segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A menina que comia lagartixas...

As aulas já haviam começado havia quase um mês quando ela entrou prá minha classe: uma menina de cabelos loiros muito crespos, amarrados bem puxados num enorme rabo de cavalo e uma timidez de causar pena. 


Os olhos quase não se abriam, inchados, vermelhos e cobertos de crostas... Se fosse hoje em dia a escola teria proibido a menina de frequentar a aula até estar curada da conjuntivite - ou o que quer que fosse esse problema - mas, naquele tempo, ela vinha prá escola assim mesmo. Ainda não tinha comprado o uniforme escolar e vinha com vestidos bonitinhos, uma bela fita no cabelo e ficava no canto, separada de todas as outras meninas da sala - naquele tempo as classes eram só de meninas ou só de meninos, apartados em lados opostos da escola.

Foi por pura pena que eu me aproximei dela - aquela coisa que as crianças tem de sentir empatia e receber no coração o mais fraquinho... 

Eu mesma não tinha muitas amigas: tinha a Leda, que era enorme em estatura e bem gordinha - e que logo ganhou o apelido de baleia... - e a Cruz, que na verdade se chamava Cleide e que era mais do que eu o retrato da fome, minúscula e magrinha como uma formiga, com perninhas finas de graveto e que fazia parte da Associação de Pais e Mestres, ganhando da escola o material e o uniforme, pois a família dela não tinha dinheiro prá pagar... E a Ozilda, a recém chegada de olhos feridentos, que veio fazer parte do meu pequeno grupo. A Leda e a Cruz ficavam assim meio de lado, com medo de pegar a doença, mas eu resistia bravamente aos meus olhos lacrimejando de agonia por olhar prá ela - "tadinha" (eu pensava...), "se eu estivesse no lugar dela, ia apreciar ter uma amiga...".

E fomos boas amigas por aproximadamente duas semanas - até ela sarar dos olhos. Daí ela me deixou de lado, em busca de uma amiga mais em sintonia com o que ela queria da vida... Não digo que partiu meu coração, mas que senti uma bela alfinetada, isso eu senti. Acabado o problema dos olhos a Ozilda se revelou uma menina muito bonita, de olhos claros azul-esverdeados, um sorriso cativante e uma personalidade de criança mimada que era insuportável. 

Se bandeou pro lado da Norma e suas amigas - que antes morriam de nojo dela, vê se pode... Norma foi minha arqui-inimiga de infância, uma garota da minha idade que morava a duas quadras da minha casa, sabia o quanto eu era pobre e vivia fazendo comentários perversos a respeito disso - eu a odiava do fundo do coração, como só as crianças sabem odiar porque não pensam muito no que estão fazendo.

Ainda era o começo do ano e a escola ainda não havia recebido os mantimentos prá fazer a merenda - então a gente tinha que trazer de casa alguma coisa prá comer no meio do horário da aula, senão passava fome mesmo. Era uma banana nanica nascida no terreno do quintal, um pedaço de mandioca cozida embrulhada no papel de pão ou num guardanapo feito com sobra de pano ou então nada - se não tinha nada prá levar...

Naquele tempo não existia essa coisa de óleo saturado - hoje, depois que a gente frita o bolinho, o ovo, a gente se livra do óleo (eu ajunto prá fazer sabão ecológico...) porque ele não faz bem prá saúde mas, naquele tempo, a gente usava o óleo enquanto ele existisse na panela. Nele se fritava o bife, a carne de frango ou de porco, o peixe - o óleo ia ficando preto, parecia petróleo! E eu até que achava gostoso: ficava uma mistura de sabores maluca, tudo junto de uma vez só...

Como eu era a mais velha de seis filhos, não podia esperar mimos: na maioria das vezes, se eu queria comer, eu mesma fazia. Acordava um pouco antes da hora, tirava do forno a frigideira e preparava meu lanche antes de ir prá aula.

E foi o que eu fiz nesse dia: peguei um ovo de galinha, esquentei aquele óleo preto e o fritei, do meu jeito. Como não tinha espátula prá virar o ovo eu fui quebrando com o garfo, virando daqui e de lá e, quando tava bem fritinho do meu gosto eu abri um pedaço de pão amanhecido e ali deitei meu ovinho monstruoso, que de clara branca nada tinha e cuja gema era destroçada e marrom... Embrulhei num pano aquele meu sanduíche feioso e fui prá aula - onde, diga-se de passagem, eu era a melhor aluna de todas.

Quando chegou a hora do recreio me sentei num dos bancos de cimento, esfomeada como sempre e mal comecei a morder meu pãozinho quando chegam Norma, Ozilda e o bando de lambisgóias que andavam com elas. Cada uma com seus lanches trazidos de casa: pedaço de bolo, pão doce coberto com creme de ovos, sonho... Olharam para o sanduichinho na minha mão, fizeram cara de nojo e a Ozilda, prá ser a mais engraçadinha da turma, disse assim:

"Ui! Que coisa horrível é essa? Você tirou isso do lixo?"

Senti o coração batendo nos ouvidos. Como ela se atrevia? Há poucos dias atrás ela era uma pária, uma excluída, ninguém conversava com ela a não ser eu e agora ela agia dessa forma comigo?

Levantei bem rápido do banco, avancei prá cima delas brandindo o pão na mão como uma arma e quase o esfreguei nas suas caras, dizendo:

-"É pão com lagartixa, por quê? Tá com vontade? Quer prá você? Quer? Quer?"

Assustadas, saíram de perto todas, me olhando como se eu fosse uma maluca e, daquele dia em diante, ganhei a fama de "comedora de lagartixas"...

Mesmo anos depois sempre me aparecia alguém prá dizer: "Ei, você não era aquela menina que comia pão com lagartixa?"...  

Uns tempos depois dei uns tapas na Norma - só prá ela ficar esperta - e ela parou de se meter comigo. Passei uma fase meio briguenta na infância, sabe como é...

Já casada, descobri que ela foi uma das milhares de namoradas que o Marildo teve - mundo pequeno este em que vivemos... 

A Ozilda não terminou nem aquele semestre: seu pai mudou-se de volta pro lugar de onde tinham vindo e ela foi ser uma falsa amiga de outra pessoa...

De vez em quando bate aquela vontade de comer pão com ovo frito, mas não tem mais o mesmo gosto - a fome é a melhor cozinheira de todas mesmo (ou será que aquele óleo preto, que podia ser usado como diesel prá mover até caminhão, é que era o segredo do sabor? Nunca saberei...). 

E de vez em quando, naquelas horas da "boquinha fora de hora", lá estou eu comodamente de traseiro espatifado no sofá aproveitando um sanduíche maluco qualquer e, ao oferecer uma mordidinha pro Marildo, lá vem ele com um comentário bobo do tipo: "Não, Zoiúda, pode comer sozinha o teu pão com lagartixa"...

E eu querendo dividir a gostosura...

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22 comentários:

  1. Olá querida amiga, que história deliciosa com todas as que você escreve! Passou bem o final de semana? Eu passei bem. No sábado foi meu aniversário e a filha e os meninos estiveram em casa. Fiz um bolo salgado com pão de forma e um bolo, que os meninos comeram com todo gosto. Fico feliz em vê-los comendo assim. Um deles, o PP, não gosta de azeitona e dentro do recheio do pão tinha a bendita. Ele tirou algumas depois esqueceu e comeu com azeitona e tudo.
    Lendo a sua história lembrei-me dos lanches que minha mãe fazia, quando aos sábados, depois da escola, íamos para a casa da praia onde minha avó morava. Minha mãe fazia uma fritada de batata, aos moldes espanhóis e, a parte que seria minha no almoço, ela colocava num pãozinho francês e levava para eu comer no carro enquanto íamos viajando pela Anchieta. Você acredita que até hoje, quando faço fritada, tenho que comer no pão, porque acho que de outra forma não tem o mesmo gosto. Coisas da infância, muito prazerosas.
    Beijos sabor pão com ovo. (risos)

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    1. Feliz aniversário atrasado, querida Ligia! Muitos e muitos anos de vida, cheios de saúde e sempre cercada por aqueles que te amam!

      E - ahááá! - eu também amo pão com fritada de batata! E pão com omelete de queijo então?! Ovo é bom demais, não é mesmo? Simples e perfeito de todo jeito...

      Beijão sabor fritada de batata!

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    2. minha mãe fazia pão com omelete pra eu levar pra escola. rsrsrs

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    3. Delícia! Comida de mãe, por mais simples que seja, sempre é a melhor... Beijos!

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  2. Rosa, você lembra do pão com ovo, que também comíamos em casa, mas meu lanche , era pão com manteiga mesmo! Ficava doida de vontade de comer o pão com mortadela e queijo que as colegas de classe traziam, mas acho que isso só ficou na memória, porque ainda gosto muito do pão com manteiga e o de ovo!!! Linda semana para ti! bis Nina

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    1. Gozado como essas lembranças gustativas da infância perduram pela vida toda, não é mesmo, Nina querida? As coisas que a gente comia quando criança ficam guardadas num cantinho especial - é como se nosso cérebro guardasse parte de quem nós fomos através desses cheiros e sabores... Eu também amo pão com manteiga e um café com leite prá acompanhar...

      Beijão e uma linda semana prá você!

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  3. hahaha…adorei o seu relato, Rosa, rosinha!!

    Ingrata mesmo a loirinha, heim?? Criança sabe ser malvadinha…hahaha...

    Mas, você pelo jeito, se defendia bem e não levava troco para casa…rsrsrsrsr…

    Eu também comi muitooooo pão com ovo na merenda, ou pão com mortadela ao molho de tomate!!

    Nunca esqueço do perfume delicioso, misturado ao Ki-suco de laranja, uva ou de groselha que saia da minha lancheira!!

    ai,ai…que saudades!!

    beijinhos, tenha uma linda tarde!!

    Lígia e =ˆ.ˆ=

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    1. Ai, como era gostoso o Ki -suco! Era pura química e corante, não vinha com açúcar, mas a carinha daquela jarra sorridente era tão amiga, não era? E a cor dos amarelos era a minha favorita... Saudades mesmo.

      Beijão, minha querida!

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  4. Que histórinha linda!
    E sim, concordo, a fome é o melhor ingrediente, o melhor cozinheiro.
    Tenha uma boa noite, um bom jantar e que a lagartixa lhe saiba bem!
    Beijinhos, linda!

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    1. Obrigada por achar a história linda, Nina querida - só de saber que você passou prá ler já fico feliz. Beijos e uma linda semana!

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  5. Rosa

    Adorei a sua resposta às "Normatietes", muito bem respondido e engraçada a sua atitude. Que susto elas tomaram, hein?
    É assim mesmo, há momentos que a gente (quando criança) tem necessidade de dar uma de maluca para ter mais paz apesar da fama que se pode levar depois.

    No meu caso, era a minha mãe que preparava o pão com ovo para eu e minha irmã caçula levarmos para a hora do recreio escolar e ela também reaproveitava o óleo não sei quantas e quantas vezes. Creio que a maioria das famílias, naquela época (anos 70) fazia isso. Minha mãe tinha uma frigideira pequena só para os ovos e uma outra maior só para os bifes. E o lanche era muito bom até mesmo frio, ou a fome era tanta que comíamos com vontade e prazer.

    Mas de agora em diante quando ver uma lagartixa me lembrarei desta sua história infantil que achei muita graça.

    Bjs

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    1. É mesmo, essas comidinhas de infância são mesmo memoráveis - especialmente aquelas feitas com amor, por nossas mãezinhas... Todas nós temos essas lembranças deliciosas e queridas - e realmente, mesmo frios eram ótimos os lanches...

      Beijos e uma ótima tarde!

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  6. Rosa...penso que já referi...se não...aqui vai:
    _Escreva um livro com as suas histórias...pois retrata de um modo perspicaz a vida!
    Boa semana!

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    1. Ah, é muito carinhoso da tua parte, Maria da Graça! Mas são só recordações de menina...

      Beijos e uma boa tarde prá você!

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  7. Oh que fiquei com vontade do seu pão. Até hoje eu faço umas coisas estranhas pra comer (meu marido apelidou de mexidão da Fofa). Eu lembro que guardava o dinheiro da semana toda, pra na sexta-feira, comer um misto quente e um refrigerante ( que pra mim era o top do top). No resto da semana nem comia nada...ahahaha. Estudei em colégio particular e o pessoal sabia que eu era pobre. Não me recordo de ter tido alguma conversa ou amigos nessa época. Uma vez minha mãe me comprou um jeans, no centro da cidade (o que equivale hoje aos camelôs) e uma pessoa da classe veio elogiar. Quando eu contei onde foi comprada o povo se acabou de rir...e eu com minha sempre afiada língua respondi: mas vc gostou, não foi? A infância da gente rende um livro né?

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    1. Eu também tenho meus mexidões. mas aqui em casa o Marildo chama de "baioneta", do jeitinho que minha sogra chamava...

      Agora me lembrei do misto quente - adorava, com um guaraná gelado, era um luxo! Também era raro, por isso é que era tão apreciado...

      Nossa infância renderia mesmo um bom romance...

      Beijão, Cláudia querida!

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  8. Ai Rosa, uma história mais incrível que a outra!
    Estava com saudades, já estou melhor.
    Bjs querida e bom feriado amanhã

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    1. Que bom que já tá melhor, Doutora querida! Fico feliz.

      Beijão!

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  9. Rosa, nessa década estávamos tão próximas, com vidas tão parecidas... e nossos filhos hoje têm vidas tão diferentes das nossas, não é? quando os primeiros iogurtes (que chamávamos Danone) surgiram por aqui a gente só via nas propagandas.Hoje eles acabam até estragando na minha geladeira...
    Você escreve muito bem, com narrativa muito viva. Eu adoro.
    Beijos

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    1. Obrigada, Helena querida! Olha, só porque você falou de Danone, a historinha de hoje tem dele - de morango...

      Beijos!

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  10. Oi,Rosa!
    Passei por aqui rapidinho pra te conhecer e...Adivinha? Fiquei encantada e já estou aqui à um tempão, passeando pelo teu lindo blog e me deliciando com as tuas estórias! Esta da "menina que comia lagartixas" é preciosa, e tem aquele gostinho de infância gostosa... Uma doce emoção com aquela pitada certa de humor... Adorei!!! Também já vi as estórias das tuas árvores e frutas do teu quintal, e como você, também sou uma apaixonada por essas botânicas criaturas que são tão importantes pra nossas vidas. E tu tens razão... Viver junto à natureza faz sempre bem pra nossa alma! Amei conhecer este teu cantinho tão especial e certamente vou estar sempre por aqui!
    Meu abraço grande e carinhoso no teu coração!!!
    Teresa
    (do blog "Se essa lua fosse minha")

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    1. Obrigada, Teresa! Fico feliz que você gostou do blog e das historinhas que eu escrevo nele...

      Procurei esse teu blog prá conhecer e não achei - me manda o link?

      Beijos!

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