhos pequenos, em idade escolar - uma escadinha deles. A mãe dele era ceramista - será que é assim que se fala? - fazia cerâmicas, esmaltava e vendia em uma lojinha na frente da própria casa, lojinha essa que ficava no meio do caminho entre a minha casa e o trabalho. Todos os dias eu passava na porta da loja e admirava as peças, babando de vontade de possuir uma - nenhuma delas tinha preço, então eu tinha vergonha de perguntar e ficava imaginando fortunas inatingíveis... 


Ele começou a trabalhar na minha Agência provisoriamente: foi na época em que vieram instalar os primeiros computadores (os dinossauros tinham sido extintos já há um bom tempo, mas a Queda da Bastilha tinha sido quase semana passada...). 

O governo tinha dessas coisas - não sei se ainda é assim: ao invés de dar treinamento para todos os funcionários, na forma de cursos em rodízio, ensinava uns poucos e os encarregava de disseminar o conhecimento adquirido (mais barato e muito mais lento e ineficaz mas, fazer o quê? No dia em que eu for presidenta, isso muda...). Ele era funcionário de uma outra Agência e veio na nossa ensinar a usar os computadores - na verdade, na Agência em que ele trabalhava ele era chefe de um Setor...

Eu não fui chamada prá aprender - meu Setor não estava destacado prá ter computadores. Acabei aprendendo na marra mesmo...

Bom, todo mundo viu o assédio acontecer - nos Estados Unidos daria processo, filme com a Demi Moore ou a ex mulher do Brad Pitt mas, ali, só dava mesmo era fofoca. E risadas...

Parecia o Animal Planet: o predador e a presa, o coelhinho e a leoa, o mosquitinho e a aranha... Ariadne esbanjava todo o charme possível e imaginável prá cima do pobre João e ele encabulava, resistia estoicamente a todas as investidas. 

"Cheira o meu perfume e me diz se eu exagerei" - levantando o cabelão e expondo o pescoço na cara dele...

"Você acha que esta jeans que eu comprei tá muito agarrada no meu bumbum?" - empinando seus glúteos máximos prá ele...

"Ai, acho que comprei o sutiã pequeno demais e agora que já tô usando, não dá mais prá ir na loja trocar... Meus seios tão pulando prá fora do decote, tá vendo?"...

Era uma piada. 

Era uma tragédia anunciada - todo mundo sabia no que isso ia dar...

Daí ele teve caxumba - e ficou de licença por uns dez dias.

Um belo dia uma das Assistentes Sociais chega no Setor indignada e conversa bem alto a última da Ariadne: 

- "Gente, ela não tem mesmo um pingo de vergonha na cara!!! Sabe o que ela falou - na minha frente, na frente de todo mundo? Perguntou pro João se era verdade que a caxumba "descia" - e disse que, se ele precisasse de ajuda prá ficar curado desses problemas, podia contar com a ajuda dela!!!"

Não demorou muito. Nessa mesma semana eles começaram a ficar juntinhos, conversando e rindo baixinho, ele com um sorrisão de orelha a orelha. Ele até pediu e conseguiu transferência prá nossa Agência...

Mas isso também não demorou muito: acho que ele decidiu que ela era o amor verdadeiro da vida dele, que não podia viver sem ela e que tudo ia ser maravilhoso - romance eterno, melão com presunto. Acho que ele pesou quem valia mais na vida dele e os quatro filhinhos e a esposa eram muito levinhos nessa balança, vá saber...

Foi aí que ela deu um basta, um gelo mesmo. Dizem que pior que o canto da sereia é o silêncio dela - e deve ser mesmo, pois o rapaz ficou doente. Ele tinha se antecipado e contado tudo prá esposa - e sido posto prá fora de casa, naturalmente. Estava morando de volta com a mãe, mas não fazia mais a barba, não penteava os cabelos, mesmo com a mãe dele lavando e passando a roupa ele aparecia sem tomar banho - e a gente sentia de longe o cheiro de suor curtido com bebida, parecendo cebola estragada... Coitado... Acho que pensou que assim ela se comoveria, imaginaria "Olha! Tadinho... Como ele me ama! Vou amar de volta...". Patético. Se entendesse de mulher saberia que elas nunca apreciam fraqueza - todas querem o mais forte, o poderoso, não o chorão dodói e fraquinho, o dependente...

Ele emagreceu assustadoramente, acabou tirando uma licença médica e, quando esta acabou, pediu transferência de Agência de novo - sem receber mais chefia, tendo que andar de ônibus e metrô (porque no divórcio teve que vender tudo prá dividir com a ex-mulher - inclusive o carro).

E a Ariadne? Eu sei, todo mundo espera o mal ser punido ou se reformular, ter o coração tocado, se transformar - mas isso não aconteceu.

Um tempinho depois ela conheceu um marceneiro 5 anos mais jovem do que ela, um rapaz bonito, talentoso e trabalhador, dono do próprio negócio, que se apaixonou perdidamente por ela e a pediu em casamento. Ela estava grávida e resolveu que, desta vez, estava muito a fim de brincar de casinha. 

Casou de noiva. 

Na igreja. 

De branco, véu e grinalda - eu não fui convidada, mas vi as fotos, foi um casamento lindo. O rapaz estava bem de situação financeira e alugou uma casona enorme, maravilhosa - prá eles morarem. Contratou empregada e cozinheira - ela não tinha que fazer absolutamente nada... Se dava super bem com o filho dela, pré adolescente - andavam de moto prá todo lado juntos. Os móveis da casa deles foram todos feitos por ele mesmo, de madeira maciça de qualidade - coisa que a gente só vê em novela, lindos de cair o queixo.

Nasceu uma menininha e Ariadne se recuperou da gravidez maravilhosamente - parecia que nunca tinha dado a luz na vida (e eu fazendo abdominais desesperadamente e tentando sem sucesso exorcizar aquela barriguinha, que teimava em não me abandonar...). 

Uma linda e respeitável senhora casada, mimada ao extremo pelo marido, que tava sempre aparecendo no trabalho, segurando o capacete numa mão, trazendo um agradinho na outra, beijinho, beijinho...

Quando tudo estava perfeito, a menininha estava com quase dois anos de idade, ele saiu prá fazer alguma coisa com pressa na moto, virou sem atenção numa esquina e se chocou de frente com um caminhão - quase ficou sem a cabeça. Morreu na hora e, graças a Deus, o filho dela não estava na garupa naquele dia...

Uns dois meses depois a linda viúva apareceu de Setor em Setor com um álbum de fotos dos móveis feitos pelo marido, anunciando a venda de tudo pois ia voltar a morar no apartamento da mãe, na Cohab. A boba da Rosa aqui ainda abriu bestamente a boca e disse:

- "Ah, não faz isso! São tão lindos, não existem outros assim no mundo, teu marido fez prá você com tanto amor! Imagina a alegria da tua filhinha, crescer e herdar os móveis feitos pelas mãos do pai!!!"

Ela me olhou como se eu fosse uma extraterrestre e nem se dignou a responder...

Torrou o dinheiro todo em roupas, sapatos, viajou de férias prá praia e retocou o bronzeado impecável. Comprou até uma calça justa de couro preto, escandalosa de tão agarrada...

Voltou tudo a ser como antes - os risos altos, as paqueras, as conquistas. Bom, quase tudo: o metabolismo dela mudou e ela começou a ganhar peso, mas ainda continuava uma mulher lindíssima.

Um tempo depois o "bendito" FHC, depois de transformar meu salário em trocados e massacrar minha alma, me empurrou prá pedir demissão voluntária e lá fui eu, cuidar da minha vida...

Dois anos atrás eu soube, por uma amiga em comum, que a Ariadne está muito bem: foi convidada prá chefiar um Setor (acho que de Aposentadoria) numa Agência grande - poderosa, como sempre. Só que agora tá bem gorda e a gravidade e o tempo já deram uma demolida na estrutura - então não arranca mais suspiros como antes.

O apóstolo Paulo, em uma de suas cartas, disse que "cada um é tentado quando atraído e enganado por sua própria concupiscência" - algo mais ou menos assim. Isso quer dizer que a tentação não está naquilo que vemos, ela reside em nós, nas nossas falhas, nos nossos desejos. Tem gente que encontra um saco cheio de dinheiro e entrega na polícia, prá que o dono encontre - mesmo estando passando por necessidades e privações -  e tem gente que não apenas aproveita oportunidades prá se apropriar do que não lhe pertence, mas também cria suas próprias oportunidades... 

Quando a gente reza o Pai Nosso - muitas vezes mecanicamente - com que fé será que pedimos prá Ele nos ajudar a não cair nas tentações?

Quanto a Ariadne - ela ainda está viva. Quero crer que a vida ensina, os acontecimentos moldam, os sofrimentos transformam - e ela não está imune a eles. Quero crer que hoje ela não destrói mais lares - até por força de sua própria mudança física - e que seu comportamento quase sociopata tenha tido uma melhora - pelo menos. Que ela encontre, com a ajuda de Deus, seu caminho de redenção - é o que devemos desejar para quem erra, pois é com a transformação de cada um que este mundo vai, aos poucos, ser um lugar melhor...

E o João? Pobre João... Prá isso é que existe o "perdoar setenta vezes sete vezes"... Que ele tenha conseguido se perdoar...
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29 comentários:

  1. Um final real!
    Já pensou em escrever um livro?
    Gosto do seu jeito de escrever!
    Passarei sempre...para ler mais histórias!
    Bj

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    1. Que bom, Maria da Graça! Espero ter sempre uma boa história prá contar. Beijos!

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  2. Minha amiga, que história!! É, a vida é assim, não com final feliz como nas novelas, quando elas as têm. O mundo dá voltas e mais voltas. O destino muda o rumo de nossas vidas. Deus ajude que ela tenha se transformado numa pessoa melhor (será?). E o pobre e digamos, tonto, do João? Que fim terá tido, depois de ter sido passado por bobo? Se um dia você souber, conte-nos. Infelizmente, os homens não podem ver uma mulher se insinuando, que logo correm atrás dela querendo "tirar uma casquinha". Mas as casquinhas saem caras, muitas vezes se paga com a vida. É a vida! Gostei da sua história, de mais uma experiência de vida. Beijos, beijos. Agora na espera de outras histórias!

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    1. É, Ligia querida, a vida não é novela de televisão, mas tem muitos finais felizes acontecendo por aí... Obrigada por ter gostado da história... Beijão!

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  3. Pobre moço, esse João. Largou a família, e olhe só no que deu! Coitado do homem que encontra com um tipo desse de mulher, se ele não tiver muita determinação, muito amor na família, difícil não cair nessa cilada! Adoro suas histórias, quero mais!!
    beijos

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    1. É, sinto muita pena dele... Pagou caro por uma má escolha. Beijos e uma linda semana, Luci querida!

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  4. Rosinha, querida, sou bem menos caridosa que tu. Essa fulana era extremamente irritante e acredito piamente que acabará por provar do seu próprio veneno!
    Estúpidos, esses homens todos! Impressionante!
    Beijinhos! Valeu o suspense! A narrativa é otima!

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    1. Provavelmente você está certa - mais dia, menos dia, ela vai colher o que plantou... Obrigada, Nina querida e uma ótima semana! Beijos!

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  5. Nossa Rosa,que história! Entrei na internet só para ver se já tinha saído a parte 2!
    Provavelmente ela tem um distúrbio de personalidade.
    De um jeito ou de outro essa mulher deve sofrer bastante…para quem era tão apegada aos atributos físicos, ver seu corpo decair…
    Bjs

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    1. É, também acho... Hoje já quase nada resta de toda aquela beleza, que era tudo o que ela tinha prá dar... Beijos, doutora querida!

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  6. Rosinha querida, setenta e sete vezes, Jesus disse que devemos
    perdoar, ou seja sem limites, estava com saudade...beijo amiga

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    1. Obrigada por ter vindo, Mira querida! Beijos e uma linda semana!

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  7. Rosa, rosinha, acredito na "lei do retorno"...cuidemos de nossas atitudes para colhermos um retorno suave...

    O tempo é implácavel com todos!! (ao meu ver...ainda bem!!!!)

    beijinhos, tenha uma tranquila sexta - feira,

    Lígia e =ˆˆ=

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    1. Sabe que eu concordo? Porque o tempo sendo implacável com todos quem tiver um pinguinho de sabedoria trata de cultivar atrativos que ele não destrua nem leve embora, não é mesmo?

      Beijos e uma linda semana, Ligia querida!

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  8. Que historia, nada como um dia após o outro, BJÔ sua mais nova seguidora.

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    1. Obrigada pela visita, Joseane querida! Beijos e uma ótima semana prá você.

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  9. A querida Lígia disse tudo... a lei do retorno...
    Não tem como não ler suas história do começo ao fim.
    Sabe aquele livro de cabeceira que está sempre ali... assim é seu blog. Por mais que a gente esteja sem muito tempo, quando chego aqui, me entrego a essa viagem que a boa leitura sempre nos proporciona e no final sempre tem um belo aprendizado.
    Fica com DEUS.
    Beijo.

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    1. Ah, você é tão doce, Rosangela querida! Obrigada por essa consideração tão grande pelo que eu escrevo... Beijos e uma linda semana!

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  10. É, não devemos desejar que a pessoa 'pague'. As vezes não sabemos dos demônios que assombram tais pessoas, na intimidade. Mas somos humanos e falíveis. Deu uma raiva dessa moça durante o relato. Mas no fim de tudo, penso que nem tu, e desejo a transformação para que o mundo melhore.

    bjs

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    1. É, Lia querida: os maus somente sendo punidos o mundo continua o mesmo - mas eles se redimindo, aprendendo a amar e a respeitar, o mundo se transforma...

      Beijos e uma linda semana!

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  11. Bom dia de sábado!!!!

    Agradeço sua visita tão carinhosa
    e desejo sempre o melhor pra vc
    tenha um final de semana cheio de alegria com esse post divino, que
    sempre enche nossos olhos de muita
    alegria bjussss

    Abraços com carinho!

    └──●► *Rita!!

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  12. Pois é, Rosa

    Na vida tudo é colheita do que se planta por isso que devemos escolher muito bem o que plantar.

    Bela e triste história.

    Bjs

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    1. Obrigada, Fatinha querida, é sempre um prazer receber tua visita. Beijos e uma ótima semana!

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  13. ai d rosa sei lá sera que ela era realmente feliz, com esse marido que dava tudo ( materialmente falando), a ela, sera que ela teve carinho, atenção, afinal só quem vive entre 4 paredes sabe o que acontece. e quanto ao joão oh homem burro quando uma mulher se oferece demais com certeza não é boa peça, ele deveria ter mais auto estima e não se acabar desse jeito. tomara que ela tenha aprendido. bjs.

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    1. Realmente, Elisabete querida, cada um é que sabe o que se passa em sua vida. Também espero que ela tenha aprendido alguma coisa.

      Beijos e uma linda semana!

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  14. Obrigada por avisar, Sandra querida! Já fui lá tentar minha sorte. Beijão!

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  15. Belas história Rosa.
    Essa mulher era mesmo vil. É uma pena que as pessoas se deliciem a serem más. A vida é bela demais para se viver com tanta maldade.
    Nunca vi essa fruta, jabuticaba, curioso como cresce no tronco e não nos ramos. A geleia ficou mesmo de dar água na boca.
    Beijinhos querida Rosa e uma excelente semana

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    1. A jabuticaba hoje em dia já está sendo plantada em diversos outros lugares, até no Japão, mas só no Brasil ela atinge a doçura que nasceu prá ter, porque é nativa daqui. Ela é como uma uva, só que de casca mais dura. Dentro tem uma polpa branca bem doce e um caroço grande, que é amargo se você morder e que, se mastigado e engolido, deixa o intestino ressecado. É absolutamente deliciosa de comer pura, direto no pé e rende licores e geleias maravilhosas. Quem sabe um dia você vem pro Brasil provar, Alice querida?

      Beijão.

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